2011-05-28 - João Gilberto 80.pdf

July 19, 2019 | Author: Edson Hiromitsu Tobinaga | Category: EMI, Entretenimento (Geral), Lazer, Música
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Eduardo Nicolau/AE

O AMOR,

O SORRISO E A

LENDA 

Caso raro de criador a atingir status de mito em vida, João Gilberto faz Gilberto faz 80 anos como pai da música  brasileira mais reverenciada

TRILOGIA

   3    0    0    2     /    4     /    4    2     /    E    A     /    u    a     l    o    c     i    N    o     d    r    a    u     d    E

SAGRADA

Como foi que apenas três discos ergueram os pilares da música brasileira mais respeitada no exterior 28 de maio de 2011 | 0h

Zuza Homem de Mello/Pesquisador Quando foi lançado, no primeiro trimestre de 1959, o LP Chega de Saudade de João Gilberto provocou a mais completa reviravolta na história da música popular brasileira. João, que faz 80 anos dia 10 de junho, já era o que havia de mais espantoso com dois discos singles (de 78 rotações) gravados no ano anterior. As quatro novas canções haviam virado a cabeça de jovens inclinados, mas ainda não decididos, a seguir a carreira de músico. Eram Chega de Saudade, Bim Bom, Desafinado e Ho-ba-la-lá, e entre os jovens estavam Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo, Francis Hime e outros mais que formariam a nata de compositores. A música de João os fez determinados. Nessas gravações, os dogmas de uma nova forma de canção brasileira estavam explícitos em elementos fundamentais, o ritmo, a harmonia, a batida de violão e a maneira de cantar. O primeiro vinil de João revelou que a nova forma poderia ser instaurada para muito além das quatro canções revolucionárias. João demonstrou que sambas do passado entravam na dança de sua revolução musical. Os dois sambas de Ary Barroso, Morena Boca de Ouro e É Luxo Só, o de Dorival Caymmi Rosa Morena e até um clássico de seu ídolo Orlando Silva, Aos Pés da Cruz, de Marino Pinto e Zé Gonçalves, também passavam a ser uma coisa nova na concepção de João Gilberto. Era uma outra bossa que nem Ary nem Caymmi nem Orlando sonhavam poder existir. João Gilberto demonstrou que era uma nova bossa. Ficou nítido que a bossa nova, expressão aplicada por Tom Jobim para defini-lo no texto da contracapa, não era um gênero. Era uma forma leve extensível a qualquer canção brasileira. Esse primeiro LP de João Gilberto dura 22 minutos e 35 segundos definindo outra marca inédita, a economia, a depuração do supérfluo. Na condução dos arranjos de Tom Jobim o guia era o violão de João Gilberto. Espremendo a essência de cada canção, João concentrava a fluidez rítmica e melódica; penetrando na sua co nstrução

original, introduzia com Tom uma harmonia de acordes invertidos executados em  bloco. Sem perda do caráter brasileiro, aquela música alcançava um contexto universal.  A contracapa do segundo LP, gravado em pouco mais de uma semana no primeiro semestre de 1960, trazia uma novidade abaixo da apresentação, também de Tom Jobim: o texto das 12 canções propiciando que se ouvisse cada uma delas lendo a sua letra, o que passou a ser característica de discos brasileiros. O repertório reunia canções essenciais da bossa nova, uma obra-prima de Carlinhos Lyra, Se É Tarde me Perdoa, outra de Tom, Corcovado, uma terceira de Tom e Newton Mendonça, Meditação, com o  verso que deu título ao disco, "o amor, o sorriso e a flor", e o estigma do bom humor na  bossa nova, O Pato do ilustre desconhecido Jayme Silva, simbolizando a ligação de João com antigos conjuntos vocais. Na primeira faixa estava o mais convincente modelo de integração texto/melodia da música brasileira, o Samba de Uma Nota Só, de Tom Jobim e Newton Mendonça, possivelmente a síntese da bossa nova nos fundamentais elementos de letra, melodia, ritmo e harmonia. A interpretação de João é direta e enxuta com um final seco após 1 minuto e 35 segundos de perfeição.  Ao contrário do segundo, o terceiro LP foi concluído a duras penas após 5 meses e em duas fases, a primeira com a participação do conjunto do organista Walter Wanderley, um músico excepcional, e a segunda com orquestra sob regência de Tom Jobim que também fez os arranjos. Sambas do passado de Caymmi, Geraldo Pereira e da dupla Bide & Marçal eram de tal forma alterados na rítmica e na harmonia que não soavam como outra versão mas como um outro samba. Mais uma vez João introduz elementos de elasticidade e flexibilidade através de rubatos ou suspensões, apressando ou encurtando frases, ou ainda colocando versos fora do lugar para depois aguardar com o  violão e seguirem juntos novamente. Com sua voz cálida incorpora novos clássicos da  bossa nova, Coisa Mais linda, O Amor em Paz e Insensatez. Mas o maior acontecimento desse disco, que tem seu nome como título, foi a apresentação das primeiras gravações de João com violão e nada mais, formando uma entidade que seria a tônica de seus recitais, o que há de mais sublime na música brasileira ainda hoje. Não é um cantor se acompanhando ao violão, são os dois juntos, é um novo conceito representado por dois timbres diferentes, o das cordas vocais e o das cordas do violão formando um terceiro timbre, o de João Gilberto. Caso não tivesse gravado nada mais, bastaria essa trilogia para que João tivesse completado sua obra. Os 3 discos, que estão fora do mercado se mantêm tão atuais como se gravados hoje, às vésperas de seus 80 anos.

