169. Susanne K. Langer - Ensaios Filosóficos.pdf

April 2, 2017 | Author: Derick Sulivan Laureano | Category: N/A
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ENSAIOS FILOSÓFICOS

SUSANNE

K.

LANGER

ENSAIOS FILOSOFICOS Tradução de J a m i r M a r t in s

E D I T O R A

C U LTR IX

SÃO PAULO

T ítu lo do original: P H IL O S O P H IC A L

SK ETC H ES

Publicado nos Estados U nid o s d a América por T he John Hopkins Press. © 1962, T he John Hopkins Press, B altim ore 18, M aryland.

M CM LXXI Direitos Reservados E D IT O R A C U L T R IX LTDA. R ua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, S. Paulo. Impresso no Brasil PrinU d in Brazil

ÍNDICE

Prefácio

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1. O Processo do Sentir

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2 . Especulações Sôbre as Origens da Linguagem e Sua Função Comunicativa

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3.

Sôbre Uma Nova Definição de “ Símbolo”

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4.

Emoção e Abstração

67

5.

Importância Cultural da Arte

81

6.

Civilização Científica e Crise Cultural

91

7. O Homem e o Animal: A Cidade e aColmeia

101

8 . A Unidade Fundamental

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9. O Crescente Centro de Conhecimento

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À minha irmã IL S E

K.

D U N B A R

Estudiosa da natureza, musicista verdadeira amiga

PREFÁCIO

Os ensaios e palestras reunidos neste volume abrangem muitos assuntos, desde os absolutamente teóricos, como o tra­ balho intitulado “De Uma Nova Definição de Símbolo’ ”, até amplas especulações acêrca da Humanidade e de seus proble­ mas — "O Homem e o Anim al: A Cidade e a Colmeia”, “A Unidade fundam ental” e “O Crescente Centro de Conheci­ mento”. Um leitor sensível a estilo notará induhitàvelmente, sem que se precise dizer-lhe, que êsses trabalhos foram dirigi­ dos a públicos ou a presumíveis leitores assaz diversos. As notas que os acompanham o confirmarão. Uma coisa ê falar ao Departamento de Filosofia da Brown University ou ao Departamento de Linguagem da Universidade de Pittsburgh e outra, bem diferente, ê, decerto, dirigir-se alguém ao hetero­ gêneo público nova-iorquino de Cooper Union. Assim ê que a linguagem, bem como o nível conceituai, têm de ir desde aquêles próprios ao discurso acadêmico até a linguagem e imagêtica populares de reflexões sérias, porém menos eruditas. O que, todavia, une êsses vários tópicos e o que lhes ins­ pirou a publicação num livro é o fato de serem todos êles estu­ dos voltados para uma obra muito maior, uma filosofia da mente; daí o título Ensaios Filosóficos. São como apresen­ tações antecipadas ou produtos incidentais de um empreendi­ mento ainda em progresso cujo remate demandará alguns anos; a relação ê mais ou menos a que existe entre o esbôço preli­ minar de um pintor, a lápis ou carvão, e o óleo ou afresco principais. O processo de escrever o livro que êstes fragmentos mera­ mente prefiguram está sempre cheio de surprêsas — algumas

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gratas e inesperadas corroborações ou provas que confirmam uma teoria duvidosa outras desconcertantes, e descobertas que alteram idéias a meio caminho. Neste últim o caso, o que parecia uma antecipação certa, a ser tão-sòmente aprimorada em sua apresentação final, pode alterar-se por via de um estudo mais profundo, a■ponto de se tornar irreconhecível. A liber­ dade, porém, de modificar a nossa maneira de pensar constitui um aspecto cardeal da liberdade de pensamento. £ parte dessa liberdade interior, ainda mais importante do que qualquer liberdade exterior, de dizer o que se pensa. Valho-me em grande parte dessa liberdade exterior para submeter à crítica algumas das idéias principais que talvez se revelem salutares, não apenas por disciplinar uma mente ultra-aventureira, mas especialmente por oferecer soluções que às vêzes se obscurecem devido a longas preocupações com um problema difícil. O pensador por demais imerso nas dificuldades, digamos, do sim­ bolismo, da individuação ou do processo evolucionário, talvez perca de vista as implicações mais óbvias apenas porque o assunto todo se tenha emaranhado em suas próprias comple­ xidades e nada do que era simples pareça agora plausível. No entanto, uma simplificação do problema constitui amiúde o método da sua solução, sendo mais provável que outrem a encontre e não nós. Além disso, há outro motivo que me induz a parar em meio um longo projeto de pesquisas e publi­ car êstes resultados experimentais: o trabalhador inteiramente solitário perde contacto com os movimentos de pensamento e mesmo com o sutil desenvolvimento da linguagem em sua pró­ pria profissão. Precisamos manifestar nossas idéias muito amiudamente, para que não se tornem " verdades” preciosas só plenamente compreendidas pelo autor — fetiches de uma mente idiossincrásica. Por outro lado, publicar uma obra inacabada oferece um risco real; o perigo de uma crítica destrutiva prematura,■ que pode cortá-la pela raiz. Uma grande parte dos leitores aborda uma nova teoria com o espírito influenciado e cultivado pelo grupo de debates do seu tempo de Ginásio ou Faculdade — o espírito forense que trata como oponente qualquer expositor de idéias, e que busca antes de mais nada refutar o que quer que êle diga, procurando, se possível, fazê-lo parecer rematada insensatez. A possibilidade de as idéias-chave da obra de qual­

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quer erudito profissional serem pura insensatez ê pequena; muito maior é a de uma refutação devastadora basear-se numa leitura superficial ou mesmo distorcida, subconscientemente de­ formada pelo afã de refutar. Atacar um êrro ê uma coisa, rejeitar tôda uma especulação teórica por conter um êrro, é outra. Um ataque sério a um desenvolvimento falacioso talvez o corrija, se essa fôr a ambição do crítico. Tal critica é coope­ rativa e visa à verdade; orienta seu curso consultando-se com o expositor: “E a isso que se refere? É realmente aquilo o que quis dizer?” Essa cautela é particularmente necessária quando se trata de uma obra apenas ligeiramente enunciada, isto ê, esboçada ou sumariada num único artigo ou conferência, sobretudo com proposições hipotéticas tratadas isoladamente, quando suas ple­ nas credenciais se fundamentam numa base teórica mais ampla. A falta dessa construção sistemática num livro constituído de ensaios antecipadores pode representar, na verdade, mais do que aquilo a que os engenheiros de comunicação chamam “perda perceptiva tolerável”; se, porém, o crítico tolerar essa falha e não condenar por infundado o que quer que pareça mover-se demasiado livremente no Espaço Exterior intelectual, então os seus comentários talvez poupem ao autor muitas de­ cepções, por efeito de orientar pensamentos incipientes, para o caminho da verdade antes que se tornem rígidos demais para serem salvos. S. K. L. Novembro, 1961

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1 O PROCESSO DO SENTIR

D entre os fatos de que se ocupam os psicólogos, aquéle com que parecem menos capazes de se haver é o de sentirmos nossa própria atividade e os impactos do mundo em nosso redor. A condição metafísica de “ sentimentos” , “ conteúdos de cons­ ciência” , “ subjetividade” ou dos aspectos' privados da experiên­ cia tem sido geralmente uma “ponte dos asnos” para os filó­ sofos, desde que Descartes tratou res extensa e res cogitans como substâncias irredutíveis e incomensuráveis. Os cientistas físicos não encontraram êsse dilema porque o seu interêsse está pôsto nos fenômenos físicos, res extensa-, mas o interêsse pró­ prio do psicólogo são realmente os fenômenos mentais, tradi­ cionalmente atribuídos a uma “ ordem” não-física — mente, consciência, experiência etc. — , a alguma espécie de res cogitans. Não há nenhuma razão a priori para crermos que os fenô­ menos mentais constituam uma ordem sistemática única, ou que res extensa seja em essência non cogitans. As propriedades físicas não são incompatíveis com propriedades como sensibi­ lidade e emotividade. Mas a exclusividade mútua de mente e corpo, espírito ativo e matéria passiva, é uma pressuposição tão venerável, tão profunda e intricadamente enraizada na religião e na filosofia primitivas, que parece inelutável precisamente em virtude de nos ser de há muito familiar. Para muitos filósofos e para quase tôda gente, ela representa o veredicto do bom senso. Carl Stumpf declarou-a simplesmente um fato da natu­ reza, que nenhuma filosofia poderia iludir. “Nesse particular”,

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disse, “nem Espinosa nem qualquer de seus sucessores transcendeu realmente o dualismo de Descartes. A verdade é que os dados concretos com que somos confrontados mostram êsse duplo aspecto desde o princípio [schon in der W urzel], e ( . . . ) é impossível eliminar tal dualidade” . 1 Outros psicó­ logos têm procurado explicar o “problema mente-e-corpo” tra­ tando a mente como um “ epifenómeno”, produzido pelas mu­ danças físicas acessíveis à Ciência, mas que se coloca fora do sistema físico e, portanto, não é em si mesma um objeto pró­ prio à pesquisa científica; outros ainda, desde M iinsterberg2, no princípio do nosso século, a Szasz em 1 9 5 7 3, atribuíram a dificuldade a um dualismo semântico, à existência de um voca­ bulário físico e de um vocabulário psicológico incompatíveis, mas igualmente válidos, que criam, respectivamente, uma versão física e psíquica da experiência. Preferir o emprêgo de um ao de outro é pura questão de conveniência, mas não podemos oscilar entre ambos sem suscitar a embaraçosa questão de cére­ bro versus mente. A posição mais respeitável hoje em dia é decerto a dos behavioristas: a recusa programática a aceitar qualquer coisa que não seja o comportamento patente como um dado psicológico, ou a tratar o comportamento como indi­ cação de que algo é sentido pelo sujeito. Alguns behavio­ ristas chegaram ao ponto de negar a existência da experiência interior; outros apenas proscreveram-lhe a menção em sua ciência e relegaram a questão de sua existência à Metafísica, pela qual entendem (ou mal-entendem) alguma espécie de his­ tória natural fantasiosa deduzida de postulados da religião e da ética tradicionais. São confirmados nessa crença por alguns filósofos eminentes tais como Santayana, que escreveu: “A Metafísica, no sentido próprio da palavra, é Física dialética, ou uma tentativa de determinar questões de fato por via de cons­ truções lógicas, morais ou retóricas” . 4

(1) Abh. d. Kõnigl.-preuss. A lad . d. Wissensch. IV (1 960), p. 14. (2) E. g., Science and Idealism, 1906. (3) Thomas S. Szasz, Pain and Pleasure. A S tu d y of Bpdily Feelings, Nova Iorque, 1957. (4) Do prefácio a Skepticism and A nim al Faith; citado por Irw in Edm an, T he Philosophy of George Santayana (Nova Iorque, 1936), p. 370.

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O Behaviorismo tornou-se hoje em dia, de alguma forma c em certo grau, atitude tão predominante na Psicologia, na

iSociologia e em vários campos de estudo afins que elas são chamadas geralmente “ ciências do comportamento” . O têrmo, porém, não é simplesmente descritivo; exprime uma metodolo­ gia e, além disso, uma crença aceita acêrca das relações da Metafísica com tais ciências, se não acêrca da própria Metafí­ sica. O consenso dos cientistas sociais, especialmente nos Esta­ dos Unidos, é o de que um problema metafísico tal como o da existência de algo chamado “ sentir” , “consciência” ou “expe­ riência subjetiva” situa-se fora do reino da descrição dos fatos concretos, que é o domínio da Ciência, podendo-se conseqüen­ temente, sustentar qualquer opinião filosófica sôbre tais maté­ rias sem que isso influa o mínimo em nossos descobrimentos e investigações científicas. Essa opinião parece-me errônea. Na verdade, as ciências nasceram da Filosofia; elas não se originam apenas da obser­ vação controlada, quando a filosofia é finalmente liquidada e removida a fim de permitir-lhes o crescimento. Vêm à luz sob condições muito especiais — quando seus conceitos-chave atin­ gem um grau de abstração e precisão que as torna adequadas às demandas do pensamento exato, poderoso e microscopica­ mente analítico. A Filosofia é a formulação e exploração lógicas de conceitos. Logo, é um evento filosófico que gera uma ciên­ cia nova e estimulante, ainda que estouvada — a reconcepção de fatos de acôrdo com um nôvo princípio abstrativo, numa nova projeção intelectual. O conceito newtoniano da gravidade como uma propriedade da matéria era um conceito que tal; também o era o conceito de evolução que a Origem ia s Espé­ cies de Darwin lançou ao mundo (se bem não fôsse êle o único a criá-lo), para trasmudar todo o estudo da História Natural, que de pura taxionomia passou a ciência biológica. Mas o maior de todos os vislumbres filosóficos, a primeira idéia generativa a engendrar qualquer ciência, remonta aos primordios de tôda a nossa cultura intelectual — o conceito da transformação da matéria, que encontramos de início nas doutrinas físicas dos primeiros jônios. Tornou-se uma pressu­ posição tão básica em nosso pensamento científico, e foi em tão alto grau corroborada pela experiência, que não mais a reconhecemos como noção filosófica. Estendemo-la da “ma­

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téria” à “energia” e a todo outro conceito de realidade física. Mas era, na verdade, uma concepção metafísica audaciosa; alguns dos contemporâneos de Tales podiam ainda dizer: “O Sol é nôvo a cada nôvo dia” . A situação decepcionante que obsta a um vigoroso avanço da Psicologia moderna é o fato de que ela não pode lidar conceitualmente com o seu objeto próprio e essencial: os fenômenos mentais. Seus métodos são todos evasão e desvios de têrmos tradicionais e das pressuposições indefensáveis que tais têrmos exprimem. Mas quantidade alguma de críticas, abstenções e ressalvas contra idéias falsas pode dar ao estudo da mente o que êle necessita para desenvolver-se como ciência — uma idéia sustentável, forte bastante para conferir sentido viável a têrmos como “ subjetivo” , “ sentido” , “ consciente” , “ mental” , e ao próprio tópico com que pretende se haver: a mente. Seus atuais conceitos-chave nem são suficientemente abstratos nem capazes da alta elaboração que uma verdadeira ciência natural reclama. “Comportamento” , “estímulo” e “resposta” são no­ ções práticas de laboratório animal, generalizadas e exageradas na esperança de abranger todo o campo dos fatos psicológicos; mas além do contexto em que se originaram — o da experi­ mentação com animais — , elas rápidamente perdem a utilidade. Um têrmo que designa uma vasta variedade de fenômenos não pode ser usado para descrever suas diferenças, muito menos para responder por elas. As abstrações não designam absolu­ tamente fenômeno algum, mas servem para descrevê-los. Não há nenhum objeto ou evento chamado “ gravidade” , mas fenô­ menos como a água a correr ladeira abaixo, a posição das estré­ ias em relação umas às outras, a atração da agulha de uma bússola pelo pólo magnético, são eventos ou condições bem diversos, descritíveis por meio do conceito de gravidade. Exis­ tem coisas tais como estímulos e respostas; isolá-las e classifi­ cá-las, mesmo emparelhar algumas muito simples, é uma espécie de taxionomia; isso não fornece nenhum princípio de análise ou interpretação, nenhum têrmo para descrever as relações entre os eventos observados. A Psicologia, que já não é tão nova quanto os seus apo­ logistas gostam de a considerar, não acompanhou o desenvol­ vimento de outras ciências novas, por exemplo a Biologia, porque a sua estrutura conceituai é demasiado frágil para arcar

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com o pêso excessivo de arrojadas hipóteses especulativas. O psicólogo não está livre para valer-se de sua imaginação cien­ tífica porque as fronteiras de seu campo acham-se cuidadosa­ mente demarcadas e bloqueadas por avisos de atoleiros e ara­ pucas de “ismos” errôneos. Essas fronteiras devem ser desim­ pedidas antes que seja possível construir qualquer edifício de ciência que possa, ao fim e ao cabo, exigir grande espaço. Várias tentativas têm sido feitas no sentido de redefinir “mente” e “mental” de alguma forma cientificamente segura e adequada. Pensadores competentes como Bertrand Russei e Gilbert Ryle tomaram a si empreender tais redefinições5, mas por alguma razão os resultados nada fizeram- para promover ou facilitar a pesquisa, nem sugerir nôvo enfoque dos proble­ mas básicos. Essa razão, penso eu, é o fato de que tanto Lorde Russell como o Sr. Ryle sustentam, com os positivistas e muitos behavioristas, que as questões metafísicas devem ser postas de parte. A convicção geral dessas escolas é a de que as idéias metafísicas são alheias à Ciência, já que se aplicam ao universo como um todo, a respeito do qual nada se pode realmente saber. Mas a verdade, acho eu, é que tôda análise científica, quando levada suficientemente longe, acaba por remontar- a proposições metafísicas implícitas, que não dizem respeito necessàriamente ao universo em geral, mas sim à natureza das coisas nêle. W hitehead certa vez definiu a Metafísica como “as afirmações mais gerais que possamos fazer acêrca da rea­ lidade” . Façamo-las ou não, o seu conteúdo acha-se pressu­ posto em afirmações menos gerais, porque englobam nossos conceitos básicos; e se êstes não se ajustam a quaisquer aspectos ou itens da realidade acêrca da qual falamos, nós suscitamos problemas insolúveis, como em teoria psicológica impura. A timidez intelectual que inibe o nosso pensamento teó­ rico em Psicologia resulta de um problema filosófico — me­ tafísico se quiserem — ainda por resolver; de um equívoco básico; e a maneira de eliminar êsse incubo não é passar a mêdo por êle, fugindo-lhe ao olhar, mas arrostá-lo e atacá-lo.

(5) B ertrand Russell, T h e Analysis of M in d (Londres e Nov Iorque, 1921); Gilbert Ryle, T h e Concept of M in d (Nova Iorque, 1949). V er também Charles W. Morris, S ix Theories of M in d (C hica­ go, 1932).

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De resto, duvido que uma redefinição de “m ente” represente uma necessidade imediata para pensarmos acêrca da mente, como tampouco uma definição perfeita e satisfatória de “ma­ téria” jamais foi necessária para que a Física tivesse origem. Uma definição do objeto de estudos pròpriamente dito — da “mente” , no caso da Psicologia’ — é a finalidade última da teoria científica, e pode-se, quando muito, esperar que surja assim que a teoria atinja um alto grau de aplicabilidade e de vigor especulativo. O que desde logo é necessário é uma definição adequada de conceitos práticos, em cujos têrmos nosso conhecimento de “ matéria” , “mente” , “vida” ou qualquer que possa ser o campo total de pesquisa, deva ser conduzido. Como salientei no princípio, o maior espantalho da Psico­ logia é o fato de a maior parte das criaturas — os animais superiores, com certeza — ser senciente; e é isso o que real­ mente os distingue de mecanismos inanimados, conquanto apu­ rados, e até mesmo animados, como as plantas, as quais provàvelmente não sentem as influências que lhes governam a vida nem tampouco as suas próprias reações. O campo de estudo da Psicologia foi originàriamente demarcado por essa diferença; e um impasse que força uma ciência a abster-se de seu campo de estudo real por não poder ser cientificamente tratado, indica um equívoco básico, alguma tácita pressuposição metafísica que está errada. O equívoco que nos leva a estéreis teorias da mente é a noção do sentir ffeeling) como uma espécie de entidade sepa­ rada, ontològicamente distinta das entidades físicas e, logo, per­ tencendo a uma diferente ordem ou constituindo um “reino” diferente. Estou empregando a palavra “ sentir” não no sentido arbitrariamente limitado de “prazer ou desprazer” a que os psicólogos a têm amiúde restringido, mas, ao contrário, em seu sentido mais lato, ou seja, para designar tudo quanto se possa sentir. Nessa acepção, ela abrange tanto a sensação quanto a emoção — as respostas sentidas de nossos órgãos sen­ sorios ao ambiente, de nossos mecanismos proprioceptivos às alterações internas, e do organismo global à sua situação geral, os chamados “ sentimentos emotivos” . Sentimos calor, arrepio, esforço e relaxamento; a visão é a forma pela qual o aparelho ótico sente o impacto da luz, e a audição é o modo por que a estrutura auditiva percebe as ondas sonoras; sentimos abati-

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mento físico ou tono elevado, e sentimos expectativa, frustra­ ção, ansiedade, mêdo, satisfação. Todos êsses modos de sentir têm formas características, e um estudo mais acurado de suas formas revela surpreendente semelhança entre elas e as formas de crescimento, movimento, desenvolvimento e declínio fami­ liares ao biologista, formas típicas do processo vital. Isto sugere uma relação mais íntima entre tal processo e o fenômeno da senciência do que jamais o poderia sugerir o seu tratamento tradicional como conjunto de “dados” categoricamente sepa­ rados. A própria noção de “ dados” tende sutilmente a dissol­ ver o “ dado” em muitas entidades; e o artifício peculiar de nossa linguagem que nos permite dizer: “ Sinto assim e assim”, ou: “ Tenho tal ou qual sentimento”, e considerar equivalentes essas duas expressões, favorece e fixa a hipostatização. De modo que buscamos alguma conexão sistemática entre entidades de duas espécies incongruentes, física e psíquica — tecido ner­ voso e sensação; cérebro e mente. O fato psicológico, todavia, é que um organismo sente algo; sentir é uma atividade, não um produto. Ê algo que ocorre no organismo, mas não se trata necessàriamente de um evento isolável, além e acima dos que estamos observando gradativa e indiretamente: as ações do cérebro e suas dependências. A hipótese — e não passa, decerto, de pura hipótese — que vemos vingando para lá de tôda expectativa, é que a sen­ ciência constitui uma fase do próprio processo vital, um a fase estritamente intraorgânica, ou seja, uma aparência que se apre­ senta apenas no interior do organismo em que a atividade ocorre. Cada organismo, portanto, sente suas próprias ações se elas entram nessa fase, e não as de qualquer outra criatura. Dentre a miríade de eventos que compõem uma vida, não são muitos, afinal de contas, os que se sentem — provavelmente apenas os de intensidade inusitada. Essa intensa ação fisioló­ gica exige funções integradas muito complexas, e é, pois, pro­ vável que se limite às estruturas anatômicas mais altas e mais apuradas. Provavelmente envolve sempre algum tecido ner­ voso; talvez ocorra tão-sòmente nessa substância orgânica mais energizada. Este é um problema que só pode ser solucionado através da pesquisa experimental, direta ou indireta. Quando a atividade de alguma parte do sistema nervoso atinge um

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ponto crítico, o processo é então sentido; éste constitui um fenômeno vital característico, conquanto de modo algum ubí­ quo. O montante de ação interna e mesmo o “ comportamen­ to” que pode ocorrer abaixo do limiar de senciência é amiúde surpreendente. Um processo sentido é-o no órgão em que ocorre; poder-se-ia dizer que o processo entrou em fase psíquica e. Tôdas as novas possibilidades de análises e investigação são trazidas para o âmbito especulativo e até experimental ao considerar-se o sentir como parte e parcela da ação vital em vez de como produto “não-material” dessa ação, ou, pior ainda para a Ciência, como um “ correlato epifenomenal” de processos físicos 7. Antes de mais nada, essa hipótese resolve o problema proposto e considerado insolúvel pelo grande neurologista Wilder Penfield, quando disse: “É óbvio que o impulso nervoso é de algum modo convertido em pensamento e que o pensamento pode ser convertido em impulso nervoso. E no entanto isso tudo não esclarece a natureza dessa estranha conversão” 8. Se em vez de “convertido em pensamento” dissermos “ sentido como pensamento”, a investigação da função mental se desloca do reino da misteriosa transubstanciação para o dos processos fisiológicos, onde nos defrontamos com problemas de comple­ xidade e grau difíceis mas não inexpugnáveis em princípio. A expressão “ sentido como pensamento” , aqui substituída por “convertido em pensamento”, suscita outra questão, o poder de um nôvo conceito para concatenar os descobrimentos num campo geral de pesquisa. O “ sentir” , na ampla acepção (6) A palavra “psíquico” é usada algo diferentem ente pelos psicanalistas, especialmente C. G. Jung e seus discípulos, que a em­ pregam para significar o que eu antes cham aria de “funções cerebrais”, sentidas ou não. Mas qualquer palavra que se preferisse seria igual­ m ente apropriada pelos usos especiais; assim, roga-se ao leitor que reconheça aqui um uso especial. (7 ) Essa velha Psicologia de partid a dobrada deu lugar à visão corrente, de duplo aspecto, que considera a conexão entre os eventos físicos objetivos e as experiências subjetivas como transferência de um a “linguagem lógica” para outra. (8) “Some Observations on the Functional O rganization of the H um an B rain”, Proc. A m . Philos. Soc., X C V I I I (1954), 293-97; ver p. 297.

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com que a palavra é aqui empregada, parece ser a base gené­ rica de tôda experiência mental — sensação, emoção, imagi­ nação, recordação e raciocínio, para mencionar apenas as cate­ gorias principais. A experiência sentida se elabora no curso de alto desenvolvimento orgânico, sendo intelectualizada quan­ do as funções do cérebro são corticalizadas, e socializada com a evolução da linguagem e o desenvolvimento de suas funções comunicativas8. Por outro lado, os mecanismos da atividade sentida são formas intensificadas de ritmos vitais, respostas e interações despercebidos; uma psicologia orientada segundo êste conceito do sentir avança desembaraçadamente para o campo da Fisiología, sem correr o risco de reduzir-se a Fisiología e assim perder sua própria identidade. Ainda que no fim das contas pareça um ramo da Fisiologia, a área de sua ramificação possivelmente permanecerá de todo visível, embora sem uma linha divisória nítida (na natureza há bem poucas dessas linhas): é a área em que os processos vitais (provavelmente neurais) começam a ter fases psíquicas, ou seja, a ser sentidos. Talvez nem sempre possamos julgar quais atividades são sentidas; tais juízos, pelo que respeita a criaturas sem fala, opóiam-se em muitas razões especulativas, não apenas em analogias entre o comportamento animal e o humano, mas especialmente em continuidades filogenéticas e homologías estruturais. O sentir, como se sabe, divide-se quase desde o princípio, em duas categorias genéricas, que se podem chamar sensibili­ dade e emotividade. Alguns trabalhos interessantes têm foca­ lizado o problema dessa divisão, especialmente os de psicólogos que postulam um Gemeingejühl original e indiferenciado no qual sensação e resposta emotiva ainda não são distinguíveis 10.

(9 ) Cf. “Especulações Sôbre as Origens da Linguagem e Suas Funções Comunicativas”. (10) Ver, por exemplo, as muitas obras de H einz W erner, que tam bém tratam das correlações entre os diversos sentidos especiais, e entre percepção e m ovimento; esp. Entwicklungspsychologie (Leipzig, 1933) ; “M otion and M otion Perception: a Study in Vicarious Functioning”, / . Psychol., X IX (1 945), 317-27. V er tam bém H . W erner e S. W apner, “Tow ard a General Theory of Perception” , Psychol. R e v., L IX (1952), 324-38; H ans Hoff, “Beitràge zur R elation der Sehspháre und des V estibulapparates”, Ztschr. f. ges. Neurol. u. Psychiat., C X X I (1929), 751-62.

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Talvez a diferenciação dessas duas ordens ocorra muito antes do que qualquer outra, como a que se verifica entre as ações neurais na periferia do organismo e na sua estrutura cerebrospinal. A periferia, que tanto explora o mundo em derredor como lhe resiste, está organizada para emergências constantes; sua enervação se caracteriza por respostas rápidas e seletivas aos estímulos que evocam reações sem preparação. As respostas centrais são mais lentas e algo maciças; o organismo todo se prepara e entra em ação com fôrças conjugadas, seja ela rápida ou lenta. Essa diferença se estende mesmo ao nível psíquico das respectivas ações: estímulos exteriores são sentidos como impactos, eventos não preparados, com que ordinàriamente o organismo se avém em seu curso, mas pode também, defensi­ vamente, fazer-lhes face se forem violentos, assim como faz frente a ruído excessivo, luz intensa e contactos lesivos. As atividades que se chegam a sentir dentro do sistema nervoso central são em geral menos abruptas e não revelam nenhum ponto de origem definido; semelham ações autógenas mais do que impactos do exterior. Em suma, pode-se dizer que as excitações nervosas originadas na periferia são normalmente, embora nem sempre, sentidas como impacto, ao passo que as originadas no centro sao sentidas como ação. Esta distinção é de grande importância psicológica, sobre­ tudo suas anormalidades, as quais amiúde orientam o inves­ tigador para aspectos da vida mental insuspeitados e de grande alcance. Ela permite igualmente algumas definições muito úteis de têrmos, que entram em ação a par do desenvolvimento dos problemas básicos de individuação, participação, projeção sensoria, funções expressivas e envolvimento social — ou seja, problemas ligados dos mais elementares aos mais avançados estágios da pesquisa sistemática — notadamente os têrmos subje­ tivo e objetivo. Experimentamos como objetivo o que quer que seja sentido como impacto, e como subjetivo o que se sinta como ação. O uso dessas definições convida-nos a reconhecer fenômenos muito intrigantes, quase sempre passados por alto, tiiln como a ação recíproca dialética entre os elementos subje­ tivo» e objetivos da experiência humana, a labilidade dêsses lucimos caracteres, os pontos em que desaparecem ou até posslV»lmente se invertem; somos levados a problemas de objeti-

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vação, que são cruciais na psicologia da Arte e mesmo na de todo comportamento simbólico. Contudo, a grande vantagem que se obtém de conceber o sentir como fase do próprio processo vital, em vez de como seu produto ou “correlato psíquico”, é a de que êle contém implicitamente a solução dos debatidos problemas da “consciên­ cia” e do “inconsciente” . Existem atos conscientes, que podem ser lata ou estritamente definidos de acôrdo com o contexto em que a palavra é usada; e existe algo chamado consciência, o modo ou grau geral de sentir que marca as atividades mentais de um criatura como um todo num determinado momento, e que pode variar sob condições que afetem conjuntamente todos os atos em fase psíquica, como o fazem, por exemplo, os ine­ briantes, opiatos e outros produtos químicos. Então podemos falar apropriadamente de “ alterações de consciência” . Mas não há nenhum “reino” nem “ sistema” de consciência, que contenha “ idéias” na acepção de Locke e de seus sucessores, nem “conteúdos da consciência” nem coisas “dadas à consciên­ cia” . Essas enganadoras figuras de linguagem se entranharam de tal forma no nosso jargão profissional que parecem inocentes, e os escritores que rejeitam explicitamente a noção de “ cons­ ciência” como um receptáculo ou uma espécie qualquer de entidade, recairão, amiúde, no mesmo discurso, nas velhas for­ mas de pensamento que acabaram de repudiar. Como nenhum conceito alternativo preencheu realmente o vazio dessas hipostatizações descartadas, elas ainda obsediam nossa imaginação e têm de ser expulsas repetidamente. A melhor garantia de uma formulação conceituai adequada é a de que acabe de vez com o que possivelmente seja pura tentação literária; o emprêgo constante de metáforas e frases feitas que informam teorias obsoletas 11.

(11) Essa tendência ainda é intensam ente acentuada em obras científicas sôbre a evolução e os aspectos mais amplos da Biologia em geral, am iúde de autoria dos pensadores mais competentes, que certa­ m ente não endossariam nenhum sentido literal de sua linguagem her­ dada. “Os planos da N atureza”, “os experimentos da N atureza” , “seus” atos de seleção e zêlo pela sobrevivência das espécies substituí­ ram a linguagem mais antiga da sabedoria e poder de Deus, mas as metáforas familiares ainda são as expressões mais prontas, o que quer dizer que elas ainda concordam com o hábito renegado de pensar em

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No que diz respeito ao “inconsciente”, êle simplesmente deixa de ser necessário, uma vez que tratemos o sentir como urna fase de processos que, na maioria dos seus estágios, não são sentidos. O conceito de “ idéias” armazenadas no “incons­ ciente” é uma herança de antigas teorias da mente. De acordó com o ponto de vista aqui proposto, grande parte da cerebração ocorre abaixo do limiar do sentir, e muitas atividades o percor­ rem, de modo que só brevemente, embora talvez repetidamente, se erguem acima déle. Porém interagem com outras de caráter psíquico vigoroso e especializado, e sua influência se reflete nos processos conscientes; as que deixam por completo de ser sentidas compreendem a maior parte da faina para a qual Freud postulou uma agência especial: “o sistema inconsciente” . Elas provàvelmente não compõem um sistema, mas são parte inte­ grante das funções extensivas que pertencem essencialmente ao sistema nervoso central, com sua mais alta atividade no cérebro. As especializações de sensibilidade, como tantos sentidos especiais, têm sido bem largamente estudadas; não assim as articulações daquilo que, à guisa de distinção, se pode chamar de “emotividade” nos processos especializados, como formação de imagem (sob a influência de impressões sensorias), subjetivação e tôda a gama de emoções, objetivação e projeção sim­ bólica, e, com o advento (aparentemente não abaixo do nível humano) das funções de elaboração e utilização de símbolos, os processos altamente articulados do pensamento discursivo. Tão logo alguém se aventure séria e destemidamente nesse território, os problemas que induzem à pesquisa levam a tôdas as direções e parecem confundir-se uns com os outros. Mas há linhas de ordem entre êles, e certamente diferentes graus de acessibilidade: às vêzes, métodos indiretos são fornecidos por estudo neurológico ou psiquiátrico, ou sugeridos por teorias envolvidas em outros campos tão diversos como a Química, a Engenharia e a (não menos importante) filosofia da arte e da linguagem. têrmos teleológicos- de Providência e causação final. Os cientistas podem encarar tal linguagem como mero ornam ento estilístico, mas para o leigo torna-se pràticam ente impossível abandonar o seu mítico modo de pensar se a própria literatu ra científica preserva-lhe as for­ mas p ara êle.

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Tôdas as investigações dos fenômenos mentais são difíceis se efetuadas com certa profundeza e de forma séria. Não há razão para supor que as mais intrincadas, sensíveis e versáteis estruturas da natureza, organismos controlados por sistemas nervosos apurados, sejam mais fáceis de compreender do que as estruturas com que se defrontam os físicos; nem que um psicólogo se contente em registrar e coordenar cruas observa­ ções molares e enunciar-lhes como “leis” as regularidades mais óbvias. A crescente complexidade e o desafio teórico dos pro­ blemas são sinais salutares de que uma verdadeira ciência está-se desenvolvendo. Tão logo possamos conceber uma continui­ dade de sensitividade física e de impressão sentida, ação física e mentação, teremos por alicerce tôdas as descobertas bioló­ gicas e suas implicações. Em busca dos fundamentos do sentir, podemos aprofundar-nos na filogenética tanto quanto nos leve nossa perspicácia, sem recear que demasiadas explicações fisio­ lógicas nos tom em “meros fisiólogos” em vez de psicólogos — como tampouco se deve preocupar o fisiólogo com que seu crescente aprofundamento no campo das explicações químicas acabe por torná-lo “ apenas um químico” . Os problemas genuinamente psicológicos crescem e se ra­ mificam uns dos outros tão vigorosamente quanto uma inter­ pretação conceitualmente clara da vida mental deita suas raízes no campo do conhecimento mais genérico da vida como tal. Que espécie de processo é o da formação da imagem? Como e em que medida o aparelho visual — dos olhos ao mais distanciado alcance do raio visual, provàvelmente além da área estriada — está envolvido nêle? E êle o mecanismo essencial da fantasia, ou apenas fator contributivo? Pode acaso desen­ volver-se no cérebro dos animais? Que indícios se poderiam buscar — resultados eletroencefalográficos análogos12, ou, em animais', sinais fidedignos de comportamento alucinatório em estados febris ou de intoxicação, comparáveis às condições que conhecemos experiencialmente? A porta está de todo aberta a engenhosos métodos de pesquisa. . E ademais, onde quer que primeiro ocorra a imagética, na escala evolucionária (poder-se-ia hesitar em atribuí-la a répteis ou peixes), que desenvolvimen­

(12) Grey W alter descobriu interessantes efeitos em experimen­ tação hum ana, em que o paciente pode relatar sua imagética.