1959

1960

1961

CHEGA DE SAUDADE

O AMOR, O SORRISO E A FLOR

JOÂO GILBERTO

 A origem da batida de violão e da forma de cantar que transformartam tudo

 A pavimentação do cancioneiro com clássicos como Corcovado e

João aprimora sua sutil arte de re-harmonizar sambas e entortar melodias

 Meditação

 A tarde do pingue pongue

Um homem que se emociona com uma bolinha de plástico só poderia ser extraordinário Diogo Pacheco - O Estado de S.Paulo

Há muitos mitos com relação à personalidade de João Gilberto. Como convivi com ele durante dez dias em sua casa, em New Jersey, sempre que posso procuro desmistificar equívocos em que geralmente pessoas incorrem ao analisar sua personalidade. É sempre difícil entender um gênio. E mais difícil ainda é conviver com ele. Nunca me esqueci de quando sua filha Bebel Gilberto declarou no programa do Jô Soares: "Papai nunca cantou pra mim". Fiquei irritadíssimo, pois quando ela fez um ano, no dia de seu aniversário, eu presenciei João improvisando ao lado de seu berço o Parabéns a Você durante no mínimo duas horas. Foi uma obraprima. Falando em improvisar, me lembrei do João estudando na cama o Carinhoso. Ele fazia caretas estarrecedoras quando não achava os acordes que queria. Mas quando achava ficava feliz e as repetia dezenas de vezes. É impossível esquecer uma vez em que, durante um churrasco no quintal de sua casa, pisei inadvertidamente em uma formiga. Ele me chamou de assassino, colocou a formiga já morta embaixo de uma latinha e começou a cantarolar dizendo cada vez que levantava a latinha: "Ela está gostando". Os insensíveis devem ter vontade de caçoar; confesso que quase chorei. Mas a melhor de todas foi quando ele me convidou para almoçar em Nova York. Eu queria ir de metrô. Ele preferiu o táxi. Chegando ao restaurante, disse estar com sede. Então falei para pedirmos uma água, e ele respondeu: "Não, coitado do garçom. Vai dar um trabalhão pra ele". É estranho mas é autêntico. Quando voltamos para casa, novamente de táxi, ele disse ao motorista: "Good afternoon", mas o motorista não respondeu, porque não entendeu ou porque não tinha mesmo educação. Fez-se s ilêncio no resto do percurso. Quando chegamos o João me convidou para jogarmos pinguepongue. Começamos uma partida chatíssima, daquelas de comadre. Uma hora não aguentei mais e dei-lhe uma bola rente à rede que ele não alcançou. Aí ele parou e observou: "Você viu? Essa jogada tinha beleza. O jogo estava bá bá bá e de repente você fez bi bi. Se o motorista visse essa jogada ele me responderia o boa tarde". Foi uma das observações mais geniais que ouvi na vida. Esse é o João. Filósofo, inteligentíssimo e superautêntico. Outra passagem genial foi no antigo Palace, em São Paulo. O dono, Fernando Alterio, estava preocupado com o show, com medo de