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tos ou compulsões cerebrais lhe determinam a ocorrência? Atende ela sempre aos propósitos a que atende no cérebro humano? Quais as suas conexões com as emoções, por um lado, e, por outro, com a progressiva intelectualização dos atos mentais no homem? As respostas a essas questões são tortuosas e é raro que se possam encontrar singularmente. À medida que uma teoria evolui, suscita problemas que só podem ser enfrentados em seu próprio contexto em desenvolvimento, com base em pontos prèviamente decididos. Mas o conceito de sentir aqui proposto presta-se a uma construção assaz precisa de muitos têrmos que, de ordinário, são usados de maneira vaga ou evitados por causa de sua imprecisão, mas que poderiam e deveriam estar a serviço do pensamento exato — têrmos como “m ental”, “psicossomático” , “ voluntário” e “potencial”, ou como “projeção” , “ ten­ dência” e “ alvo” . Outros conceitos-chave necessários ao enten­ dimento dos fenômenos psíquicos situam-se ainda mais no inte­ rior dos fundamentos da Biologia, mas a necessidade dêles só aparece quando se consideram as funções de alto nível chama­ das pròpriamente “ psicológicas” ; então, conceitos elementares como “ ato”, “dialética” e “ ritm o” têm de ser interpretados. Talvez que a própria Biologia seja levada a realizar alguns avanços teóricos por via das exigências da Psicologia, da mesma forma que a Física se desenvolveu para fazer frente aos proble­ mas colocados pela Química quando as diferenças entre os “elementos” químicos eram hipotéticamente atribuídas à estru­ tura atômica. Nos limites de um simples artigo, não se pode ilustrar com exemplos uma elaboração de idéias filosóficas que realmente prometa culminar num sólido conceito da mente, mas êsse trabalho está sendo realizado. A melhor indicação de quão promissora é, está em que cada nova construção teorética dá importância e nova coerência ao trabalho já realizado, por vêzes há muito tempo — trabalho minucioso, disperso na lite­ ratura médica, psicológica, -filosófica e de outra espécie, bem como em estudos do instinto, das mudanças evolutivas, dos “ reflexos condicionados”, da percepção animal, da aprendiza­ gem e da habituação; estudos químicos e fisiológicos da ativi­ dade endocrina e da ação de drogas, de indução de crescimento, de efeitos emocionais ( “falsa” emoção), de alterações de cons­

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ciência em sêres humanos. H á fatto material clínico acêrca tia perturbação motora resultante de causas cerebrais visíveis c de causas psicossomáticas, especialmente em aberrações men­ tais como amnésia, acalculia e agnosia de tôda sorte; êsses dados lançam luzes distintas sôbre funções usualmente tão integradas na mentalidade humana que suas origens se obscurecerá, a menos que a mentalidade se desorganize e revele seus fatores insuspeitados. A versatilidade e correlação de tôdas as partes do sistema nervoso central são incríveis. Mesmo os sentidos espe­ ciais, que até hoje têm sido estudados pelos psicólogos quase só com respeito ao seu uso óbvio como guias para as relações do organismo com o mundo exterior, têm revelado outra capa­ cidade nos recentes e tão alardeados experimentos sôbre pri­ vação sensoria: nossa constante estimulação sensoria, mesmo sem comunicar qualquer informação nova, serve para nos man­ ter realistas durante a vida desperta a ponto de não permitir que o cérebro se alucine livremente como nos sonhos. O cérebro, com tôdas as suas extensões, é o órgão da mentalidade animal, e é, evidentemente, um notável desenvol­ vimento nesse órgão o que eleva a mentalidade humana à condição propriamente chamada “ mente” . Seu momento crítico foi provàvelmente o comêço da atividade simbólica; e embora possamos tão-sòmente especular sôbre as causas e a história natural dessa função, fazê-lo é sempre possível e compensador. A hipótese que se apresenta do ponto de vista biológico aqui assumido tem algumas das marcas de teoria fértil, no fato de que apresenta a “mente” como um fenômeno natural, e nos permite atacar o mais intrigante de todos os problemas psico­ lógicos — qual seja, a tremenda diferença entre o homem e tôdas as outras criaturas — em vez de evitá-lo ou menosca­ bá-lo; e também no fato de que explica, por acaso, a razão por que a mente tanto semelha uma entidade separada e agente independente que tem sido universalmente considerada como um homúnculo, um “homem interior” habitando o corpo, dando-lhe vida e movimento e abandonando-o por ocasião da morte. A base dessas alegações daria matéria para um extenso livro e não pode ser aqui apresentada, muito menos discutida. Mas pode-se dar, talvez uma indicação do que torna “mental” um ato, e de como se pode supor que a mentalidade animal

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acabou por se tornar a forma superior característica do homem, a que chamamos “mente” . O sistema nervoso central parece desenvolver-se nos metazoários da mesma forma como as várias espécies desenvolvem os “receptores a distancia” de olfato e visão, e, em níveis bem mais altos, da audição. É essencialmente um mecanismo que governa as atividades do animal todo através de deixas mais especializadas e concentradas do que as condições gerais que atraem e repelem criaturas muito primitivas; e sua forma mais simples é um sistema de nervos complementares aferentes e eferentes que trazem impressões sensorias e enviam correspon­ dentes impulsos aos músculos e a outros órgãos (glândulas, pulmões etc.) a fim de produzir ação adequada. Pelo menos uma glosa é aqui necessária, em substituição a todo o capítulo que realmente seria de mister para definir e justificar o conceito de “ação” e suas especializações, “ ativi­ dade” e “ ato” . Uma breve nota acêrca do significado de “ ato” terá de orientar-nos na presente discussão. Um ato é um gênero especial de evento, sempre num organism o13. O que o caracteriza é o fato de que implica um complexo de tensões, locais ou que afetam todo o organismo, mas talvez sempre com um centro de excitação; todo êste complexo surge como um processo uno e se resolve como tal, em que o ato se finaliza. Os modos de surgimento e resolução variam imensamente. Alguns atos têm fases psíquicas; a grande maioria ocorre sem senciência. A atividade mais problemática do sistema nervoso central de um animal localiza-se entre os condutores aferentes e efe­ rentes, onde o ato perceptivo termina e o ato motor começa em resposta. No chamado “ arco reflexo” que é geralmente considerado o protótipo de todo comportamento anim al,14 há (13) Êsse enunciado talvez tenha de ser modificado em con­ textos especiais como por exemplo os d a Jurisprudência e da Etnologia. (14) U m a hipótese razoável, embora considerada como fato con­ sabido com talvez demasiada confiança. Ontogenéticam ente, parece ser precedida de funções mais complexas, o “reflexo” im ediato resul­ tante de significação com m aturação. V er R. Lorente de Nó, “Vestibulo-ocular Reflex Are.”, Arch. Neurol. & Psychiat., X X X (1933), 245-91.

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um ponto em que a recepção se converte em reação; as estru­ turas neurais que efetuam essa conversão são complexíssimas, • tendem a especializar-se cada vez mais. Nos vertebrados, elas le localizam na medula espinhal e no cérebro, mas neste último (Jrjjilo são amiúde tão esmeradas e também complicadas por Integração com outras unidades funcionais, que os atos reflexos le tornam ingredientes secundários de sua atividade. Os atos mentais são os que se centralizam no cérebro e que são sentidos — isto é, têm alguma fase psíquica. H á muitos atos cerebrais que não são mentais, embora possam modificar atos m entais;15 tôda a atividade atribuída ao “ incons­ ciente” é desta classe. Outrossim, atos que não se centralizam no cérebro podem ser sentidos; por exemplo, em criaturas que iri têm enervação difusa. Organismos dessa espécie podem, mesmo assim, sentir os impactos aos quais respondem, e talvez os seus próprios estímulos — não sabemos. Onde existe um prosencéfalo existem atos especializados, presumivelmente men­ tais: consciência, intento, emoção, expectativa e decisão, desejo 0 talvez satisfação. O focalizar um objeto percebido, como por oxemplo um obstáculo ou o alvo de um salto ou de um arremêsso, é, com tôda probabilidade, um ato mental. Mas como quer que seja, nos animais a resposta total geralmente empenha o corpo todo, isto é, o elemento mental pertence a um padrão dinâmico maior; êste ato físico maior é orientado de princípio a fim pela percepção e pela intenção. O cérebro animal é sobretudo um- órgão cibernético que controla as respostas mani­ festas do organismo às oportunidades e obstáculos que o meio ambiente oferece. No homem, a sensibilidade nervosa é tão grande que res­ ponder com um ato muscular a todos os estímulos de que toma conhecimento conservá-lo-ia numa perpétua dança de São Vito. Muitíssimos atos, iniciados em seu cérebro pela constante per­ cepção discriminativa de vistas, sons, mensagens proprioceptivns, e assim por diante, não têm nenhuma fase patente, mas finalizadas no cérebro; a conclusão déles é a formação de (15) Atos podem expandir-se e incorporar outros atos, ou articulnr-se dentro de um a atividade geral e tornar-se especializados no ¡urAter e no efeito. Tôdas estas caracterizações, necessárias p a ra a conitrução da noção teórica de “ato ”, não poderão ser expostas aqui.

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uma imagem, a ativação de outro conjunto de células que per­ corre seu próprio repertório de formação de palavras etc., talvez todo o apurado processo que constitui um ato de ideação. Um ato dá início a outro; uma grande proporção de eventos intracerebrais como êsses atinge o nível da percepção, e, além disso, êles são principalmente sentidos como ação, ou seja, são subje­ tivos. No presente estágio da nossa História Natural, o cérebro humano parece estar constantemente pensando, lembrando ou sonhando — mais amiúde, no estado de vigília, fazendo tudo isso junto, ou em sucessões calidoscópicas (durante o sono, o sonho parece assumir-lhe o controle quase inteiram ente). O resultado dessa atividade intensificada e em grande parte autoperpetuante é que sentimos de contínuo nossa própria ação interior como uma textura de subjetividade, na qual tais even­ tos objetivamente sentidos como impactos de percepção, e a partir da qual nossos atos subjetivos mais constantes e com­ plexos tais como pensamento concertado ou emoções distintas, sobressaem como formas articuladas. Êsse continuum psíquico é a nossa autoconsciência; quando se rompe, como em alguns estados patológicos, nem mesmo um amontoado de evidências objetivas logram convencer o paciente de que sua mão, pé ou mesmo metade do corpo, subjetivamente “perdidos” , lhe pertencem 16. A conclusão de atos iniciados periférica ou centralmente no cérebro usualmente enceta outros eventos cerebrais; e pode ter sido uma aglomeração intolerável de impulsos o que final­ mente levou ao mais momentoso passo evolucionário no nosso passado filogenético: o surgimento de uma identificação sim­ bólica e espontânea de objetos da percepção, lembranças e imagens livres ou ficções entre si, a qual se desenvolveu numa tendência característica e difusa. Por que eventos e estágios reais esta função se teria desenvolvido é problema tão espan­ toso quanto fascinante, embora não de todo inacessível à inter­ pretação hipotética, a qual, todavia, não há de ser entabulada

(16) A literatura é dem asiado extensa e dispersa p ara relaciona mas alguns históricos de casos e discussões podem ser encontrados em Paul Schilder, T he Im age and Appearance of the H um an Body (Nova Iorque, 1950), e em J. M. Nielsen, Agnosia, Apraxia, Aphasia (Nova Iorque, 1946).

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Mjul. Tudo quanto posso dizer é que de uma relação simbólica Jiflmltiva na qual símbolo e sentido são vistos como uma enti­ dade, 17 se originaram tôdas as formas mais elevadas do penMincnto e da comunicação simbólicos, em virtude da qual a ttuntnlidade do homem, e sòmente a dêle, constitui uma mente. A proporção que sua experiência subjetiva se intensifica e se Integra num ser, sua experiência objetiva é simbolicamente unificada num mundo; a influência recíproca dessas duas cons­ truy es mentais lhe governa a vida, a qual portanto é de fato Uimt “vida da mente” . Esta hipótese, edificada sôbre o conceito do sentir como umn característica dos processos vitais mais energizados e com­ plexos, apresenta a mènte como uma especialidade hominídea, um fenômeno funcional resultante do extraordinário desenvol­ vimento do sistema nervoso central do homem. Ela também fh x o que se pode esperar de uma hipótese bem sucedida — a »«bcr, propicia algumas explicações incidentais a que não visava •xpllcitamente. Uma delas é a luz que lança sôbre uma ten­ dência peculiar de pessoas de praticamente tôdas as idades e culturas a considerar a mente como uma entidade, uma alma uc habita e usa o resto do organismo, o qual, por contraste, o “ seu” corpo. Ao risco de sobrecarregar a paciência do Ulilor, aduzirei brevemente êste único exemplo de tais impliCíçBes teóricas. O cérebro é um órgão, e como qualquer órgão, situa-se dentro de um todo vivo maior, um organismo que ajuda a «linter por meio de suas funções especiais. Se se desenvolve muis do que o necessário para o organismo, apresenta a ameaça »lc tornar-se uma individuação separada (outro princípio funda­ mental que nem sequer foi discutido acima) dentro do indi­ víduo a que pertence. Algo assim ocorre com o cérebro hu-

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(17) Boa soma de provas de tal fase do pensam ento simbólico i* npresentada por E. Cassirer em T h e Philosophy o f Symbolic Forms (Nc:w H a ven, Conn., 1953), esp. Vol. II , e de modo mais abreviado m i seu Language and M yth (N ova Iorque, 1945). U m tratam ento «som brosam ente convergente e um a teoria quase idêntica, desenvolvi­ do» independentem ente e ao mesmo tempo, podem ser encontrados •*m O wen Barfield, Poetic D iction'.A S tudy in M eaning (Londres, I!)Ü8). V er tam bém o meu philosophy in a N ew K ey (Cambridge, Muís,, 1942), caps. 6 e 7.

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mano. Éste recebe tantos estímulos com que tem de se haver, principalmente à sua maneira sistemática própria, que a neces­ sidade de finalizar todo ato começado, que caracteriza os tecidos vivos, leva-o a ter interêsses próprios além dos interesses do organismo: as necessidades de simbolização, expressão, ideação, pensamento lógico (alcançando ordem nas idéias), e especial­ mente de comunicação, o que absorve e governa a caótica ati­ vidade emocional engendrada pelo pensamento e pela fantasia. Temos, portanto, uma espécie de “vida interior”, ou vida da mente, o que torna esta semelhante a um ser separado no corpo. Já que ela obviamente também controla o organismo em geral, é quase inevitável que seja considerada como um agente governante, nada menos que o 'duplo do homem ou sua alma. É necessário mais do que uma idéia, ainda que fecunda, para edificar uma ciência, e em geral cada nôvo vislumbre de vulto torna obsoleto o anterior. No tempo em que o estudo da mente possa de fato assumir o lugar que lhe cabe entre as verdadeiras ciências, o conceito do sentir como está aqui for­ mulado parecerá provavelmente ingênuo, para não dizer anti­ quado. Mas por enquanto talvez ainda sirva à necessidade mais premente de nossos dias, qual seja a de trazer os fenômenos mentais para dentro dos limites do fato natural, de maneira que possamos tratar e conjurar qualquer problema, sem o receio de nos arriscarmos a uma queda metafísica.

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2 ESPECULAÇÕES SÔBRE AS ORIGENS DA LINGUAGEM E SUA FUNÇÃO COM UNICATIVA*

Desde que a teoria darwiniana da evolução humana — fMtreando a origem do homem a partir de ascendentes ani­ mais — alcançou geral aceitação, a origem da linguagem tor­ nou-se cada vez mais desorientadora. A linguagem é tão caracIcrística do homem que antigamente se supunha ter-lhe sido outorgada no momento de sua criação. Mas se êle não foi criudo separadamente dos animais, porém originou-se, como a maioria de nós hoje em dia crê, da mesma forma como aquêles »c originaram — de ascendentes animais mais primitivos — rntíío em algum tempo os seus próprios precursores com certeza liflo falavam. Quando, por que e como o homem começou a fular? Que gerações inventaram êsse grande instrumento social i|iic é a linguagem? Que desenvolvimento da comunicação «ilimai resultou em comunicação humana? Que pensava o prémlamita acêrca de atribuir um pequeno grunhido particular a um determinado objeto como nome dêsse objeto, pelo qual se pudesse referi-lo, pedi-lo, fazer com que outras pessoas penNassem nêle? Como todos os outros pré-adamitas concordaram

"* Êste trabalho foi lido na Universidade de Pittsburgh, sob os auspícios do D epartam ento de Linguagem e publicado em T he Quarterly Journal o f Speech X L V I (1 960), 121-134.

em atribuir os mesmos grunhidos às mesmas coisas? O que foi que levou à concatenação daquelas palavras primitivas em sen­ tenças sintàticamente estruturadas, de significados correlacio­ nados? Até onde sabem os antropólogos, não existe língua humana que não seja discursiva — proposicional — na forma. Suas proposições podem ser bem diferentes das nossas, mas sua estrutura semântica é sempre equivalente ao- que chamamos de um enunciado. A linguagem sempre exprime relações entre atos ou coisas, ou seus aspectos. Ela sempre se refere à reali­ dade — isto é, faz afirmações ou negações — seja explícita, seja implicitamente. Alguns substantivos implicam relações, e onde o fazem, os verbos podem não ser necessários. No latim clássico, o verbo está quase sempre subentendido nas flexões dos substantivos e adjetivos. Os verbos, em algumas línguas, podem implicar o seu sujeito ou objeto ou mesmo ambos, e tornar os substantivos quase desnecessários, como W horf des­ cobriu na língua h o p i.1 Mas nenhuma língua consiste apenas de signos que chamam atenção para as coisas sem dizer algo sôbre elas — isto é, sem afirmar ou negar algo. Tôdas as línguas que conhecemos possuem um vocabulário assaz estável e uma estrutura gramatical. Nenhuma é essencialmente excla­ matoria (consistindo de interjeições como ah! e oh!), ou emo­ cional (constituída de gemidos e cantorias), ou mesmo impe­ rativ a.2 O modo normal da linguagem comunicativa, em tôdas as sociedades humanas é o indicativo; e não há nenhuma prova empírica, tal como uma correlação de crescente discursividade com crescente cultura, que apóie a crença de que alguma vez tenha sido de outro modo. A linguagem pode ser utilizada para anunciar a presença de alguém, para saudar pessoas, para admoestar, ameaçar, expri­ m ir pena ou alegria, ou mesmo dirigir a ação.3 Sempre que (1) Benjam ín Lee W horf, “Languages and Logic” , Technol. R ev. X L III (1941), 270. (2 ) Note-se, no entanto, H . J. Pos, “Réflexions sur le problème de 1’origine du language”, A cta psychol. (1950), o qual sustenta que as primeiras formas de linguagem foram a im perativa e a vocativa (3 ) John Dewey, em Experience and N ature (Chicago, 1925) p. 175, diz que os signos primitivos “tornam-se linguagem apenai quando usados dentro de um contexto de assistência e direção mútuas

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nlftiiém fala de “linguagem animal”, refere-se a tais usos de llgnos observáveis entre os animais. 4 Deixando de lado, por inquanto, a alegada “linguagem” dos insetos sociais,5 podemos rmpregar o térmo signos vocais entre animais. Ora, constitui um pressuposto de senso comum obvio o lulo de que a linguagem humana se desenvolveu a partir de «Igiima forma que tal de comunicação vocal inferior. Mas o «cuso comum é um instrumento deveras ardiloso; tão enga­ nador quanto indispensável. Porque o usamos e temos de iim Í-I o incessantemente, tendemos a fiar-nos déle além das suas verdadeiras credenciais, e a sentir-nos desconcertados se suas Interpretações simples da experiencia malogram. Porém, as concepções fundadas no senso comum, acêrca da natureza e origem da linguagem humana, têm sempre nos levado a dilemas, «té o problema de seu início e desenvolvimento ser, via de regra, abandonado. Mesmo a metodologia desenvolve os seus princípios de «cuso comum. Um déles é o seguinte: se quisermos encontrar uh relações importantes entre dois fenômenos, deveremos come­ çar por verificar o que tais fenômenos têm em comum. Assim t que, ao comparar as comunicações vocais dos animais e dos homens, respectivamente, descobrimos que tudo o que aquêles comunicam por meio do som pode igualmente ser comunicado ntravés da linguagem humana; e parece bastante razoável que tudo aquilo que a linguagem humana pode fazer e a vocalização inlmal não pode foi acrescentado à linguagem animal primitiva, |inra tornar altamente aprimorado o sistema do intercurso verbal.6 Mas a descoberta dêsses elementos comuns não nos últimos só são im portantes ao considerar-se a transformação de «rulos e brados orgânicos em nomes, coisas com significado, ou a iirlgcm da linguagem” . (4) V er, por exemplo, J. B. S. H aldane, “Animal Communinlion and the origin of H um an Language” , Science Progress, C LX X I ( 1955), 385-401; e esp. Julián Huxley e Ludwig K och, A nim al Lanliiltge (Londres, 1938). (5 ) K . von Frisch, Bees: Their Vision, Chemical Senses, and l.nnguage (Ithaca, Nova Iorque, 1950); ver tam bém T h e Dancing fler.r (Nova Iorque, 1955). (6) Éste o ponto de vista expresso p or Charles M orris em The Vnture of M in i (Houston, Texas, 1929), e em Signs, Language and I )k

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leva mais longe. A metodologia baseada no senso comum, da mesma forma que os pressupostos dêste, não produzem mais do que já conhecemos . . . por via do senso comum. Dessarte, talvez convenha pôr em dúvida nossas premissas óbvias, e mesmo renunciar ao método de procurar fatores co­ muns na comunicação animal e humana. Em vez de notar pontos de semelhança, consideremos a diferença cardeal que existe entre elas. Essa diferença está nos seus usos. Tôdas as funções que as elocuções animal e humana partilham — cha­ mar, admoestar, ameaçar, exprimir emoção — são empregos essenciais de sons animais e empregos incidentais de linguagem humana. As funções de vocalização animal são a auto-expressão e às vêzes, possivelmente, a indicação de condições ambien­ tais (como o ladrar de um cão quando êste quer entrar em casa). A principal função da fala é a denotação. A linguagem animal, afinal de contas, não é linguagem; e, o que é mais importante, jamais conduz à linguagem. 7 Cães que convivem com homens aprendem a entender muitos sinais verbais, mas tão-sòmente como sinais, em relação às suas pró­ prias ações. Macacos que vivem em bandos e parecem comu­ nicar-se muito bem, jamais conversam. 8 Mas um bebê que Behavior (Nova Iorque, 194 6 ); e tam bém in John Dewey, op. cit., e alhures. (7 ) V er L. Boutan, “Le pseudo-langage: observations effectées sur un anthropoide, le gibbon (Hylobates Leucogenys-Obilby) ”, Act. Soc. Linéenne Bordeaux, L C V II (1913), 5-77; acêrca dos hábitos vo­ cais dos gibões, observa éle: “les anim aux n’o n t pas u n langage rudim entaire. L eur langage n’est pas u n langage” . (8) V er R. M. Yerkes e H . W. Nissen, “ “ Prelinguistic Sign Behavior in the Chim panzee” , Science, L X X X IX , n. s. (1 9 3 9 ), 585-87. A conclusão dos experimentos relatados é que “a resposta retardada, na ausência de deixas espaciais ou com deixas enganadoras, é extre­ m am ente difícil ou impossível p a ra a m aioria dos chimpanzés. ( . . . ) A bundam as provas de que vários tipos de processos de signos que não o simbólico são de ocorrência freqüente e efetivam ente atuam no chim panzé” (p. 5 8 7 ). Talvez o título “iVonlinguistic Sign Beha­ v i o r . . . ” fôsse mais acurado. A despeito de tais observações, os autores de Anim al Language não hesitam em atribuir conversação aos macacos e até mesmo a animais inferiores aos prim atas, ou a referirem-se ao seu repertório de sons como a um vocabulário com afinidades diretas com a linguagem hum ana. “Os babuínos gregários”, escreveu Sir Julián, que compôs

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apenas conheça meia dúzia de palavras já começa a conversar: “Papai embora” . “ Papai veio? Papai veio.” Pergunta e res­ posta, afirmação e negação, denotação e descrição — essas são as utilizações básicas da linguagem. A fronteira entre o estado animal e o humano é, acho eu, a linguagem; e a brecha que ela assinala entre essas duas espé­ cies de vida é quase tão profunda como a que existe entre as plantas e os animais. Isto torna plausível o fato de não estar­ mos tratando apenas de uma forma superior de alguma função animal geral, mas sim de uma nova função desenvolvida no cérebro homínida — uma função de tamanha complexidade que provàvelmente não uma mas muitas atividades mentais sub-humanas lhe constituam a base. A complexidade das funções e formas vivas é algo que nos inclinamos a subestimar ao especular sôbre as origens dos fenômenos psicológicos. Nos manuais, as explicações dos fatos têm de ser generalizadas e simplificadas para tornar-se compre­ ensíveis aos principiantes; mas tão logo alguém se defronte com a literatura monográfica que apresente casos reais de cresci­ mento, maturação e de conduta de vida, e siga análises reais de função e estrutura, especialmente em Neurologia, conven­ ce-se firmemente da complexidade e variabilidade dos processos vitais. Considerem-se apenas as atividades químicas, que dife­ rem muitíssimo de um organismo para outro no produzir o chamado “fator individualidade” . 9 O u pense-se na organização estrutural do cérebro. No pequeno centro cerebral conhecido como “ corpo geniculado lateral” , onde o nervo óptico deixa de ser um feixe de fibras e abre-se em leque em direção ao córtex o texto, “são animais m uito palradores. A m aior p arte de suas comu­ nicações, tanto no bando como nos seus grupos fam iliares compo­ nentes, fazem-se por meio da voz” (Huxley e Koch, op. cit., p. 5 5). E o que é mais notável: “Os leões m arinhos ( . . . ) como convém â sua natureza sociável e inteligente, são animais ruidosos, e possuem um vocabulário considerável, conquanto os diferentes sons sejam todos variações sôbre um mesmo tem a —■ o fam iliar e roufenho ladrido. O Sr. Koch acredita que os leões m arinhos expressam tam bém diferentes sentidos (como tam bém o fazem os chineses) com m eram ente m udar o tim bre da nota” (i b i d p. 4 9 ). (9) Cf. Leo Loeb, The Biological Basis of Individuality (Springfield, 111., 1945).

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do lobo ocipital; os anatomistas encontraram grande número dos chamados “botões” , pontos de recepção ou emissão de impulsos elétricos, diretamente sôbre as células nervosas, a par das cone­ xões sinápticas dos axónios e dendritos ramificados daquelas mesmas células.10 As potencialidades de tal cérebro para dife­ rentes cursos de atividade atingem a casa dos bilhões e trilhões, de modo que mesmo que mecanismos inibidores eliminem cem mil conexões, o âmbito das respostas possíveis, especialmente nos circuitos aglomerados do prosencéfalo, é pràticamente infinito. É muito salutar para um filósofo que tente conceber o que chamamos de “mente” dar uma boa olhada nas amostras neurológicas, porque em estudos psicológicos comumente vemos e consideramos apenas os produtos integrados — ações, inten­ ções e pensamentos — e, com respeito à linguagem, as palavras e seus empregos. Estas parecem ser os elementos fundamentais da linguagem; são as unidades que conservam sua identidade essencial em diferentes configurações relacionais, e podem cir­ cular separadamente. Elas conservam suas “raízes” a despeito das variações gramaticais, a despeito dos prefixos, sufixos ou outras modificações. A palavra constitui o elemento semântico fundamental da linguagem. Uma vasta classe das nossas palavras — a maioria dos substantivos, ou nomes — denotam objetos, e objetos são unidades que podem entrar em muitas situações diferentes sem perder a identidade, da mesma forma que as

(10) Cf. W. H . M arshall e S. A. Talbot, “R ecent Evidence fo N eural Mechanisms in Vision Leading to a G eneral Theory of Sensory Activity” , in H . Kliiver, Visual M echanisms (1 942), pp. 117-64. “No gato, as terminações do tracto óptico no geniculado dividem-se em diversos ramos, e cêrca de quarenta botões em form a de anéis foram vistos em células de radiação isoladas que talvez provenham de cêrca de dez fibras do tracto óptico. C ada fibra divide-se tam bém p ara form ar sinapses com várias células de radiação. Além dos contactos dos bo­ tões, as células de radiação têm numerosos processos dendríticos, com os quais os terminais do tracto óptico aparentem ente formam sinapses mais numerosas ( . . . ) do que com as próprias células de radiação” (p. 122). Cf. Lorente de Nó, “Vestibulo-ocular Reflex A rc” , Arch. Neurol. & Psychiat., X X X (1933), 245-91. “Em cada célula do sistema nervoso, encontram-se numerosas sinapses, às vêzes vários milhares delas. As sinapses são sempre de espécies diferentes, de dez ou mais ocasionalmente” (p. 279).

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palavras podem aparecer em diferentes enunciados. Esta rela­ ção apóia firmemente a concepção segundo a qual as palavras são as unidades básicas da linguagem. Penso que o são. Porém isto não significa que sejam elementos originais da linguagem, unidades primitivas que foram progressivamente combinadas em proposições. A comu­ nicação, entre pessoas que herdam a linguagem, principia com a palavra — a canhestra palavra-chave do bebê ou do estran­ geiro, que vale por tôda uma sentença. Mas essa palavra tem uma história filogenética, o aparecimento da linguagem, na qual provàvelmente nem ela nem qualquer versão arcaica sua constituiu um elemento. Julgo provável que as palavras tenham emergido de fato através da progressiva simplificação de uma espécie primitiva de elocução muito mais minuciosa, que por seu turno derivou de fontes várias e diversas, e que nenhuma de suas fontes principais eram formas de comunicação animal, conquanto algumas fôssem comunais. Estas proposições sabem a fantasia, e estou bem ciente disso; mas talvez não sejam assim tão fantásticas. Elas apenas se apartam abruptamente das nossas pressuposições básicas habituais. Por exemplo, a idéia de que uma parte relativamente simples de um fenômeno complexo pode não ser um dos seus fatores primitivos, mas sim um produto de simplificação pro­ gressiva, está em desacordo com nossos cânones metodo­ lógicos. Desde que Thomas Hobbes propôs o chamado método genético de compreensão, temos acreditado que os conceitos mais simples em que podemos decompor nossas idéias de um fenômeno complexo denotam os elementos reais dêsse fenô­ meno, os fatores a partir dos quais foi historicamente composto. A interpretação da experiência humana a partir de dados senso­ rios simples e puros, de Locke; a fantasiosa estátua dotada de uma forma de percepção após outra, de Condillac, e, mesmo em nossos dias, o “ atomismo lógico” de Bertrand Russel — tudo isso se apóia nessa crença.11 Mas um estudo empírico mais acurado dos processos vitais da natureza não a confirmam.

(11) U m a crença que, na verdade, tem sido desafiada muitas vêzes, mas que parece estar bem arraigada.

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Muitíssimos padrões avançados de comportamento são aprimo­ ramentos de respostas mais simples, mas alguns são simplifi­ cações de complicadíssimas formas de ação mais primitivas. O mesmo se diga das estruturas que as implementam. Quando o arco reflexo foi descoberto, os fisiologistas julgaram-se na posse de uma chave para tôda resposta animal, visto estar ali uma unidade simples de que se podia esperar engendrasse tôdas as formas superiores por via de um aprimoramento pro­ gressivo. Contudo, Herrick e Coghill, através de cuidadosos estudos de salamandras em estado larval,12 descobriram que o arco reflexo não é de modo algum uma estrutura ontogené­ ticamente primitiva, mas que é precedida de combinações muito mais elaboradas, no embrião, as quais sofrem simplificações até que resulte um circuito aferente-eferente unificado. Essa desco­ berta foi corroborada por Lorente de N ó .13 Um princípio que seja eficaz no desenvolvimento de um indivíduo é ao menos possível no desenvolvimento mais amplo de uma linhagem. Nada há de absurdo na hipótese de que as unidades simples numa função deveras avançada, tal como a fala humana, possam ser simplificações dentro de um padrão vocal mais intrincado e mais antigo. A maioria das teorias sôbre a origem da linguagem pressu­ põe que o homem já era homem, com intenções sociais, quando principiou a fa la r.14 Mas na realidade, quando isso

(12) G. J. H errick e G. E. Coghill, “T he Development of Reflex M echanism in Amblystoma”, ]. Comp. Neurol., X X V (1915). (13) Op. cit., p. 247. Aqui a simplificação favorece a econo-| m ia; mas G erhardt von Bonin, em seu ensaio “ Types and Similitudes”,! Philos. Sc. X III (1946), 196-202, observa que “a prova paleontoló­ gica tem apresentado casos, como as amonitas, em que a evolução produziu formas a princípio cada vez mais complicadas e posterior­ mente cada vez mais simples” (p. 198). (14) Por exemplo, Lorde H aldane, op. cit., diz: “U m filhote de pitecántropo, que gritasse, sem causa, p a ra anunciar perigo ou des­ coberta de alimento, era provàvelmente punido” (p. 398). Mas os animais não castigam os filhos p or suas travessuras; o sopapo que êstes possam receber d a mãe é sempre um a intervenção no seu ato im por­ tuno momentâneo, a fim de lhe p ô r têrmo. O conceito de feito, e depois de louvor ou reprim enda, pertence à vida hum ana.

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«e deu, o homem devia ser um animal — um primata superior, com tendência a viver em bandos como a maioria dos chim­ panzés. E deve ter sido muito diferente dos antigos progeni­ tores dos nossos macacos, que evidentemente careciam, ou pelo menos nunca possuíram em combinação, aqueles traços que resultaram em linguagem. Que traços eram êsses? A fala é uma função tão com­ plexa que provàvelmente não se originou de uma única fonte. No entanto, se ela se desenvolveu naturalmente na linhagem homínida, cada um dos seus constituintes deve ter partido de iilguma atividade animal espontânea, não inventada para um propósito; pois só os sêres humanos inventam instrumentos pnra um propósito preconcebido. Antes da linguagem, não rxiste concepção; há apenas percepções, e um repertório carac­ terístico de ações, bem como uma presteza em atuar de acôrdo com as seduções do mundo percebido. Todavia, na fala tal como a conhecemos, parece haver um ato simbólico articulado, fluente, no qual signos convencionais são enfileirados de ma­ neiras convencionais, sem maiores problemas, e processos Mmilares são suscitados em outras pessoas, tudo tão belamente compassado como numa partida de pingue-pongue. Nada parece mais integral e independente do que o fluxo da linguagem em conversação. Como se a poderia decompor em atos primitivos? Foi da literatura psiquiátrica acêrca da linguagem — «Abre afasia, parafasia, agramatismo, alexia e assuntos afins — que surgiu algo assim como um princípio orientador. A coisa mais desconcertante acêrca das perturbações cerebrais da fula são as estranhas perdas que uma pessoa pode experimentar: perda da forma gramatical sem qualquer perda ou confusão de palavras, de jeito que o paciente só possa falar em “ estilo telegráfico” ; ou inversamente, perda ou confusão de palavras «cm prejuízo da estrutura da sentença, de modo que a lingua­ gem flua em elocuções fáceis, semelhantes a sentenças, mas onde somente as preposições, os conetivos e a pontuação oral «¡lo reconhecíveis; as palavras informativas, de todo mutiladas mi sem sentido.15 Êstes versos de Lewis Carrol (15) V er esp. M. Isserlin, “U eber Agramm atismus” , Ztschr. f. I¡ft. Neurol. u. Psychiat., L X X V (1922), 332-410.

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T was brittig, and the slithy toves Did gyre and gim ble in the wabe * ilustram esta separação da forma de sentença e do conteúdo verbal. Pode haver incapacidade para entender a linguagem falada, mas não para entender a escrita ou im pressa,16 sem, entretanto, qualquer deficiência auditiva; ou inversamente — incapacidade para 1er, mas não para entender a fala — sem que haja qualquer problema ocular.17 H á casos de alexia para palavras mas não para letra s,18 e o reconhecimento, nomeação e emprêgo de números permanecem amiúde intactos, ao passo que nem letras nem palavras podem ser reconhecidas.19 Mais ainda, algumas lesões cerebrais permitem à vítima repetir pa­ lavras que lhe são dirigidas, mas não falar espontáneamente, e outras a tornam incapaz de repetir palavras apenas ouvidas, mas não a incapacitam a proferi-las na linguagem espontânea. H á ainda vários casos registrados de pessoas em quem uma lesão cerebral ocasiona incapacidade de nomear qualquer objeto inanimado, mas não incapacidade de nomear sêres vivos, ou de chamar pessoas pelos seus nomes próprios; e, inversamente, casos de incapacidade para nomear pessoas, animais ou qual­ quer parte déles, mas não de atinar com os nomes de objetos inanimados como relógios e chinelos. (20) Em face dêsses casos peculiares, por vêzes deveras gro­ tescos, ocorreu-me que aquilo que se pode perder separada­

*

N a tradução de Augusto de Campos: “ Era briluz. As lesmolisas touvas Roldavam e relviam nos gramilvos.” (N. do T .)

(16) H. Kogerer, “W orttaubheit, M elodientaubheit, Gebáardeagnosie” , Ztschr. f. ges. Neurol. u. Psychiat., X C II (1 924), 469-83; ver tam bém H . Liepmann e M. Pappenheim , “U eber einen Fali von sogenannter Leitungsaphasie m it anatom ischen Befund”, Ztschr. f. ges. Neurol. u. P s y c h i a t X X V II (1 915), 1-41. (17) Tôdas essas formas especiais estão relacionadas em J. M. Nielsen, Agnosis, Apraxia, Aphasia (N ova Iorque, 1946). (18) Goodhart e Savitsky, “Alexia Following Injuries of the H ead ”, Arch. Neurol. & Psychiat., X X X (1933), 223-24. (19) F. Grewel, “Acalculia”, Brain, L X X V (1 952), 397-407. (20) J, M. Nielsen, “V isual Agnosia for A nimate O bjects: Repo rt of a Case with Autopsy”, T r. A m . Neurol. Assn. (1942), 128-30.

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mente do fenômeno integral da linguagem pode ter sido desen­ volvido separadamente no cérebro pré-histórico ou pré-humano. Eis aqui pelo menos uma noção operante de uma nova maneira de decompor o processo verbal que poderia fornecer uma nova concepção do seu desenvolvimento. Ao separar tais elementos e tentar remontar a algumas tendências pré-humanas plausíveis — conquanto hipotéticas — , defrontamo-nos com o surpreendente fato de que alguns dêsses hábitos, que se pode supor tenham preparado a linguagem, existem de fato no reino animal e estão mesmo muito desen­ volvidos, às vêzes em animais relativamente inferiores. Mas êstes estão longe de possuir qualquer espécie de linguagem. São a matéria bruta e dispersa, necessária, conjuntamente, como alicerce, para que a linguagem pudesse aparecer. No primata pré-humano, devem ter coincidido em algum tempo, a fim de fornecer êsse alicerce. Este princípio de análise faz-nos remontar a muito mais longe nas fases preparatórias do desenvolvimento mental do que a usual abordagem antropológica do problema da linguagem, a qual vai apenas até as supostas formas arcaicas da linguagem genuína. Não apenas as atividades mentais, mas algumas con­ dições somáticas mais brutas que as possibilitam, devem ter-se conjugado na linhagem animal que produziu o gênero humano. Por exemplo, a continuidade da linguagem requer um meca­ nismo corporal que possa manter um longo processo de voca­ lização. Nem todos os animais o podem; é interessante que o chimpanzé, cuja capacidade mental mais se aproxima da hu­ mana, seja. incapaz de sustentar um som vocálico; além disso, êle raramente produz um som simples e puro. Sua laringe é muito complicada; conta mais de uma fonte de suprimento de ar e não possui nenhum controle apurado de um conjunto único de foles ou pulmões para medir seu poder vocal. 21 O gibão tem uma laringe mais simples, mais parecida com a nossa, e também a requerida propensão a proferir longas ululações em côro, semelhantes a canto: ou seja, êle tem as faculdades físicas da vocalização, e o hábito de usá-las em grupo — dois pré-

(21) V er G. Kelemen, “Structure and Perform ance ín Anima Language”, Arch. Otolaryngol., L (1949), 740-44.