que João não aparecesse ou parasse no meio. Mandou então que avisassem pelos altofalantes da casa que durante o espetáculo seriam suspensas as bebidas e que o público tivesse cuidado com conversas ou barulho de copos. Mas eis que, no meio de uma música, logo no início, João simplesmente para de cantar. O silêncio era sepulcral e o João saiu-se com esta: "Desculpem. Vocês não têm nada com isso. Aliás, estão se comportando divinamente. Mas sabem aqueles bichinhos que ficam rodeando as lâmpadas? Tem um aqui que não para. E como eu não mato nem uma mosca, eu vou esperar para que ele voe antes de continuar". Foi uma ovação. Poderia contar muito mais sobre minha experiência com esse gênio, mas acho que seria redundante. O importante é que tudo é verdadeiro e autêntico, nada é antipatia ou petulância. Parabéns João. E, por favor, não mude. De falsos já estamos cheios.

''Ele suspeita da mediocridade'' Carlos Lyra / compositor - O Estado de S.Paulo Conheci João Gilberto em 1955, no Bar do Plaza, onde tocava Johnny Alf, e isso quando ele namorava Silvinha Teles. Seguidamente me chamava para uma área nos fundos do  bar e, como sempre carregava um violão, me exibia uma maneira diferente de tocar músicas de Dorival Caymmi como Doralice. Dava pra perceber que havia aprendido pela escola espanhola de Tárrega, onde o punho fazia um ângulo reto com o antebraço e o dedo polegar da mão direita se projetava para o lado esquerdo da mão. Só que, naquela época, ele postava a mão ao contrário, de forma que o indicador da mão direita pulsava a corda prima mi e o dedo mínimo da mão direita, por sua vez, pulsava o baixo ré, enquanto que o polegar funcionava como um contrabaixo. A batida já era aquela conhecida da bossa nova e o efeito resultava, no mínimo, insólito. Aquele esforço gerou uma espécie de neuropatia na mão que o obrigou a diversos tratamentos para controlar a dor, o que acabou por levá-lo a reinverter a posição da mão e a tocar na forma tradicional. Ao cantar, às vezes, escolhia também canções do estilo antigo como a que diz "eu sonhei que tu estavas tão linda?", de Lamartine Babo. Muito antes de ele se tornar conhecido, João e eu nos tornamos amigos e, não raro, caminhávamos pelas ruas de Copacabana, às vezes pela praia, onde, do Posto Seis ao Leme, ele se exercitava assoviando ou emitindo uma nota, cantada com som de trompa, que mantinha por um longo tempo, prendendo a respiração durante o percurso. Conseguia, com isso, projetar o som para longe. Usava esse recurso para assoviar minha canção Maria Ninguém embaixo da janela de minha casa, no que minha mãe prontamente o recolhia e, mesmo quando eu ainda não havia chegado, o contemplava com um dos meus pijamas mais um colchãozinho pra dormir, lhe oferecia um chaz inho e o abrigava até o meu retorno.  A partir de 1959 vieram as gravações do Chega de Saudade, etc. A personalidade de João sempre foi um tanto excêntrica e desconcertante. Isso tudo devido, possivelmente, ao perfeccionismo e profissionalismo exacerbados. Jamais admitia concessões e, talvez por essa razão, quando da gravação de seu segundo LP, ao escolher uma de minhas canções com Ronaldo Bôscoli, Não Faz Assim, tivemos um certo desentendimento.