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-requisitos da linguagem.22 Mas o seu cérebro é demasiada­ mente inferior para lhe dotar a festiva algazarra de outra coisa que não seja auto-expressão e a estimulação mútua a continuá-la. O utra condição da linguagem é o ouvido epicrítico, que distingue um som de outro, além da distinção usual de ruídos de acôrdo com suas origens — isto é, além de distingui-los como chamados de outras criaturas, como passos, talvez como chapi­ nhar de água, e, quanto ao mais, como ribombos e rangidos desprovidos de significado, ou nada. A capacidade epicrítica de audição requer uma cóclea altamente especializada e uma distri­ buição do nervo auditivo no cérebro, que não se encontra em todos os animais superiores, map existe em vários pássaros — um desenvolvimento anômalo num tipo relativamente inferior de cérebro. Os pássaros que imitam o canto de outros pássaros e os sons da língua humana, por onde conhecemos que possuem um ouvido altamente analítico (o que as descobertas anatômi­ cas confirm am ),23 possuem algo mais que é pertinente às nossas próprias faculdades: o controle, pelo ouvido, do aparelho vocal, que parece ser rudimentar na maioria dos animais, embora os mecanismos de audição e de produção de som estejam sempre associados — mesmo no grilo, que tem os órgãos periféricos de audição situados nos fêm ures.24 A espécie de realimentação (feedback) que amolda uma prolação de acôrdo com sons ouvidos, e possibilita a imitação formal, constitui uma outra especialização além do órgão receptor epicrítico. Os cães pos­ suem um receptor sensível, o ouvido que discrimina sons arti­ culados dentro de uma categoria geral, pois podem responder seletivamente a uma gama extensa de signos verbais, e Pavlov descobriu que a discriminação canina de altura tonal é superior à humana; mas os cães jamais demonstram nem o mais ligeiro impulso ou capacidade de imitar sons que não lhes sejam próprios. (22) L. Boutan, op. cit., esp. pp. 30-31. (23) O tto Kalischer, “Das Grosshirn der Papageien in anatomischer un physiologischer Beziehung”, Abhandl. kõnigl.-Preuss. A kad. Wissensch., IV (1905), 1-105; um estudo baseado em dez anos de treinam ento, operação, retreinam ento e finalmente autópsia de cêrca de sessenta papagaios falantes. (24) Louis Guggenheim, Phylogenesis of the Ear (C ulver City, Calif., 1948), p. 78.

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Encontramos, assim, vários pré-requisitos para a linguagem: vocalização uniforme e variável, tendência à expressão oral responsiva, audição epicrítica e controle aprimorado de vocali­ zação graças ao ouvido que implementa a imitação — prefigu­ rados nos padrões de comportamento de animais bastante diver­ sos. Todavia, nenhum dêsses animais possui linguagem. Êsses traços são apenas algumas de suas condições, e mesmo assim não coincidem em nenhuma espécie. No primata proto-humano, devem ter coincidido — não apenas entre si como também com alguns outros, que podem ou não ocorrer em outras criaturas. A função decisiva na formação da linguagem advém, acho eu, de outra fonte muito diversa dos complexos vocal-auditivos que lhe servem à expressão normal. Essa outra fonte é o sistema visual, onde a imagem visual — o paradigma do que, portanto, chamamos de “imaginação” — quase com certeza é produzida. Como é engendrada uma imagem visual e quais os meca­ nismos nervosos que participam da sua criação — eis o que ninguém ainda descreveu; reuni algumas idéias a respeito, mas não há necessidade de nos determos nelas. O importante é que as imagens são as coisas que naturalmente assumem o caráter de símbolos. São “ a matéria de que se fazem os sonhos”; êstes tendem a assumir um valor simbólico, aparentemente muito cedo nas nossas vidas, e os peculiares emaranhamentos de signi­ ficado na sua imagética, a vaguidade das conexões, a esponta­ neidade de suas apresentações, e a excitação emocional de qual­ quer sonho muito vivido bem podem refletir a natureza da experiência simbólica primitiva. O velho problema de como as palavras se vinculam aos objetos como nomes distintivos seus, e de como se generalizam de modo a denotar espécies de coisas antes que indivíduos, pode ser solucionado se abandonarmos a noção de que o homem primitivo inventou a linguagem, estabeleceu nomes para as coisas e outras convenções básicas. Não creio de jeito nenhum que os nomes tenham sido originalmente atribuídos às coisas; nomear é um processo que pressupõe a linguagem. Agora que a possuímos, podemos dar nomes a novos cometas, a novos engenhos e, constantemente, a novos bebês. Mas, na formação da linguagem, julgo mais provável que estruturas fonéticas defi­

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nidas já cstavam à nossa disposição, desenvolvidas em outro contexto, e que as significações lhes sobrevieram — vaga e variàvelmente no princípio, mas por via de processos naturais que tendiam a especificá-las e a fixá-las. Tais significações não eram valores indiciários pragmáticos de sons específicos para coisas específicas; muito embora diversos psiquiatras opinem em contrário,25 a denotação primitiva não era o mesmo que o uso de um nome próprio. Quando as palavras tomaram forma, elas desde o princípio tinham um desígnio geral; suas conota­ ções eram-lhes inerentes, e suas denotações eram quaisquer que se ajustassem a êste sentido inerente. Agora que pontifiquei sôbre o que ocorreu, seja-me permi­ tido explicar por que penso que algo assim tenha ocorrido, e como seria responsável pelo maior de todos os mistérios da linguagem — o fato de esta ser simbólica, quando nenhuma manifestação animal demonstra qualquer tendência nesse senti­ do. Os fatôres biológicos que determinaram esta grande mu­ dança da função vocal foram, creio eu, o desenvolvimento da imagética visual no cérebro humanóide, e o papel que ela passou a representar numa experiência deveras estimulantes: a dança festiva. (A maneira como os sêres pré-humanos evoluí­ ram do comportamento animal para a dança tribal formalizada constitui outro tema apropositado que aqui não posso versar.) A imagem mental, penso eu, foi o elemento catalisador que precipitou o sentido conceituai da linguagem.

(25) Sylvano Arieti, “T he Possibility of Psychosomatic Involv m ent of the C entral Nervous System in Schizophrenia”, J. Nervous & M ental Disease, C X X III (1 9 5 6), 324-33, esp. 332; onde êle (com cujos pontos de vista acêrca d a formação de símbolos eu sob alguns aspectos concordo, como dentro em pouco se p ate n te ará), sustenta p or exemplo que num a fam ília prim ordial um bebê podia balbuciar “m a-m a” e associar essa emissão vocal “ com a m ãe ou com a imagem da m ãe” , e que “se um irmão seu entender que o som ma-m a se refere à m ãe, a linguagem se origina. ( . . . ) Mas, nesse nível, o som ma-ma denota, porém não possui m uito poder de conotação” . V er tam bém J. S. K asanin, “T h e D isturbance of C onceptual T hinking in Schizophrenia” , in Language and T hought in Schizophre­ niaj org. p or J. S. K asanin e N. D. C. Lewis (Berkeley, Calif., 1944): “ ( . . . ) quando a criança diz ‘mesa’ ou ‘cadeira’ ela não se refere a mesas nem a cadeiras em geral, mas sim à mesa ou à cadeira que esteja em sua casa ou que lhe pertença”.

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Como já assinalei, as imagens, mais do que qualquer outra coisa que conhecemos, têm propensão a se tornarem símbolos; têm diversos atributos que atuam conjuntamente para as tor­ nar simbólicas. Assim, o fato de que os Calibans que nos pre­ cederam sofressem uma peculiar especialização nos seus sistemas visuais é outra das coincidências evolucionárias, de modo que produzimos imagens mentais até mesmo sem querer — com mais êxito, na verdade, durante o sono. Obviamente, há uma razão por que isto seja uma espe­ cialidade homínida, e podemos pelo menos conjeturar o que ocasionou o nosso hábito singular e tão pouco prático de visua­ lizar, com e sem estímulo dos órgãos terminais, dos olhos. O cérebro humano presumivelmente se desenvolveu, como o de qualquer animal que conhecemos, como um órgão intermédio entre os impulsos aferentes e sua conclusão eferente, ou seja, seu consumir-se na ação. Nos animais, tipicamente, todo estí­ mulo que chegue a verificar-se é consumido em algum ato patente, o qual pode ser desde um repuxão reflexo da pele até um ato dirigido da criatura inteira despertada. Mas as men­ sagens que adentram nossos cérebros são tantas e tão várias que seria impossível e extenuante consumir cada impulso aferente numa ação manifesta. Assim é que muitíssimas impressões, sobretudo as incontáveis impressões visuais que recebemos, têm de finalizar-se no cérebro; a resposta cerebral é então a for­ mação de uma imagem. Este processo automático pode ocorrer nos animais também, mas esporádicamente e com menor inten­ sidade, e pois sem conseqüências ulteriores. Se os animais têm imagens, não creio que se importem com elas nem que as uti­ lizem; tais visões fugazes serão talvez semelhantes às nossas pós-imagens, meros produtos automáticos da estimulação sensória.26 Nos sêres humanos, porém, a formação de imagens tornou-se uma conclusão normal do ato de focalizar a vista. E como,

(26) Essa diferença de freqüência, intensidade e claridade da imagens nos cérebros anim al e hum ano é adm iràvelm ente corroborada e anatom icam ente explicada p o r Niessl von M ayendorf, “U eber den vasomotorischen Mechanismus der H alluzinationen”, Ztschr. f. ges. Neurol. u. Psychiat., C X IV (1 9 2 8 ), 311-22.

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durante a vida desperta, é mais fácil ver as coisas do que deixar de vê-las, a produção de imagens é geralmente passiva e inintencional, e no curso normal do desenvolvimento torna-se logo tão rica que há urna constante atividade imagética. Tôda impressão é capaz de produzir uma imagem, ainda que breve e incomple­ tamente, e dêsse rebuliço emergem, a intervalos, visualizações um pouco mais definidas. As diversas características que predispõem a imagem men­ tal a tornar-se simbólica são; em primeiro lugar, esta pro­ dução espontânea, quase automática; em segundo lugar, uma tendência dos processos de formação de imagem a se enredarem e a fundirem seus resultados; depois, a sua origem na percepção real, que dá à imagem uma relação óbvia com as fontes de percepção — as coisas percebidas — , uma relação que deno­ minamos de “ representação” ; e ainda, o fato importantíssimo de que uma imagem, uma vez formada, pode ser reativada de muitas formas, por tôda sorte de estímulos externos e internos; e finalmente, o seu envolvimento com a emoção. Consideremos o que cada um dêsses traços tem a ver com a elaboração do símbolo primitivo, e com o recrutamento dos órgãos vocais para sua projeção. Um mecanismo biológico em vias de asumir uma função nova se desenvolve, usualmente, pelo menos um pouco além das necessidades de sua função original — ou seja, a sua ati­ vidade tem uma certa margem de folga, às vêzes chamada “energia excedente” , que permite desenvolvimentos imprevi­ síveis. Não é provável que um nôvo desenvolvimento se baseie em ocorrências raras, já que para estabelecer-se tem de sobre­ viver a muitos malogros; o que significa que tem de principiar repetidas vêzes — isto é, as condições para tanto têm de ser generosas. Assim, num cérebro onde a imaginação devesse assumir nova e momentosa função — simbolização — a pro­ dução de imagens teria de ser uma atividade vigorosa, a gerar imagens incessantemente, de modo que a maioria delas se pu­ desse desperdiçar, e a atividade simbólica ainda pudesse reco­ meçar muitas vêzes, assumindo vários graus, sem interferir com as funções normais do cérebro na economia orgânica total. De modo que a normalidade e a facilidade de produção de

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imagens preencheram um dos primeiros requisitos para o sur­ gimento de uma função mais alta.27 O segundo aspecto importante das imagens mentais para a formação de símbolos é o fato de que os processos da ima­ ginação parecem particularmente propensos a se afetarem uns aos outros, a misturarem, enredarem e partilharem seus cursos de atividade, inibindo ou reforçando impulsos nervosos em progresso, e, especialmente, induzindo tôda sorte de reações vizinhas. Por conseguinte, seus produtos tendem a se fundir: as imagens que compartem alguns traços fundem-se numa só imagem que salienta êsses traços, os quais são dêsse modo evidenciados e dominam o tumulto dos outros caracteres que, por sua vez, são enfraquecidos pela fusão. As imagens, por­ tanto, modificam-se entre si; umas dominam outras, e tôdas tendem a simplificar-se. A ênfase é o que lhes confere contor­ nos e inclinações bem como outros elementos estruturais. A ênfase constitui o processo natural de abstração, pelo qual nossas representações acabam por diferir das percepções diretas que as ensejam. Rudolph Arnheim em seu livro A rt and Visual Perception,28 penetrou fundo nas distinções entre as leis da percepção e as da representação. O ponto que nos interessa aqui é que a faculdade do pensamento simbólico abstrato, o qual representa tão grande papel na mentalidade humana mais avançada, apóia-se num talento de visão abstrativa relativamente primitivo, que surge com a natureza da imagem visual.29 (27) Êsse fato é mencionado por P. L. S hort em seu trabalho “T he Objective Study of M ental Im agery”, Brit. J. Psychol., X L IV (1 953), 38-51, onde escreve: “ ( . . . ) no pensar, as imagens que mais habitual e prontam ente ocorrem é que são im portantes, não as que se supõe sejam as mais “intensas” ou “vividas” num dado momento. A simples aparição de imagens muito vividas pode não estar de modo algum associada com a tendência de ter e de usar imagens” (p. 3 8). Êle n ota ainda a im portância da conexão entre os produtos mentais d a percepção e as imagens centralm ente produzidas. (28) Berkeley, Calif., 1954. (29) Alguns comentários interessantes sôbre a visão abstrata podem igualmente ser encontrados no trabalho de Leo Steinberg “ The Eye is a P art of the M ind”, Partisan R ev., X X (1 9 5 3 ), 194-212; re­ publicado em Reflections on A rt (Baltimore, 1958). H á outrossim vários estudos dos processos neurais implicados nessa abstração sensória ; p o r exemplo, D. M. Purdy, “ T he Structure of the Visual W orld” ,

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A terceira condição principal é simplesmente o fato de que as imagens derivam dos produtos mentais da percepção, e o processo de sua derivação é uma continuidade original de um evento periférico, o efeito de um objeto visível sôbre o ôlho, com os eventos nervosos ulteriores que culminam na formação de uma imagem no cérebro. O ôlho é o órgão ter­ minal do aparelho visual; o que ocorre por trás da retina, e especialmente, talvez, por trás do quiasma, é o restante de nossa vista, com tôdas as suas reverberações, complicações e efeitos assombrosos. O reconhecimento de uma imagem como algo conectado ao mundo exterior é intuitivo,30 da mesma forma que a resposta a coisas exteriores em percepção visual direta — exibida por todos os animais dotados de visão — é instin­ tiva. Êste reconhecimento de imagens como representações de coisas visíveis é a base sôbre a qual se assenta tôda a impor­ tância pública dos símbolos — a sua utilização como referência. Mas deve ter havido outra coincidência para fazer com que isso acontecesse. O quarto fator, crucial, é realmente parte dessa labilidade da imaginação, e abertura à influência, que já assinalei; po­ rém mais precisamente, é o fato de que a ocorrência de uma imagem pode ser induzida por muitíssimas e diferentes espécies de estimulação, procedentes tanto do exterior como do interior do organismo.31 Amiúde não se pode determinar o que sus­ cita uma imagem mental; às vêzes, tôda uma situação que reaparece com freqüência a suscitará; por exemplo, sempre que Psychol. R e v., X L III (1936), 59-82), esp. a P arte I I I ; o ensaio tecno­ lógico de Fred Attneave “Some Inform ational Aspects of Visual Per­ ception” , Psychol. Rev. L X I (1 954), 183-93; o Cybernetics de Norb ert W iener (Nova Iorque, 19 4 8 ); e especialmente um estudo de au toria de W . H. M arshall e S. A. T albot “Recent Evidence for N eural Mechanisms in Vision L eading to a General Theory of Sensory Acuity” , in H . K lüver, Visual M echanisms (1 9 4 2 ), pp. 117-64. (30) Cf. D. Forsyth, “T he Infantile Psyche, w ith Special Reference to Visual Projection” , Brit J. Psychol., X I (1 9 2 0 /1 ), 263-76. (31) D . Forsyth, op. cit., p. 265: “O órgão visual ( . . . ) trans­ mite um a onda centrípeta de excitamento que é registrada n a m ente como um a impressão mnemónica da excitação. Essa m em ória visual se associa com excitações interiores (som áticas), e pode subseqüente­ m ente ser ativada de qualquer das duas direções em que estabeleceu conexões excitativas”.