Por essa época, estando eu afastado de Ronaldo por razões éticas e profissionais, sugeri que João gravasse a referida canção com outra letra, de minha autoria. João se mostrou irredutível. E eu também. Resultou que a música não foi gravada, mas imagino que o cantor, que levava horas, dias, ensaiando uma música, não poderia aceitar a troca. Eu, por minha vez, também possuía critérios éticos e estéticos definidos. E é por tal razão que (a exemplo de João) sempre me recusei a participar de festivais da canção. Isso por entender que arte, não sendo esporte, não compete. João, com seu repertório, confirma aquilo que também sempre levei em conta: bossa nova não é só samba. Pode ser também samba-canção (as primeiras músicas de bossa nova eram sambas-canção), bolero, marchinha, marcha-rancho, toada, baião, valsa, chorinho e mais toda uma gama de ritmos brasileiros. No repertório de João estão  vários sambas-canção: Caminhos Cruzados, Manhã de Carnaval, etc; boleros: Besame Mucho, Farolito; marchinha: Trevo de Quatro Folhas; toada: Maria Ninguém; baião: Baiãozinho (de autoria dele) e outras tantas. Esse artista suspeita, profundamente, da mediocridade e dos interesses musicais escusos, não raro, manifestando esses sentimentos de viva voz. De uma feita, na casa de Nara Leão, me arrastou pelo braço até a janela e, apontando para as pessoas passando lá embaixo, na rua, me confidenciou: "Olha lá Charles, não adianta nada, eles são muitos...". Essa personalidade curiosa gerou muita mística e numerosas lendas, que ele, na  verdade, nunca endossou ou confirmou. A mim também pouco importam as lendas e a mística que, aliás, em contrapartida à personalidade reclusa que se recusa a frequentar festas e a dar entrevistas, servem-na, merecidamente, de marketing e publicidade. O que, afinal, mais me interessa e impressiona nesse excelente intérprete é, exatamente, a enorme capacidade estético-musical, o esmero profissional e a absoluta integridade artística.

Enquanto isso, em Juazeiro

Só quem vai à sua cidade pode entender, afinal, o que é que o baiano tem Julio Maria - O Estado de S.Paulo

Que história de gênio que nada. O que João Gilberto queria ser mesmo era um ônibus. E um ônibus bem mazela, daqueles que vinha desmanchando pela Avenida Carmela Dutra, na orla do Rio São Francisco, lá pelos anos de 1950 em Juazeiro da Bahia. João  via a cena com ternura ao lado de amigos que o viam com espanto. "Eita que o rapaz é doido mesmo", era a frase que se ouvia. Ao sentir os colegas o estudando, tentava explicar a origem dos seus desejos. "Olha que coisa feliz, eu queria ser um ônibus desse." "Que isso, João? Ser um ônibus velho e feio desse?" "Não rapaz, repare só. Eles passam embaixo das árvores e as folhas coçam a cabeça deles. É lindo." Ninguém entendia João e João não entendia ninguém. O que faltava ao mundo, dizia, era um pouco mais de poesia.  A Juazeiro de João Gilberto ainda está lá, com um sol que só não torra seus 197 mil habitantes como amendoim graças à brisa do Rio São Francisco. Uma ponte de 800 metros liga suas casinhas e ruas estreitas às avenidas de Petrolina, espécie de prima pernambucana mais rica e mais robusta. O prato mais servido do lado de cá do rio é o  bode - com guarnições suficientes para sustentar três cabras famintos. E o time com

mais torcedores - pobre Sociedade Desportiva Juazeirense - é o Flamengo de Ronaldinho Gaúcho.

Rio São Francisco. João passava horas admirando as águas próximo à ponte

De João Gilberto mesmo, quase nada. A Casa de Cultura João Gilberto é um espaço que nem aula de música tem. A irmã Vivinha, única da família em Juazeiro, mora ali ao lado. "João não gosta que falamos dele." O endereço em que ele nasceu, no centro, está alugado para a Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrário. Na praça em frente ao Country Club há a estátua de um homem tocando violão. Mais de perto vê-se que tem  barriga. E, ainda mais de perto, lê-se: "Homenagem a Alsus Almeida de Sangalo".  Alsus, ex-ourives, violonista nas horas vagas, foi pai da também juazeirense Ivete Sangalo. O João que sobrou em Juazeiro da Bahia está na cabeça de gente com mais de 80 anos que nunca saiu de lá, lúcida o suficiente para ajudar a entender por que aquele menino com jeitão esquisito que assustava visitas na casa da mãe, Dona Patu, se tornou esse caso raro de homem elevado a lenda ainda em vida. Até fazer 18 anos, quando foi estudar e tentar o caminho das artes em Salvador e depois no Rio de Janeiro, João  brincou na grande casa de cinco quartos no número 20 da Praça Imaculada Conceição; nadou nas águas do São Francisco com o amigo Galo; dançou valsa e bolero no Clube 28 de Setembro com a bela Edhete; tocou violão com o gozador Pedro China; e foi expulso, ou melhor, convidado a se retirar da escola pela professora Maria de Lurdes Duarte - um dos episódios não visitados nem pelos livros de época sobre o cantor. Uma senhora com lembranças que valem ouro diz o seguinte: "João, o aluno, era terrível". Ao menos naqueles anos primários na escola que funcionava em um prédio de 1928 onde fica hoje a Casa dos Artistas, ele bagunçava as carteiras da classe e a vida dos amigos. E nada em seu boletim dava a entender que haveria compensações futuras. As notas de João eram "normais", lembra a professora Lurdes Duarte, hoje com 93 anos. "Ele tinha uma personalidade danada, era bagunceiro, trocava tudo de lugar." Seu irmão, um bom garoto, estudava na mesma escola. Quando a paciência de Lurdes se foi, ela chamou a mãe de João para uma conversa. "Dona Patu, lamento muito mas não