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a pessoa, num embarcadouro, sinta o odor de água salgada tal­ vez forme uma imagem mental de seu primeiro barco. O sim­ ples cheiro do sal pode evocá-lo. Pode-o igualmente a menção do nome do barco. Esses são estímulos mais específicos, mas pode havê-los de tôda espécie. Essa presteza em ocorrer num contexto total, mas também de ser delineado por pequenos fragmentos dêsse contexto encontrados em outros cenários, é o traço que liberta a imagem mental de sua conexão original com a visão periférica, ou seja, da coisa que primeiro repre­ sentou. Acrescente-se a isso a tendência das imagens que pos­ suem traços comuns a se fundirem e a comporem uma imagem simplificada — isto é, a tornarem-se esquemáticas — e ver-se-á quanto da nossa formação de imagens se poderia tornar em atos casuais de ideação, sem nenhum vínculo mnemônico específico com experiências perceptivas. Não são apenas as imagens pro­ priamente ditas, que partilhem um caráter esquemático, que se fundem, mas também suas funções representacionais; qualquer delas pode representar o objeto da percepção original de qual­ quer outra; isto é, como representações, famílias inteiras delas se podem substituir umas às outras. Qualquer imagem Je gafanhoto pode representar qualquer gafanhoto que realmente vimos e que não tôsse tão distinto a ponto de suscitar uma imagem diferente demais para ajustar-se ao esquema. Se tal singularidade aparece, nós formamos a imagem de um tipo especial de gafanhoto. Com a sua libertação da percepção, a imagem se torna geral; e tão logo ela possa representar alguma outra coisa que não o seu próprio estímulo original, eis que se torna em símbolo. Similaridades esquemáticas de imagens dis­ tintas em outros aspectos possibilitam recordar um objeto por meio da imagem do outro. Assim, por exemplo, o contorno da lua nova é semelhante ao de um barquinho encurvado. Podemos ver a lua como uma canoa, ou uma canoa como se fôsse a lua. Qualquer comparação reforça a percepção da forma. Este é o processo natural da abstração. Falamos da foice, da bola, do disco da lua nas suas várias fases. No pen­ samento desenvolvido, sabemos se nos referimos à lua ou ao barco — ou seja, sabemos qual imagem substitui qual. Mas os estudos acêrca das funções simbólicas que ocorrem nos so­ nhos, nos mitos e em algumas psicoses apóiam a crença de que isto é um sóbrio vislumbre provàvelmente não muito primi­

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tivo. 32 Ao nível do tráfico pré-humano de imagens, a questão é antes a de saber como uma imagem, mesmo sem apoio sensório, se torna dominante sôbre outras, de modo que estas sejam suas representantes simbólicas na imaginação. Aqui, o mecanismo parece ser a conexão da imagética com a emoção. No complexo de imagens, a mais carregada de emo­ ção torna-se a imagem dominante, que as outras tôdas repetem, reforçam e representam no próprio cérebro, mesmo abaixo do nível de consciência — no limbo daquilo que Freud chamou de “o trabalho do sonho”, pelo qual se elaboram as imagens significantes, os símbolos para concepção. Esses são, penso eu, os principais fatores físicos e de comportamento que devem ter existido, conjuntamente, na línira espécie animal que desenvolveu a fala: o poder da voca­ lização aprimorada, o ouvido discriminativo que distinguía pa­ drões de sons, os mecanismos nervosos que controlavam a elo­ cução com ouvir sons exteriores e interiores, e a tendência a proferir longos trechos sonoros em ajuntamentos de muitos indivíduos — isto é, o hábito da ululação conjunta — com considerável articulação que reaparecia mais ou menos no mes­ mo ponto em tôdas essas ocasiões, e, nesses mesmos sêres, a atividade mental superior que resultava na produção de ima­ gens visuais. As reuniões eram provàvelmente rituais comu­ nais, ou antes, medonhas precursoras estéticas do ritual genuíno, (32) As fontes que substanciam esta proposição estão muit dispersas e são numerosas demais p ara serem citadas. U m dos seus primeiros enunciados explícitos encontra-se num artigo de H erbert Silberer que se tornou clássico — “U eber die Symbolbildung” , Jahrb. f. psychoanalyt. u. Psychopathol. Forsch., I I I (1 912), 661-723, repu­ blicado em tradução inglesa, infelizmente com algumas supressões, na antologia de David R apaport, Organization and Pathology of T hought (N ova Iorque, 1951). Silberer escreveu: “U m povo que fala em m etáforas não experim enta como metafórico o que diz; os símbolos que usa são considerados po r êle não como símbolos, mas antes como realidades ( • • • ) ” (R apaport, p. 212). C ertam ente contradizem de todo a afirmação de Jean-Paul Sartre em L ’Im agination (Paris, 1948), p. 104, segundo a qual jam ais se tom a um a imagem de fantasia por um produto m ental da percepção: “ Aucune image, jamais, ne vient sc mÊler aux choses réelles” (p. 109). E mais adiante: “ ( . . . ) il m ’ c«t impossible de former une image sans savoir en même temps quo jc forme une image ( . . . ) ” (p. 110).

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sendo as ululações os elementos vocais da .dança primitiva. Esta idéia foi há muito proposta por J. D onovan,33 mas ninguém parece ter-lhe prestado muita atenção. Adotei-a num livro anterior, Philosophy in a N ew Key, e quanto mais reflito sôbre ela mais a julgo sólida. A idéia de Donovan era a de que as palavras não eram os elementos primitivos da elocução humana quando esta se tornou simbólica, mas sim que o significado primeiramente resultou de passagens mais longas, as quais se fragmentaram ou condensaram gradualmente em trechos sepa­ rados, cada qual com seu sentido fixo próprio. Mas o que êle não disse — e eu não vi, há vinte anos atrás — foi como sobreveio significado conceituai a quaisquer produtos vocais. Eu certamente nunca compreendi o papel da imagem mental privada na preparação da linguagem simbólica — que o meca­ nismo todo de simbolização foi provàvelmente elaborado no sistema visual antes que sua fôrça pudesse ser transferida ao domínio vocal-auditivo. Agora, com base nesta útil conjetura, vejamos como a transferência seria possível e não demasiado improvável. No esmerado desenvolvimento da dança tribal todos os indivíduos da horda primitiva familiarizaram-se com os sons vocais pertencentes a várias seqüências de passos e gestos, alguns talvez miméticos, outros simplesmente atléticos, mas levados até o clímax da excitação. O “canto” , ou parte vocal da dança, tornou-se cada vez mais diferenciado com a evolução dos padrões coreográficos. Em pontos culminantes, havia indu­ bitavelmente brados especiais e gritos de açulamento. Nos cérebros ultra-excitados dos celebrantes, devem-se ter evocado imagem nesses momentos de ação e vocalização especial — imagens que tendiam a reaparecer nesse contexto, até que para cada indivíduo suas próprias imagens simbólicas eram erigidas nos padrões familiares dos rituais tribais. Uma passa­ gem de dança exige tempo e energia e usualmente várias pessoas para ser produzida, mas o ingrediente vocal pode ser produzido, com pequeno esfôrço e com um mínimo de tempo, por qualquer indivíduo. Ao lembrar-se da dança, o elemento vocal lhe viria à ponta da língua; da mesma forma que a lem­ (33) “T he Festal O rigin of H um an Speech”, M in d , X V I, o. s. (1 891), 498-506, e X V II (1 8 9 2 ), 325-39.

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brança do brinquedo geralmente fará a criança trautear a canção: “Pirulito que bate-bate. . . ” sem pensar em nenhum pirulito mas sim no brinquedo. Dessa forma, as pessoas podiam reativar suas imagens simbólicas emo­ cionais por meio de um fragmento das canções festivas. Se a ação da dança é, digamos, brandir uma clava, ou semelha tal ato expansivo e familiar, as várias imagens evocadas serão de uma clava, ou clavas, ou de erguer ou brandir clava, ou de bater umas contra outras. É a imagem que simboliza a ativi­ dade e os objetos nela envolvidos. A imagem é o efeito mágico do padrão sonoro quando êste é entoado fora da dança. A imagem é uma concepção pura; não assinala nem requer o seu objeto, mas denota-o. É claro que êsse símbolo denota­ tivo, a imagem, não origina nenhuma comunicação, pois é pura­ mente privado. Mas as coisas figuradas são públicas, e os sons que suscitam imagens são públicos; afetam a todos por efeito de evocar imagens mais ou menos nos mesmos momen­ tos da ação coreográfica. Dentro de um âmbito muito amplo, não importa quão diferentes sejam as imagens privadas. Elas são símbolos equivalentes do ato ou dos objetos que marcam aquêles pontos do ritual a que os trechos vocais pertencem, os quais podem ser pronunciados fora do contexto por qualquer indivíduo; e subitamente a frase adquire significado, outros sêres entendem, especialmente se um objeto conotado está fisi­ camente próximo, à-parte de seu contexto ritual. Presumo que os primeiros significados dessa vocalização secularizada tenham sido muito vagos; brandir uma clava, ferir nm homem com uma clava, matar homens e animais, rodopiar e bater, ser atingido, brandir uma clava para a Lua — tudo isso pode ter alternativamente pertencido a uma longa prolação, em que as partes articuladas separadas não careciam de ter qualquer significação separada.34 Uma vez, porém, que tais passagens fôssem usadas para evocar idéias, a sua vocalização se modificaria rápidamente, em especial por redução à voz falante, a qual pode pronunciar os sons com maior rapidez e menos (34) N a Encyclopaedia Britannica (1957 ed., s. v. “ Language” ), O tto Jespersen expressa a mesma opinião.

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esfôrço do que qualquer voz cantante. Esta elocução de todo dia tenderia a acentuar vogais e consoantes — isto é, articula­ ções orais — para substituir distinções tonais. Algumas lín­ guas hoje em dia utilizam distinções tonais, sem timbre preciso, à guisa de artifícios semânticos. Na maioria das línguas huma­ nas, porém, os tons servem apenas à pontuação e ao colorido emocional. O grande passo do antropóide ao antropos, do animal ao homem, foi dado quando os órgãos vocais se moveram para registrar a ocorrência de uma imagem, e suscitaram uma ocor­ rência equivalente em outro cérebro, e as duas criaturas se referiram à mesma coisa. Nesse ponto, o hábito vocal, que por muito tempo servira para a comunhão, assumiu a função de comunicação. Suscitar idéias uns nas mentes dos outros, não no curso da ação, mas no da emoção e da memória — ou seja, em reflexão — equivale a comunicar acêrca de alguma coisa, e isto é o que nenhum animal faz. Daí em diante, a linguagem provavelmente avançou com impetuosa rapidez; as frases vagamente articuladas da horda reunida contraíram-se em tôrno de seus núcleos de sentido e originaram palavras longas, ricas, gerais, e fragmentaram-se em palavras mais especificamente denotativas, até que praticamente todo o repertório fonético se formalizou em fragmentos sepa­ rados, e a linguagem entrou no estágio sintético de construir sentenças com palavras — o reverso do seu prisco processo de articulação. O nôvo móbil da comunicação deve tê-la impelido a difundir-se com rapidez. Nesse estágio, se não antes, a efe­ tiva evocação de imagens tornou-se dispensável. Não preci­ samos da visão para aprender a falar. A função simbólica passou para o ato da fala propriamente dito, e daí finalmente à própria palavra, de modo que mesmo a audição pode ser protèticamente substituída. Porquanto uma vez completa a verbalização, temos não somente a fala mas a linguagem. Creio que também houve outros empregos de elocuções parecidas com a fala — o princípio de rastrear os elementos da linguagem que possam ser perdidos separadamente em virtude de avarias cerebrais, mesmo hoje leva a muitas direções. Os nomes próprios podem não ter tido a mesma origem que os verdadeiros substantivos, e os numerais são outrossim algo

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diferente; palavras onomatopéicas parecem também ter tido a sua própria gênese, independentemente da fonte principal da linguagem. Todavia, sob a influência da linguagem, tôdas as manifestações orais tendiam a transformar-se em palavras. Êste é ainda o caso. Por exemplo, os nossos expletivos, que não têm nenhum significado verbal real na linguagem de hoje, sempre lhe caem sob a influência. Só mesmo um alemão diz “ ach” — a maioria dos brasileiros não pode sequer pronunciar isso; êle diz “ au” onde nós dizemos “ ai!” ; e quem senão uma francesa poderia jamais dizer “ ou-la-la” ? Tão logo a comunicação teve início, a ascensão da menta­ lidade humana pode ter sido cataclísmica, a questão de umas poucas gerações a contar de onde quer que tenha começado. Deve ter sido uma emocionante e desconcertante fase de nossa história. Temos traços dela mesmo hoje, no temor sagrado com que muitas pessoas pronunciam nomes divinos, bênçãos, maldições, fórmulas mágicas — tudo isso fragmentos verbais, imbuídos do místico poder de pensamento que veio com a fala. Ao examinar retrospectivamente todos êsses processos que devem ter-se conjugado para originar a linguagem, surpreen­ dem-me uns quantos fatos de relêvo: em primeiro lugar, a pro­ fundidade a que vão os alicerces, sôbre os quais se erige aquela que é a mais alta consecução de tôdas as criaturas; em segundo lugar, a complexidade de tôdas as funções vivas, dado que qualquer daqueles traços preparatórios era em si mesmo um complexo altamente integrado de muitos processos nervosos; em terceiro lugar, o fato de que nenhum dos constituintes do nôvo e fatal talento era um modo de comunicação animal. Parece mais provável que o ofício da comunicação tenha sido assumido pela fala, que, quando teve início, sobrepôs-se a atividades inteiramente diferentes; mas indubitàvelmente foi a comunicação que desde então fêz a sua história. Finalmente, é digno de nota o fato de que os dois sentidos que envolvem as maiores regiões do córtex humano, a visão e a audição, fôssem ambos necessários para produzir a linguagem; nem uma raça cega nem uma raça surda a poderia desenvolver. Se o homem não pudesse ouvir nem ver nenhum mal, não poderia falar mal algum — nem ainda nenhum bem.

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3 SÔBRE UMA NOVA DEFINIÇÃO DE “SÍMBOLO” *

Em tôdas as épocas, o pensamento filosófico explora alguns conceitos dominantes e faz seus maiores avanços ao solucionar problemas concebidos em função dêles. Os filósofos dos séculos X V II e X V III construíram o conhecimento, o conhecedor e o conhecido em função de dados sensórios e de sua associação. A introspecção de Descartes deu à Psicologia clássica a mente e os seus conteúdos como um ponto de partida. Locke estabe­ leceu a imediação sensória como o nôvo critério do real, a saber, o “realmente dado” — o “ fato inelutável, obstinado” de James e de Whitehead. Hobbes forneceu o método genético de cons­ truir idéias complexas a partir de idéias simples, como quem construísse uma parede de tijolos ou um jôgo de peças de mon­ tar. Assim, Berkeley e Hum e construíram tábuas de retangularidade e “castanhidade” (Russell deu o passo final nessa matéria utilizando “dados brandos” à guisa de colante lógico); e em outro campo, ainda fiel ao método hobbesiano, Pavlov construiu o intelecto a partir de reflexos condicionados, e Loeb construiu a vida a partir de tropismos. O século seguinte, iniciando com a obra completa de Kant, teve uma nova noção dominante: as fontes transcenden­ tais da experiência. Isto suscitou os problemas de sujeito e (* )

Êste trabalho foi apresentado n a Brown U niversity em 1956.

objeto, conceito e percepto (percept), e pior que tudo, forma e conteúdo. Empirismo e transcendentalismo seguiram seus respectivos caminhos, um ofegando na esteira do impetuoso avanço da Ciência, o outro pendendo para a religião; e cada qual repudiava exatamente as questões que pareciam óbvias e urgentes ao outro. Herdamos ambas as linhas de pensamento. H á quarenta anos, êste legado parecia o bastante para tornar esquizofrênicos os filósofos. Mas desde então um estranho desenvolvimento (o qual já tinha tido início mesmo no momento mais agudo do cisma, a virada do século) tornou-se patente: o empi­ rismo, como também o transcendentalismo, pôs a descoberto um nôvo nível de problemas filosóficos, sob os divergentes “ismos” superficiais. Ambos feriram o rico veio das questões semânticas. O conceito de significado, em tôdas as suas variedades, é o conceito filosófico dominante em nosso tempo. Signo, símbolo, denotação, significação, comunicação — estas noções são o nosso material de trabalho. O quadro mutável do pen­ samento científico inspirou a mudança semântica de definição atributiva para operacional. A ousada expansão da Matemá­ tica suscitou alguns problemas insidiosos de símbolos incom­ pletos, signos puramente estruturais, contexto de variáveis, sentido de variáveis, referência indireta; a moderna Lógica Simbólica tem avançado principalmente sob o aguilhão dessas intrigantes idéias. Tornou-se a técnica básica da maior parte do pensamento filosófico moderno, e a técnica é medida natural do chamado “campo de estudo” . O primeiro alvo de nossas elucubrações semânticas tem sido o de conferir sentido à Ma­ temática, e os conceitos desenvolvidos na Lógica Simbólica — conceitos como “elemento”, “relação”, “proposição”, “classe” , e as noções diretivas de “ asserção”, “ definição”, “ substituição” etc. — têm servido para organizar o nôvo domínio. A Mate­ mática, porém, não permaneceu como a única reptante; com o desenvolvimento das ciências físicas, das quais a Matemática é serva (uma serva deveras moderna e independente — ou antes uma amazona), surgiu uma tarefa ainda maior para os filósofos. É com relação às ciências da natureza que surgem todos os problemas de referência; e êstes, por seu turno, acar­ retam questões epistemológicas de verdade, fato, conhecimento

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e — fechando o círculo, de volta à Semântica — comunicação de conhecimento. Tôda nova aventura em Filosofia tem uma fase furiosa­ mente ativa, atinge uma crista de produção importante e, a seguir, modera o passo numa espécie de trabalho mais sóbrio, à medida que vêm à luz seus paradoxos inerentes e suas difi­ culdades de concepção. Ela então ou obtém um real desenvol­ vimento das faculdades intelectuais das pessoas, um progresso da imaginação, como a mudança da reflexão em têrmos de substância-atributo para o pensamento funcional que hoje em dia marca a imaginação científica, alargando o próprio campo através de ousadas extensões dos seus conceitos criativos, ou chafurda nos seus paradoxos, como ardorosas especulações filo­ sóficas — notadamente as sociais e éticas — têm feito amiúde. A teoria semântica, acho eu, já passou por sua primeira crista. Seus paradoxos apareceram, e o desejo de evitá-los tende a reduzir o campo de pesquisa a uns poucos objetos cuidadosa­ mente colocados. Quem correr os olhos pelo índice de um periódico como M ind desde o último número até os da década de 1920, notará que não há grande mudança nos títulos. O artigo de John Wisdom sôbre “denotar” podia ser de 1928, 1938 ou 1948. Os novos colaboradores da escola de Cam­ bridge estão antes evitando que atacando os problemas semân­ ticos — embrulhando-os todos novamente na descuidada lin­ guagem coloquial do senso comum, da qual foram originàriamente desembaraçados. Essa é uma maneira de lidar com paradoxos. Todo o estudo de símbolos e de significado parece-me estar temporariamente esgotado, e atascando-se. Ao mesmo tempo, um perigo externo assedia as conquistas que já foram levadas a cabo, dado que o interêsse por símbolos não está limitado à crítica da Ciência e à interpretação da Matemática, mas agita-se em setores bem remotos — Psicologia (segundo duas espécies), Etnologia e Filologia. Em alguns dêsses con­ textos, a própria concepção de “ símbolo” é diferente da empre­ gada por um matemático ou por um cientista. Um símbolo talvez seja um mito, uma metáfora de raiz ou um sintoma clí­ nico. “ Significado” , igualmente, nem é significação nem denotação. É qualquer coisa, que vai desde a relação estímulo-resposta até o desejo existente por trás de um sonho.

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Pouco pode fazer o pobre epistemologista com respeito a tais invasões do seu terreno. Tudo quanto pode dizer é que í h s c s são empregos imprecisos e ilícitos das palavras “ símbolo” e “ significado” . Todavia, tais empregos persistem, e até mes­ mo desenvolvem técnicas, nas quais é difícil ver apenas um tratamento impreciso de idéias que uma vez pertenceram à Lógica. O conceito de símbolo da psicologia dinâmica, por exemplo, é de origem obviamente diferente daquele empregado por W hitehead e Russell em Principia mathematica. O fato é que várias linhas principais de pensamento chegaram quase simultáneamente ao reconhecimento da função mental básica que distingue o homem das criaturas não-humanas — o uso de símbolos, de uma ou de outra maneira, para transmitir conceitos. Deve-se admitir que uma maneira é bem diferente da outra. Ora, qualquer fenômeno que possa servir de maneiras tão diversas deve ser muito complexo. É provável que tenha muitas funções correlacionadas. Em qualquer contexto dado, algumas de suas funções devem ser provàvelmente mais impor­ tantes e mais óbvias que outras, e o conceito do fenômeno propriamente dito (no caso, o conceito de “ símbolo” ) será definido com relação a suas propriedades relevantes. A defi­ nição o estabelece mas também o restringe; e pode bem dar-se o caso de que a definição mais adequada e econômica que possamos fazer num contexto deveras preciso, tal como o con­ texto do discurso lógico no qual o “ símbolo” foi definido, seja incapaz de render qualquer conceito derivativo que possa servir a outros interesses. Ela não admite nenhuma generalização, nenhum sentido mais lato. Portanto, ela não pode ser esten­ dida a quadros de referência muito diferentes. Foi refletindo sôbre a natureza da Arte que cheguei a uma concepção da relação simbólica bem distinta da que eu formara em conexão com todos os meus estudos anteriores, que se cen­ travam em tôrno da Lógica Simbólica. Essa nova concepção de simbolização e significado originou-se da análise kantiana da experiência, e foi altamente desenvolvida graças ao Philosophie der Symbolischen Formen, de Cassirer. Em muitos anos de trabalho em tôrno dos problemas fundamentais da Arte, achei-a indispensável; ela serviu de chave para a maioria das questões envolvidas. Mas êsse conceito de símbolo, como aparece em uso, durante o trabalho — que, afinal de contas,

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é a fonte mais autêntica de todos os conceitos — não pode ser definido em têrmos de denotação, significação, adjudicação formal ou referência. A prova do pudim está em comê-lo, e eu convenho que o de Cassirer é bom; mas a receita não está na embalagem. O próprio Cassirer considerava as funções semânticas que pertencem aos símbolos científicos como um desenvolvimento especial, que ocorria sob a influência da lin­ guagem, em virtude de sua generalidade inerente, de mistura com seu caráter de signific. Mas simbolização como essa êle a rastreou mais a fundo. Sua noção de “ símbolo” era mais primitiva do que a de um signo usado por consenso comum para fazer as vêzes de um conceito associado; na sua acepção da palavra, um som, marca, objeto ou evento poderia ser um símbolo para uma pessoa, sem que essa pessoa conscientemente lhe alcançasse o sentido. Éste é o conceito básico da sua teoria do mito. Defrontamo-nos com idéia semelhante na teoria freudiana do sonho. Cassirer opôs-se veementemente a essa teoria. Não era, todavia, o conceito freudiano de símbolo que êle rejeitava, mas a natureza subjetiva do sentido que Freud lhe atribuía. Não há necessidade de entrarmos no mérito da questão; o que aqui releva notar é meramente o fato de que dois pensadores com interesses e objetivos diferentes trabalharam extensiva e efetivamente com um conceito que os estudiosos de Lógica e de Filosofia da Ciência acham ininteligível. O fato de que três assuntos vastos — mito, arte e psico­ logia dinâmica — se tornam acessíveis ao estudo progressivo através do uso de uma ampla mas logicamente questionável concepção de “ símbolo” , e por conseguinte de “ significado”, “ conhecimento” e outras definienda relacionadas com “ sím­ bolo” , faz-me suspeitar que os têrmos em que nossas definições semânticas são tradicionalmente enunciadas militam contra a sua generalização, e pois contra extensões legítimas de nossos conceitos metodológicos. Se o sentido de “ símbolo” , formal­ mente definido, e o sentido problemático derivado de novos usos não podem ser comensurados, êles simplesmente divergi­ rão até que a palavra tenha dois sentidos não-relacionados — perspectiva nada desejável numa época que sonha com a uni­ dade da Ciência. Além do mais, tal prática cortejaria o perigo de que onde a palavra “ símbolo” permanecesse simplesmente

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indefinida, a sua vaguidade cresceria sem limites e adquiriria a aura de valores emocionais que os têrmos ilicitamente am­ pliados em geral adquirem. Recomendo, portanto, que se ensaie uma definição totalmente nova que se preste a mais largo emprêgo mas que também permita especificação a mais estrita possível em contextos formais. A maioria dos semanticistas abordaram o estudo dos sím­ bolos com principal foco de interêsse no pensamento discur­ sivo e na sua comunicação, ou seja, nas suas funções óbvias no discurso. Durante os anos recentes, a ênfase transferiu-se cada vez mais para a comunicação. H á algumas razões curiosas para essa tendência, mas não nos interessam aqui. O que importa notar é a ênfase que por isso mesmo se dá a duas propriedades dos símbolos que são comumente tomadas como características essenciais: a função de referência, ou direção do interêsse do usuário a algo à-parte do símbolo, e a natureza convencional da conexão entre o símbolo e o objeto por êle referido, conexão em virtude da qual a referência ocorre. Ernest Nagel definiu o conceito que o cientista tem do símbolo no seguinte enun­ ciado: “Por símbolo entendo qualquer ocorrência (ou tipo de ocorrência), usualmente de natureza lingüística, que seja empregada para significar alguma outra coisa através de con­ venções tácitas ou explícitas, ou de leis de linguagem” . 1 Creio que isso é uma caracterização de “ símbolo” sufi­ ciente para todos os propósitos da Ciência, e mesmo para todos os usos literais de linguagem, inclusive os idiomáticos e colo­ quialmente figurativos. As leis de uso da linguagem não necessitam ser estritas para serem convenções publicamente aceitas, conquanto aceitas de modo tácito. Na maioria dos casos de enunciado figurativo, o equivalente literal é enten­ dido diretamente, e poderia ser prontamente produzido por quem fala ou escreve, utilizando a figura da linguagem, o que já é em si mesmo outra convenção. Nagel está perfeitamente inteirado do fato de que a pala­ vra “ símbolo” tem alguns empregos aos quais esta definição

(1) “Symbolism and Science”, in Symbols and Valúes: A n In itial S tudy (Décimo terceiro Simpósio Sôbre Ciência, Filosofia e Religitto; Nova Iorque, 1954).

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não seria adequada, e esmera-se em destaca-lu. No ensaio de que extraí a citação acima, êle não argúi de ilícitos os outros usos, embora lhes tenha questionado alhures as credenciais. Mas o que me interessa aqui são precisamente as razões pelas quais êle pôde questioná-las e de fato as questionou — a saber, que um conceito de símbolo apropriado a êsses outros usos não pode ser derivado por via de qualquer modificação do conceito científico. Nenhuma generalização da definição que êle nos deu, seguida de uma especificação diferente, produzirá um significado de “ símbolo” usável nos contextos em que um significado obviamente diferente se estabeleça. Nosso interêsse na comunicação levou-nos a notar, sobre­ tudo, essas espécies de símbolos que se prestam a tal propó­ sito; algumas teorias semânticas, especialmente as doutrinas clássicas que remontam ao século X V III, tratam a comunicação como a função original da linguagem, e, na verdade, de tôda simbolização. Os modernos estudos psicológicos da linguagem apresentam amiúde símbolos como sinais glorificados (o que Nagel distingue como “ signos naturais” ), na esperança de encontrar seus protótipos na comunicação animal. A impor­ tância da linguagem como um artifício humano de comunicação é certamente patente. Mas êsse uso predominante fêz-nos negligenciar um outro aspecto dos símbolos, que é menos óbvio, mas talvez, em alguns níveis da nossa evolução mental, igualmente importante — a formulação da experiência pelo processo de simbolização. Este aspecto não passou inteiramente irreconhecido. Ele cons­ titui o grande vislumbre daqueles pensadores epistemológicos que se inspiram em Kant. Kant evidentemente compreendeu e declarou que a mente humana imprime o seu sêlo na expe­ riência, que não recebe dados brutos para suas percepções, mas que tôdas as coisas humanamente perceptíveis já se acham no molde do humanamente concebível. O esquema inato, porém, é transcendental, comum a tôda consciência humana; não for­ nece nenhum princípio de avanço conceituai, nenhum meio fenoménico de concepção. Sua imposição não é nenhum pro­ cesso fenoménico. E-o, entretanto, a formulação da experiên­ cia. Mais uma vez, foi Cassirer quem, sobretudo, reconheceu o papel que representa a simbolização, ou a expressão simbólica,

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nn formulação de coisas e eventos e na ordenação natural de nosso ambiente como um “m undo” . Esta função formulativa é comum a todos os símbolos, se bem que em alguns seja muito elementar. Qualquer signo — por exemplo, o pequeno ruído que constitui fisicamente uma palavra — , com ser convencionalmente atribuído a qualquer objeto, evento, qualidade, relação etc. para significá-lo, confere uma identidade conceituai àquilo que designa. A simbolização lhe dá forma. A percepção da forma surge, penso eu, do processo de simbolização, e constitui uma abstração. A abstração é usual­ mente tratada como um processo difícil, inatural — Bergson gostaria mesmo que acreditássemos fôsse ela um processo anti­ natural de distorção perceptiva. Mas do ponto de vista natu­ ralístico que, bem ou mal, acho convincente, é difícil entender como alguém poderia ter iniciado qualquer prática abstrativa se a abstração não fôsse natural às mentes humanas. 2 O fato, creio, é que a percepção de formas, ou a abstração, é intuitiva, da mesma forma que o reconhecimento de relações, de instân­ cias e de significado. Constitui um dos atos básicos da intuição lógica, e a sua ocorrência típica e primitiva está no processo de simbolização. Eu gostaria de propor uma definição de “ símbolo” que se baseasse nessa função formulativa, por meio da qual alguma espécie de concepção é sempre abstraída de alguma experiência simbolizada. Num livro publicado há apenas três anos, defini o símbolo como “qualquer artifício por via do qual nos capa­ citamos a fazer uma abstração” . Já começo a duvidar dessa definição na sua forma simples inicial, ainda que ela se possa provar sustentável. Por outro lado, pode dar-se o caso de alguns artifícios, por meio dos quais façamos uma abstração, não estarem completos, não serem símbolos autênticos, e que seja mais seguro — pelo menos a título precário — dizer: “ qualquer artifício por via do qual façamos uma abstração é um elemento simbólico, e tôda abstração envolve simbolização” . Qualquer que venha a ser finalmente o fraseado preciso, é (2) Para um tratam ento ulterior dêste problema, ver “Emoção e A bstração” . (C ap. 4)

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bastante fácil apresentar as razões de se tentar uma nova defi­ nição como essa. Antes de mais nada, pode haver muitas maneiras de fazer abstrações, e portanto muitas espécies de símbolos. A abstração é um processo que admite graus, fases incompletas, com que tôdas as espécies de fenômenos proto-simbólicos, tais como aduz Cassirer em sua grande Filosofia das Formas Simbólicas (esp. vol. I I ) , poderiam ser relacionadas. Obras de arte, que, estou segura, têm sentido ( im port) mas não significado ( meaning) genuíno, são símbolos, mas não símbolos da espécie que Nagel definiu; pois nem indicam, para além de si mesmas, algo que a partir de então se torna conhecido à-parte do símbolo, nem são tampouco estabelecidas por convenção. E a sua poderosa articulação formal que nos capacita a perceber a forma em seu caso singular. Todavia, creio que são quase símbolos; têm algumas das funções, mas não tôdas, dos símbolos genuínos. Melvin Rader sugeriu que se devia falar de uma obra de arte como uma “forma expressiva” antes que como um “ símbolo de arte” , e se bem eu ache êste último têrmo perfeitamente defensável, tenho desde então empregado o seu, alternativamente. Considerações similares aplicam-se aos elementos oníricos que Freud classifica como símbolos. Êles não são, decerto, estabelecidos por nenhuma convenção; e conquanto sejam rela­ cionados com idéias totalmente diversas, as quais se diz que “ significam”, não são, em nenhum sentido usual, empregados para referir essas idéias. Não as denotam ao sonhador da ma­ neira como as palavras denotam seus objetos. No entanto, a relação das ficções oníricas com seus significados é uma rela­ ção de formulação do supostamente inconsciente “pensamento onírico” , e mesmo uma abstração deveras complexa dos aspec­ tos emocionais de experiências; e o elemento comum a símbolo e a “ significado” é um elemento formal — um elemento abstrato. Finalmente, o caráter abstrativo dos símbolos é que lhes confere valor científico. Em Ciência, temos um uso especial de símbolos, altamente desenvolvido, erigido sôbre convenções, e que resulta nas mais ousadas abstrações jamais feitas. Á simbolização científica, acredito eu, é sempre linguagem ge­ 3

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nuína, no sentido mais estrito, e o simbolismo da Matemática o maior refinamento possível da linguagem; e a linguagem como tal é o paradigma do simbolismo, da mesma forma que o seu conteúdo — o pensamento discursivo — o é da concepção. Quaisquer que sejam as dificuldades da redefinição de “ símbolo” proposta, creio que a direção está correta; somente uma guinada radical de abordagem nos pode dar um conceito básico, elástico bastante para abranger as definições assaz diversas que desejemos derivar, em relação essencial umas com as outras.

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4 EMOÇÃO E ABSTRAÇÃO

O pensamento abstrato, essencial a qualquer curso extenso de raciocínio, é tradicionalmente tratado como incompatível com a resposta emocional. A fria razão e o cálido sentimento (no sentido de emoção) supõe-se que sejam tendências anta­ gônicas da mente humana, e as pessoas geralmente admiram uma, confiando em suas sugestões, ao passo que desacreditam e depreciam a outra. Místicos religiosos, muitos artistas e alguns filósofos em nosso próprio século, notadamente Bergson e seus discípulos, consideram tôda concepção abstrata como uma falsificação essencial da realidade, e contam com algum sentimento inarticulado, um produto do instinto ou da intuição, para guiar-lhes não apenas o comportamento prático, mas tam­ bém o conhecimento da natureza das coisas. Cientistas, edu­ cadores e filósofos analíticos, talvez também muitos homens de negócios, assumem justamente a posição oposta, e consi­ deram o pensamento abstrato e a razão fria — na verdade, quanto mais fria melhor — como o mais seguro guia de ação e o árbitro da verdade num mundo de fatos indisputáveis. Êles usualmente admitem que suas ações e mesmo suas crenças se inclinam a seguir os engodos do sentimento inspirado pela “ situação concreta” mais que os ditames da razão baseada na “lógica abstrata” ; mas isto é porque certa parte de emoção interfere inevitàvelmente com o pensamento lógico da pessoa. O antagonismo entre respostas emotivas e ideação abstrata tornou-se princípio aceito até mesmo entre psicólogos profissio-

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nais. Como o raciocínio — principal emprego de tal ideação — é considerado pela maioria déles como uma técnica aperfei­ çoada de obter alimento, segurança e parceria sexual, isto é, de realizar os fins animais universais em nível mais alto, nossas reações emocionais espontâneas devem ser consideradas como reversões a meios menos convenientes de lidar com o mundo e de lidarmos uns com os outros; e são, na verdade, geral­ mente tratadas como perturbações das funções norm ais.1 E ainda mais do que os psicólogos do comportamento, nossos epistemologistas de pendores racionalistas menoscabam a influ­ ência da emoção sôbre a atividade das mentes de outras pessoas e sôbre as resultantes pretensões de conhecimento delas. Tais pretensões baseiam-se em “mero sentimento” , em “ desejos caprichosos” ou no que William James chamou de tender-mindedness, * fazendo concessões ao sentimento; e, nas pala­ vras de um de nossos filósofos analíticos contemporâneos, elas “não passam de sombras invisíveis projetadas pelo significado emotivo” . 2 Aquêles pensadores que, ao contrário, desconfiam profun­ damente dos podêres da razão, têm de pôr algo no lugar dêles como ato cognitivo e diretivo da mente. Recorrem usualmente ao “instinto”, que se supõe seja substituído, no nível humano, pela “intuição” . Assim como os instintos animais se expressam em espontâneos “impulsos” para a ação, e, se frustrados, pro­ duzem grandes sintomas emocionais, assim também a intuição humana é experimentada como um imediato sentimento de certeza acêrca da veracidade ou falsidade de proposições, da justeza ou inexatidão de atos, e da natureza dos pensamentos e sentimentos não-expressos de outras pessoas. Sua principal (1 ) D. O . H ebb, in T h e Organization of Behavior (N ova Io r­ que, 1949,) considera a emoção como um a dirupção da organização cortical (p. 148). (* ) A titude “que tende a, ou se caracteriza por, idealismo, otimismo e dogmatismo; especialmente, que reluta em enfrentar fatos desagradáveis ou pôr à prova pressuposições através de observação e experim entação”. (W ebster’s T h ird N ew International Dictionary) (N. do T .) (2) G. L. Stevenson, “T he N ature of Ethical Disagreem ent” , in Readings in Philosophical Analysis, ed. por H . Feigl e W . Sellars (Nova Iorque, 1949), p. 593.

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virtude teorética, como presumida faculdade mental, é a sua similaridade ao instinto, que fá-la parecer um tudo-nada mais próxima que a razão da idéia de “natureza” que a maioria das pessoas nutre; é mais fácil imaginar a intuição como uma forma superior de instinto do que imaginar os processos de generali­ zação, dedução, e conclusão lógica nesse papel. Na realidade, a passagem do instinto para a intuição é tão difícil de explicar em função do desenvolvimento zoológico, isto é, da evolução, quanto a do instinto para a racionalidade. Mas a primeira parece mais simples, porque não traz à baila o discutido pro­ blema da abstração. O conhecimento intuitivo dos fatos, como instinto, cinge-se a situações concretas; e, para muitíssimas mentes, “concreto” significa “real” , de modo que, para elas, a intuição parece “mais próxima da realidade” do que o pensa­ mento, o qual manipula conceitos abstratos e lhes aplica a “ dança espectral de exangues categorias” ao m undo real. Os protagonistas do conhecimento intuitivo e da orientação instin­ tiva, cujo maior porta-voz na moderna filosofia européia foi Bergson, sustentam, como êle, que a abstração é um artifício precário e essencialmente inatural, inventado para propósitos práticos, mas ao preço da verdade e da experiência vital genuína. Esta doutrina suscita uma grave questão de evolução humana. Se a abstração não é uma função natural, como foi então inventada? Como um ato tão estranho à mentalidade animal foi levado a cabo pela primeira vez? Dispomos de vários recursos, acidentalmente descobertos ou inventados deli­ beradamente, para fazer abstrações muito apuradas e extremas, que nos habilitam a construir nossa admirável Matemática e ciência assaz aterradora. Mas um recurso artificial é sempre, essencialmente, um aperfeiçoamento real ou pretenso de meios naturais com vistas a um fim, ou um substituto dêsses meios nos casos em que êles próprios malogram (isto é, uma prótese). Pode ter incidentalmente um efeito imprevisto que estabelece um nôvo propósito, assim como a invenção da pólvora ocorreu incidentalmente quando um alquimista tentava produzir ouro, mas uma vez ela inventada, a sua produção tornou-se o propó­ sito principal de incontáveis artifícios e técnicas industriais. Estas jamais poderiam ter sido encontradas, no entanto, antes que a idéia de uma substância explosiva ocorresse a alguém;