tenho condições de ficar com o seu filho. Ele é impossível." Patu, que sabia ser dura, se indignou: "Tudo bem, então eu tiro os dois". João dançou pela primeira vez. E levou o irmão junto com ele. Juazeiro da Bahia não é a Juazeiro do Norte, de "Padim" Padre Cícero, que fica no Ceará. É menor. Quando João veio ao mundo, calcula-se, seus vizinhos não eram mais do que 10 mil pessoas. O pai, Joviniano, era dono de armazém na cidade. A mãe, Patu, católica de dobrar os joelhos. A casa da família onde João nasceu fica em frente da Igreja da Imaculada Conceição, no centro. A mãe acendia as velas nas missas de domingo, João as apagava. Sem vocação para terços e rosários, rejeitaria até mesmo ser incluído em uma elogiosa figura de linguagem, ao lado de Tom Jobim e Vinicius de Morais. "Ele não gosta quando dizem que só sobrou ele vivo da Santíssima Trindade", diz o amigo Maurício Dias. "Diz que é mau agouro."

Pedro China. Amigo de João dos tempos pré-bossa nova, Pedro viu muita travessura

O menino era danado não só na escola. Dona Juzy Duarte, 82 anos, lembra de uma cena testemunhada na casa de Dona Patu por uma amiga, Maria, que lá ficaria hospedada uma noite. "Dona Patu pediu para João pegar um copo d"água na cozinha. João foi e voltou girando uma espécie de bandeja com cordinha da época que trazia o jarro e os copos com água. Ele fazia isso tão rápido que a água não caía." Sua amiga queria sumir: "Não fico mais lá não", disse depois.

 Violonista amigo de João, Pedro China tem uma das boas. "Eu estava na casa de João um dia. Enquanto eu falava com ele, seu pai, Joviniano, fazia a barba. João disse pra mim: "Quem ver meu pai cortar o rosto com a lâmina?" Eu disse "como é?". Aí João gritou: "Seu Joviniano!" Ao se virar, o pai cortou o rosto na hora. E João sorriu: "Eu não falei?"".  A força da música teria sido transformadora na personalidade de João Gilberto. "Ele não gostava nem mais de namorar. Ficava no cais do São Francisco tocando violão sozinho", fala Pedro China. Foi com China que João formaria seu primeiro grupo. "João fazia a gente ensaiar 20 vezes para cantar uma. E dizia: "Fulano entra assim, cicrano entra assim"". Os grupos que chegavam a eles pelo rádio eram Anjos do Inferno, Quatro  Ases e Um Coringa e o cearense Verdade Tropical. A esse, João reagia: "Esses "cabeças chatas" não cantam é nada". Bem antes de criar a batida da bossa nova, que só viria em definitivo com Chega de Saudade, o violão já era um parceiro nas dores de João Gilberto. Dona Juzy, da turma da irmã de João, Maria, tem uma imagem que não desbota de suas memórias. Era  velório do pai de João. O corpo estava sendo velado em casa. Os adultos choravam, as crianças brincavam. E João, cadê João? "Estava tocando violão. Nunca me esqueço daquilo. Enquanto o pai era velado ele ficava lá, sentado sozinho na pracinha perto da casa com aquele violão triste."  Antes de agradecer às mãos pelo bem de puxarem as cordas de seu instrumento de um  jeito que ninguém puxara antes, João deve agradecer aos pés. João Gilberto, o garoto de 16 , 17 anos, era um pé de valsa de fazer as garotas do Clube 28 de Setembro suspirarem. Edethe Moreira Duarte, 79 anos, era uma delas. Elegante, bela ainda hoje, era rigorosa com parceiros e usava de um expediente cruel para evitar os pernas de pau

que se aproximavam: corria para o banheiro. Mas, com João era diferente. "Eu não poderia dizer não para ele. Era um ótimo dançarino de valsas e boleros. Dançava calado e fazia a dama voar em seus braços." Seu tom parece aquele das paixões antigas. Mas ela diz que não. "Éramos apenas amigos." João se vai de Juazeiro, ganha o mundo, cria a bossa, vira o mito, e não parece sentir saudades da carne de bode. Como João, o Grande, voltaria poucas vezes a Juazeiro, sempre protegido pela aura de mago excêntrico que o livraria da condenação de louco em sua própria terra. E então, ganha carta branca. Quanto mais insanidade dizem que tem, mais gênio parece ser. E aí, dá-lhe história: "Rapaz, era 3h da manhã quando fomos a um bar e ele pediu um caldo de mocotó. Tomou tudo aquilo e quis uma manga. Eu disse: "Mas João, você vai passar mal?". E ele: "Se eu não vomitar é porque meu fígado está bom"", diz Maurício Dias. "Certa vez ele tocava na casa de um primo quando ouviu a torneira da pia da cozinha pingando. Aí percebemos que ele diminuía o andamento da música para colocá-la no ritmo daquele pinga-pinga", diz o mesmo amigo. Seu retorno mais doloroso seria em 1981, com a morte da mãe Patu. "Ele tocou  violão baixinho lá no último quarto da casa quando soube da notícia", diz Fernando Oliveira, de 85 anos. Fernando se tornou o cabeleireiro oficial de João Gilberto em Juazeiro. Amigo da família, era sempre ele a atender às demandas da vaidade de João que, diga-se, não eram muitas. Única exigência diante dos espelhos de Fernando: esconder a calvície do cocuruto, cada vez mais pronunciada. "Eu passava um lápis escuro nos fios para dar  volume e disfarçar. Hoje acho que não resolveria mais." Seu Jorge é filho de Seu Galo, músico amigo de João no grupo Enamorados do Ritmo e nadador dos bons capaz de atravessar o São Francisco para comprar cigarros em Petrolina e voltar também a nado com o cigarro amarrado na cabeça. Ao retornar certa  vez a Juazeiro, João quis ver a casa do amigo falecido. "Ele veio sem avisar, entrou e foi direto para o quarto deitar na cama do meu pai. Ficou olhando para o teto e dizendo: "Ah, esta é a cama do Seu Galo". Eu criança, fui correndo contar pra minha mãe assim que ela chegou: "Mamãe, tem um homem deitado na sua cama"".

Casa. Na residência em que João nasceu funciona hoje um órgão do governo estadual

Insanidades em Juazeiro é com o doutor Dewilson. Dewilson Oliveira, 87 anos, é primo de João Gilberto, psiquiatra e dono do Sanatório Nossa Senhora de Fátima desde 1957. Fala com dificuldades mas tem tutano para dar um diagnóstico ao parente, seja como doutor das faculdades mentais, seja como primo de mil histórias. Afinal, doutor Dewilson, João Gilberto é louco ou é gênio? "Que louco que nada. O problema é que João só faz aquilo que ele quer fazer."

'Os estrangeiros estão com o João nas mãos' Mulher de João, acusa a EMI de mudar discos do cantor e deixar que eles sejam vendidos na internet de forma ilegal

Julio Maria - O Estado de S.Paulo

Entrevista: Claudia Faissol, mulher de João Gilberto

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Desabafo. "Viram que somos idiotas, colonizados, imbecis", diz sobre discos de João que foram modificados

 Aquilo soava delírio. Imagine João Gilberto se deixando filmar no palco e em  bastidores de seus shows para virar documentário. Quem o conhece dizia "esquece, sem acordo". Mas Claudia Faissol seguiu em frente. Foi a João mais de uma vez até vencer a primeira luta. Quando ouviu um sim, colocou a câmera no tripé ciente da palavra que nunca deveria dizer: prazo. Quarenta anos mais jovem, acabou se envolvendo com o artista e tendo dele uma filha hoje com 7 anos, Luisa. Quinze anos depois de começar as gravações em shows e bastidores de João pelo mundo, Claudia vai ao front pela segunda vez. Quer ajuda do governo para concluir seu documentário. Em entrevista por telefone ao Estado, ela se diz decepcionada com o que chama de miopia das autoridades e fala de guerras ainda maiores em nome de João Gilberto. Acusa a gravadora EMI de adulterar os masters dos principais discos do artista e de permitir que seus álbuns mais importantes sejam vendidos na internet em versões modificadas. Procurada pela reportagem, a gravadora EMI não quis se manifestar sobre o assunto. Claudia diz ainda que a imprensa maltratou João no episódio da ameaça de despejo de seu apartamento e que o artista mais recluso do País não dá entrevista por mágoa.

 Você precisa de ajuda do governo para concluir seu documentário? Eu estou trabalhando para o governo há 15 anos. Esse documentário é uma coisa que não deveria ser um investimento meu, mas do governo, porque é histórico. Quando  você trabalha com João não tem como dar prazo. Só que, por uma miopia do governo, eles querem atrelar João à Lei Rouanet. É uma ignorância.  Você chegou a falar com a ministra Ana de Hollanda? Ela disse que não pode arcar com compromissos do último governo. Eu sei que o que ela quer é que eu coloque o projeto na lei (Rouanet), mas não vou colocar porque para isso eu teria que mentir. E não vou mentir para me envolverem em um escândalo. Mentir em que sentido?  A lei exige que você defina um tempo, quando vai começar e quando vai acabar, e todo mundo sabe que isso é impossível quando é algo sobre João Gilberto. Infelizmente o que vou acabar fazendo é entregar esse projeto nas mãos de uma firma estrangeira. Os estrangeiros estão com tudo do João nas mãos. O cara que tem mais imagens dele é um suíço que vai doar o acervo para o governo de seu país. Que tipo de ajuda do governo você precisa? Pedi ajuda da Cinemateca para me mandarem um técnico aqui no Rio porque eu não posso tirar essas imagens de casa. Precisava que um técnico fizesse essa decupagem e um orçamento mais acertado de quanto seria para tratar isso. Juca Ferreira (exministro da Cultura) me deu a maior força, pediu para a Ana de Hollanda fazer com que esse projeto andasse, disse que era o pré-sal da cultura brasileira. Mas não estou encontrando eco porque as pessoas tratam o João como louco. Ouvem o que eu digo e dizem "ah, mas o cara não vai deixar, essas imagens não vão existir nunca", na base da chacota e da piada. Como está João em seus 80 anos? Ele está ótimo, com o repertório mais lindo do mundo. Um repertório para show ou para gravar disco? Pra show, pra disco, para o que for, o repertório está muito lindo. Músicas inéditas? Músicas que ele nunca gravou. Quais, por exemplo? Eu não lembro aqui agora, tem várias, ele toca tanto que me confundo. Em tudo aquilo em que ele toca, a letra muda, a música muda. Ele pega um samba e faz virar bossa, um frevo e faz bossa.  A questão do despejo do apartamento, pedido pela dona do imóvel em que ele mora, ficou resolvida? Isso foi uma fofoca completamente errada. Ele nem mora no apartamento. Ele não mora no apartamento? É, isso foi um desfavor da imprensa. Um cara da importância do João não pode ser tratado assim. Se fosse comigo nem sei o que faria, mas ele é calmo. Diz: "Deixa, Claudia, isso é coisa de gente desocupada, não vou me chatear, meu negócio é tocar  violão".

Desculpe perguntar de novo, mas ele não mora nesse apartamento? Não, ele não mora, apenas paga o aluguel porque tem gente que se hospeda lá de vez em quando. É difícil ser mulher do João Gilberto? Nem vou falar sobre vida pessoal porque ele tem horror, mas é triste ver todo o governo  brasileiro sem entender o que é isso, meu Deus. Em Nova York, o cara mais importante do show biz americano me disse que o João é o artista que vende ingressos mais rapidamente do que todos os artistas com quem ele já trabalhou, como Duke Ellington, Ella Fitzgerald, Frank Sinatra. Tem gente que pega um avião na Tailândia para ir a Nova York no dia do show do João. E aqui no Brasil as coisas são assim. Os primeiros discos do João estão em poder da EMI. No ano passado, ele pediu para ver os masters, mas eles já não estão mais no Brasil. A EMI nem sequer mostrou os masters. A EMI já levou tudo pra fora. João não tem poder sobre sua obra? É pior do que não ter poder. Ele ficou durante esses últimos 30 anos em brigas judiciais com a EMI justamente para pedir que não adulterassem os discos dele. João descobriu que eles colocaram bateria e outros instrumentos para encobrir o violão, remixaram músicas, adulteraram o disco. E agora esses álbuns estão nas mãos da inglesa EMI, que tinha como maior acionista a rainha da Inglaterra. É muito triste ver isso tudo acontecendo sem nenhuma reação do Supremo Tribunal Federal, nenhuma reação do Ministério da Cultura, nenhuma reação do Ministério das Relações Exteriores. Agora, o disco do João, Chega de Saudade, está sendo vendido na Amazon com um monte de faixas (que não estavam no original). Botaram a capa Chega de Saudade sem pagar nada ao João. Puseram outros cantores no disco, que foi colocado à venda na Amazon. Falei sobre isso também com o Juca, mas mudou o governo e caiu tudo. Estão vendendo os discos originais modificados? Não estão só modificados. É pior. Primeiro, era só o Chega de Saudade, mas agora já tem também O Amor, O Sorriso e A Flor. Eles viram que somos idiotas, colonizados, imbecis. Ninguém fez nada, vamos lá, vamos para o próximo. O que diz a EMI sobre isso? Eu fui lá, falei com o presidente na época, Marcelo Castelo Branco, e eu disse: "Olha, se  vocês têm os direitos desse disco, têm o dever de olhar porque isso está acontecendo. Pior do que as mudanças que vocês fizeram, há agora outros artistas dentro do disco do João". Eles me falaram que isso é pirataria e que não podem fazer nada. O João não pensou em processar a empresa que está vendendo seu material "pirata"? Não, o João não processou a Amazon. Ele não quer mais processar ninguém, está exaurido desse assunto. Foi ao tribunal e uma juíza disse que o que ele estava falando era relativo. Ela relativizou um conhecimento do João Gilberto. Tudo isso me choca. O que pretende fazer agora? O Ministério das Relações Exteriores disse que eu deveria falar com o ministro do Supremo Tribunal Federal para que ele decidisse o que fazer com relação a essa causa, até para que eu pudesse levar o caso para a OMC (Organização Mundial do Comércio). E na OMC o João Gilberto massacra a EMI. Isso iria conferir mais respeito ao País. O João Gilberto não quer falar um minutinho com a gente?

Eu adoraria, mas ele fez greve disso. Por quê? Há um tempo ficou muito chateado com algo que saiu, acho que alguma coisa o magoou muito mesmo. E quem está do lado do jornalista não entende o outro lado. Quando dá uma entrevista, ele não se vê na entrevista, sempre acha que alguma coisa não saiu legal. Diz que a outra parte que está te escutando tem de ter muita consciência senão a coisa degringola. E como aqui é difícil de achar essa outra parte, ele diz que prefere ficar quieto.  Você acha que a adulteração da obra do João feita por uma gravadora seria proposital? Nosso espaço não pode existir. Eles mataram nossa indústria nascente, que eram esses discos do João. Foi obviamente uma questão de "não vamos deixar isso concorrer com a gente". Os tradutores da bossa nova são medíocres. Tudo é para indicar "olha gente, nem tendo um tesouro vocês vão ter o espaço". Mesmo que esse tesouro seja alguém com a força de João Gilberto? Sim, sei que também ele tem culpa, ele também não soube se defender, não teve forças.  A bossa nova surgiu na época em que os Beatles foram para a América, quando  visitaram a rainha da Inglaterra, que era a maior acionista da EMI. Essa música não interessava às hegemonias inglesa e americana. As músicas do João foram adulteradas quando ele ganhou o Grammy concorrendo com Rolling Stones e Louis Armstrong. Entendo por que o João ficou do jeito que ele ficou. Chega uma hora que a energia acaba.

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