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e se jamais tivesse havido uma explosão qualquer na experiência humana (por exemplo, durante uma conflagração ou durante uma convulsão vulcânica), com certeza ninguém teria imagi­ nado um tal evento com clareza bastante para pensar no que chamamos de “explosivos” , muito menos para procurá-los ou inventá-los. Similarmente, o estratagema da concepção abstrata nunca poderia ter sido adotado por suas vantagens práticas se êle de algum modo não tivesse ocorrido naturalmente a cére­ bros pré-humanos. Êle só poderia ter uso prático após ter-se desenvolvido no curso daquela especialização que fêz que um gênero primata se tornasse Homem. A pergunta que nos incita à especulação (sendo que a corroboração pelas descobertas de fatos concretos constitui uma ardente esperança neste estágio) é: como se teria originado a tendência de escolher os traços salientes de experiência que reaparecem em diferentes ocasiões ou ocorrem simultaneamente em múltiplos exemplos, e lembrar êsses traços e reconhecê-los como os mesmos em cada caso — num ser que presumivelmente era um simples animal quando o processo teve início? O uso de conceitos é a marca da mentalidade humana; a produção mais recuada de algo assim como um conceito deve ter resul­ tado do desenvolvimento progressivo de atividades que eram naturais e habituais para um animal superior. Uma das dificuldades que nos assediam ao formular hipó­ teses acêrca da evolução dos traços humanos é, penso eu, que procuramos suas origens em funções que serviram aproxima­ damente aos mesmos propósitos. Isto, porém, é ignorar um princípio cardeal do avanço biológico, a transferência de fun­ ções de um mecanismo para outro conforme o nôvo surja, e, com essa transferência, alguns fins inteiramente novos a serem alcançados.3 Ademais, muito amiúde, um propósito importante, como por exemplo o equilíbrio do corpo, é atendido por diver­ sos complexos orgânicos, operando sôbre diferentes princípios4 (3) Êste princípio foi reconhecido e largam ente explorado por A m old Gehlen no seu im portante livro Der M ensch, seine N atur und seine Stellung in der W elt (4.a ed.; Bonn, 1950). (4) H enri Piéron, num trabalho intitulado “ Relations des receptions visuelles et labyrinthiques dans les réactions spatiales” , V a n n ie psychol., L I (1949), 161-72, relaciona quatro diferentes mecanismos

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— estruturas mais velhas e mais novas às vezes coexistindo, e capazes de se substituírem entre si em algumas, e raramente em tôdas, circunstâncias. 5 Uma nova estrutura se torna domi­ nante porque tem maior campo para aprimorar-se. Não o tivesse, e jamais lhe poderíamos notar a existência, nem haveria nenhuma mudança radical de velhos modos de vida para um nôvo padrão. Funções superiores são usualmente compósitas na origem e aguardam o desenvolvimento de condições necessárias, algu­ mas das quais, num estágio ulterior, parece não lhes serem essenciais ou serem-lhes até mesmo antagônicas. Outras, é óbvio, são claramente reconhecíveis em retrospecto, e passíveis de serem tomadas pela “causa” . No caso de concepção abstrata, o papel da especialização sensoria, e da conseqüente seleção de estímulos pelos órgãos altamente especializados, há muito que foi reconhecido, visto que semelha o da seleção ou “ extra­ ção” de traços do amálgama de experiência, papel que se supõe seja o da abstração. D e fato, essa “ extração”, claro está, ocorre na abstração conceituai plenamente desenvolvida; mas pode ter uma origem diferente daquela a que se poderia chamar “abstração sensoria”, a qual tem sido sèriamente estudada desde que o desenvolvimento das máquinas computadoras sugeriu algumas hipóteses que parecem ser realmente férteis. A cres­ cente literatura concernente aos mecanismos da visão e da audi­ ção abstrativas estende-se aos campos da Psicologia, Matemá­ tica, Engenharia de pequenas correntes, Fisiología e Neurolo­ gia, mas as desenvolvidas nesses diversos campos são conver­ gentes. H á boa soma de indícios a corroborar a teoria de que o órgão visual (mais fácil de estudar que o auditivo ou táctil) tem uma função muito parecida com a do processo de “explo­ ração” ou “varredura” dos instrumentos de televisão e de alguns microscópios eletrônicos. De acôrdo com Norbert de equilíbrio encontrados na m aioria dos mamíferos e em alguns outros animais, mas de im portância variável d e espécie p ara espécie, e tam ­ bém, dentro de cada espécie e indivíduo, de um a situação p ara outra. (5) V er, por exemplo, J. G. D usser de Barenne, “ ‘Corticalizalion’ of Function and Functional Localization in the C erebral Cortex” , Arch. Neurol. & Psychiat., X X X (1 9 3 0 ), 884-901; ver tam bém K . S. Lashley, “T he Problem of C erebral O rganization in V ision”, in Visual Mechanisms (Lancaster, Pa., 1942), p p . 301-22.

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Wiener, podemos usar e interpretar desenhos a traços porque “ algures no processo visual se acentuam contornos, e a impor­ tância de alguns outros aspectos de uma imagem é minimizada. O início dos processos é o próprio ôlho” . 6 Por razões mecâ­ nicas muito plausíveis, “ o ôlho recebe a mais intensa impressão no contorno, e ( . . . ) tôda imagem visual tem de fato algo da natureza de um desenho a traço” . 7 A ênfase dada ao contorno é aqui produzida pela elimi­ nação das porções redundantes da imagem, ou “ abstração” no sentido clássico mais puro; o processo é automaticamente de­ terminado pela estrutura do órgão (não apenas o ôlho, mas todo o tracto óptico, inclusive o córtex visual), e a abstração ocorre à revelia do sujeito. Baseados nessa hipótese, Pitts e McCulloch elaboraram uma outra teoria da abstração intelec­ tual concisamente apresentada num artigo intitulado “ Como Conhecemos Universais” . 8 É muito justo, decerto, que ao descobrir uma função abstrativa do ôlho ou do ouvido, se ex­ plorem as possibilidades de existirem processos análogos em outras partes altamente desenvolvidas do sistema nervoso cen­ tral, que possam prover uma teoria de mecanismos cognitivos ulteriores. Todavia, o texto do artigo citado de certo modo não cumpre a promessa do título, conquanto a explanação tenha tôda a aparência de verdade dentro dos seus limites. E parece mesmo limitada, pois conclui antes de explicar a gênese da concepção humana. Fica-se a braços com a questão: que é que está faltando? O que está faltando é o reconhecimento da diferença que existe entre a maneira como formamos “ universais” e a maneira como os conhecemos. A analogia entre os processos hipotéticos nos mecanismos sensórios e os processos mais elaborados e variáveis do “córtex interpretativo” serve para explicar o ele(6) Cybernetics, or Control and Communication in the Anim al and the M achine (Nova Iorque, 1948) p. 156. (7) Ibid., p. 159. (8) W alter Pitts e W. S. M cCulloch, “ How W e Know U niver­ sais: T he Perception of A uditory and Visual Form s”, Buli. M ath. Biophys., IX (1947), 127-47. V er tam bém W. S. M cCulloch e W. Pitts, “T he Statistical O rganization of Nervous Activity” , Biometrics, IV (1948), 91-99.

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mento de reconhecimento de padrões (pattern) que se evi­ dencia no comportamento dos animais. Como disse Russell Brain, é essencial à sobrevivência déles que reconheçam não apenas uma coisa ou criatura específica, mas qualquer outra da mesma espécie; e, na verdade, “ aquilo a que o animal reage não é um mosaico de todos os traços individuais do objeto percebido, mas um padrão que constitui uma abstração de qual­ quer indivíduo particular, pelo que é comum a todos os indi­ víduos do grupo” . 9 Porém, essa espécie de abstração é ainda a que Bouissou denominou de abstraction implicite; 10 é uma resposta seletiva no nível orgânico, mas não num nível concei­ tuai. E o Sr. Russel faz uma afirmação muito precisa quando diz: “Pitts e McCulloch tentaram descrever em têrmos mate­ máticos os processos fisiológicos em virtude dos quais o cére­ bro torna possível o reconhecimento de universais” . 11 Êsses processos — sejam êles semelhantes ou não às técni­ cas de varredura ou “ exploração” de nossas máquinas — são indubitàvelmente necessários para produzir conceitos abstratos, mas não são suficientes. Podem, na verdade, possibilitar a concepção, mas o realizá-la requer algo mais. Este outro ele­ mento, eu sustento, é emocional. As únicas funções que podem ser consentidas à emoção num computador animal são as de sustentar a atenção e agir como uma “sobremarcha” de emergência. Se nossa superio­ ridade mental relativamente aos metazoários fôsse um resul­ tado simples e direto de respostas cada vez mais formalizadas a estímulos perceptivos cada vez mais filtrados, fundidos e automaticamente generalizados, então a fôrça dê nossas emo­ ções, que excede em muito os requisitos daquelas funções, com certeza não exemplificaria os princípios de economia que se supõe o organismo (aparentemente planejando-se com mais premeditação do que nunca) deva observar em seus desígnios.12 (9) T he Cerebral Basis of Consciousness”, Brain, L X X III 465-79; ver esp. p. 471. (10) René Bouissou, Essai sur L ’abstration et son rôle connaissance (1942), p. 55. (11) Op. cit., p. 472. (12) Cf. Wiener, op. cit., p. 155: “Deveria haver partes do aparelho ( . . . ) que explorassem livres componentes

(1950), dans la

algumas e cone-

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Se a nossa racionalidade fôsse puramente um aumento de pro­ cessos automáticos, em vez de um nôvo desenvolvimento super­ veniente a tal aumento, as emoções seriam na verdade as meras perturbações que amiúde se acredita que sejam, respostas atá­ vicas rompendo o comportamento prático; e a continuada tole­ rância de tais repelões simiescos de uma máquina exemplar de autopreservação seria uma curiosidade evolucionária. Os ani­ mais, vivendo como vivem de emergência em emergência, ne­ cessitam do terror para imprimir velocidade a suas fugas ou para “congelar-se” de modo a tornarem-se invisíveis aos seus perseguidores, pois não podem arquitetar estratégias nem avaliar o melhor local para um esconderijo. Necessitam do excitamento intenso de uma caçada para conservar-se na trilha após desencorajamentos momentâneos ocasionados por obstáculos ou pelo desaparecimento da p rê sa.13 Os homens podem organizar uma caçada com muita antecedência, e reunirem-se para ela, com ou sem entusiasmo, se fôr necessário abster-se da despensa du­ rante a caçada ou enquanto outros afazeres o permitem. No entanto, a maioria dos animais parece ficar indiferente quando nenhuma situação excitante lhes evoca as emoções, ao passo que os sêres humanos geralmente demonstram algum grau de animação ou de melancolia, uma predisposição a serem impres­ sionados de uma maneira ou de outra por tudo em redor; e as ondas de sentimentos suscitados por acontecimentos triviais são maiores do que o requerido por qualquer resposta prática, especialmente quando o comportamento mais apropriado fôr re­ nunciar a qualquer ação patente. O surgimento da mentalidade humana a partir da menta­ lidade animal baseia-se, penso eu, numa daquelas transferências

tores de várias espécies de combinações e os distribuíssem de acôrdo com a sua necessidade. Isto elim inaria ( . . . ) - a despesa que se deve ao fato de haver um grande número de elementos não utilizados, que não podem ser usados a menos que se utilize o seu conjunto todo.” E a seguir: “O sangue que deixa o cérebro é um a fração de grau mais quente do que o que nêle entra. N enhum a outra m áquina com putadora se aproxima, em têrmos de economia de energia, do cérebro”. (13) H ans Jonas desenvolveu esta idéia em “M otility and Emo tion: An Essay in Philosophical Biology” , Proceedings of the Eleventh International Congress of Philosophy (1953), Vol. V II, pp. 117-22.

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de funções de velhos para novos mecanismos, os quais surgem quando os velhos se desenvolvem até o seu limite de comple­ xidade e refinamento, ao ponto de ultra-elaboração e ultra-reatividade fisiológicas. No cérebro humano, as estruturas corticais a que comumente atribuímos a responsabilidade da abstra­ ção automática de traços formais a partir da experiência são certamente muito mais desenvolvidas do que em quaisquer outros cérebros. O Professor Wiener, na verdade, sugeriu que o córtex humano já excedeu o seu grau mais útil de com­ plicação, e que o seu continuado crescimento excessivo deve, por fim, levar a espécie humana à extinção.14 Se uma tendên­ cia filogenética continuasse sempre até a sua mais alta reali­ zação, às expensas do organismo como um todo, esta previsão teria grande pêso. Mas progressos filogenéticos ilimitados são raros. Supõe-se que os sáurios encouraçados, o dodó e umas quantas outras criaturas extintas, se tornaram inviáveis em de­ corrência de suas exageradas especialidades; usualmente, porém, tais excessos não são alcançados. Quando um órgão se torna mui­ to aperfeiçoado, de forma que as minúcias de seu desempenho entrem a cancelar-se ou bloquear-se entre si, êsses atos deta­ lhados podem- ser substituídos por uma função mais simples de algum nôvo mecanismo, ou então cair sob a influência de outro órgão, desenvolvido separadamente, de modo que a ope­ ração conjunta constitua uma função superior que sirva aos mesmos fins vitais. Se os cérebros humanos continuassem a funcionar como cérebros de animais, apenas com generalidade de percepção sempre crescente, e sempre crescente transferência de respostas, poderíamos realmente estar-nos excedendo ao filtrar detalhes, e ignorar muitíssimas deixas para prontas rea­ ções extemporâneas. Mas, em grande medida, os sêres huma­ nos não dependem de respostas diretas de curto alcance, pois seu material principal é uma tremenda reserva de símbolos — imagens, palavras, e apresentações fragmentárias de identidade dúbia, mas com significado — os quais podem ser manipulados independentemente do estímulo em curso que provenha do ambiente. Num estágio adiantado da atividade simbólica, essa manipulação prossegue quase o tempo todo, seja como juízo, predição e planejamento reflexivos, seja como livre imaginação, (14)

Op. cit., p. 180.

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ficção, fantasia dramática ou — mais efetivamente — como nova formulação abstrata de fatos, isto é, interpretação. Essa espécie de coisa não resulta de filtragem ou exploração nem consiste em fazer combinações apropriadas de respostas a uma situação de estímulo. A atividade simbólica surge principal­ mente de dentro do organismo, especialmente de dentro do próprio cérebro. As funções corticais não são, indubitàvelmente, as únicas que sofreram grande aprimoramento durante a nossa ascensão do estado animal para o humano; tôdas as partes do cérebro mudaram, e suas respostas maciças dividiram-se em atos distin­ tos e separadamente evocáveis. As emoções, igualmente, tor­ naram-se articuladas, e cada impulso resolve-se alhures no sis­ tema. Ao passo que, formalmente, um forte estímulo percep­ tivo sempre lançaria a criatura tôda à ação patente e a um simples estado emotivo, nossos inumeráveis perceptos desen­ cadeiam instantaneamente diversos atos cerebrais diferentes, os quais não mais se somam para produzir uma resposta total de comportamento, mas terminam cada um num mo­ mento de emoção, que encontra e catexiza o ato de percep­ ção, lembrança, expectação ou qualquer outro que a induza. Como a expressão de uma emoção é amiúde incompatível com a de outra, e no entanto, a passagem calidoscópica de eventos dentro e ao redor de nós suscita sentimentos de tôda sorte o tempo todo, a maioria dêsses processos emotivos é privada de expressão patente e tem de consumir-se no interior do cérebro. Não sabemos exatamente como se processa o seu minúsculo circuito, assim como não conhecemos o curso todo de um ato perceptivo; mas a emoção centralmente baseada parece ser conduzida juntamente com a percepção que lhe deu início, e é moldada, em sua progressão, pelas formas que a abstração sen­ soria automática já preparou. Isto confere “carga emocional” a formas que podem reaparecer; e já que estas formas podem reaparecer em eventos que seriam de outro modo novos, a catéxis, ligeira demais para ser tida por algo mais do que “interêsse” ou mesmo “notícia”, pertence a alguns traços formais comuns de vários perceptos, memórias e mesmo expectações, e dá-lhes uma espécie de ênfase diferente daquela que o pró­ prio aparato perceptivo forneceu.

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A abstração inerente à percepção como tal resulta (a esta­ rem certas nossas teorias correntes) da eliminação de incon­ táveis estímulos possíveis; assim, a simplificação é efetuada como numa litografia, eliminando-se tudo exceto os traços que irão funcionar. Não é um processo de enfatizar coisa alguma, mas essencialmente de simplificar, atenuando a carga antes que o seu impacto sôbre o sistema nervoso tenha ido longe demais. Este processo usualmente não se sente. O ato emotivo, por outro lado, é realmente um ato de enfatizar os traços excitan­ tes, e um ato que se sente, ainda que apenas como um dar-se conta déles; pode realçar a simplificação original ou realizar uma nova, mesmo várias simplificações alternativamente, e pro­ duzir o fenômeno bem conhecido de mudar a gestalt. Neste processo, o material inadequado não é filtrado, mas eclipsado pela intensificação das grandes linhas.15 Conseqüentemente, a forma parece emergir de um rico fundo de detalhes mais vagos, que podem alcançar variáveis graus de importância, e pode ser a sua flutuação o que, por contraste, torna fortes as linhas estáveis. Quando as formas de percepção coincidem com as formas de emoção, os próprios perceptos se tornam símbolos emo­ tivos. Trata-se, obviamente, de um assunto vasto e so­ bretudo especulativo, que não consideraremos aqui. A con­ secução do valor simbólico, aparentemente antecipa o está­ gio final do pensamento conceituai real, que se desenvolve somente com a linguagem; de modo que há uma fase de intui­ ção formal e significação implícita na evolução do simbolismo que pode remontar ainda mais atrás na História do que a fase que eu chamaria de abstração explícita, a base do pensa­ mento conceituai genuíno.16 É somente na fase da abstração (15) Isto talvez seja o que A nton Ehrensweig, em T he Psychoanalysis of Artistic Vision and Hearing (Londres, 1953), p. 15, chainou de “Repressão E strutural” . Se assim fôr, “repressão” não é um a boa designação; “negligência” seria melhor. Mas não tenho certeza de que concebamos o processo da mesma m aneira, nem que nos refiramos ao mesmo fenômeno. (16) Abstração implícita e significação im plícita atingem um Krande desenvolvimento na Arte, onde ou são reconhecidas pela intui­ ção artística, a cham ada “sensibilidade artística”, ou passam ignoradas. O assunto é vasto demais p ara ser tratado de passagem, mas é refe­

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explícita que o pensamento se tornatum processo sistemático auto-suficiente, pelo qual a atenção sé focaliza em formas alta­ mente refinadas, extrapoladas da experiência, em virtude de um simbolismo que tem tão pouco valor emocional próprio que a forma que exemplifica constitui seu único ponto de inte­ rêsse possível. Palavras especialmente restritas, ou marcas no papel, são os símbolos mais convenientes para longas séries de raciocínios; tôdas as exemplificações de conceitos mais ricas apresentam aspectos despropositados, que podem receber ênfase emocional exterior e confundir o conceito abstrato. Tal ênfase indesejada advém do fato de que na vida hu­ mana pràticamente todo detalhe de memória ou impressão corrente tem sua própria carga emocional: quer dizer, nossas respostas emotivas são tão capazes de diferenciação quanto nos­ sas respostas perceptivas. Experimentos têm demonstrado o grau a que nossos processos corticais são individualmente catexizados, e ou facilitados ou obstruídos (se bem que pelo breve tempo de aproximadamente 0,01 seg.) por sua catéxis parti­ cular. 17 Existe, pois, uma atividade de processos sentidos sur­ gindo das estruturas mais profundas do sistema nervoso central, bem como uma atividade de impressões; e a produção de ima­ gens, lembranças explícitas e elementos conceituais ocorre pro­ vavelmente quando as formulações automáticas efetuadas pelos órgãos dos sentidos e pelos conjuntos de neurônios corticais sãc utilizadas como canais de descarga de rápidas respostas emotivas àqueles mesmos atos sensorios e corticais.

rido em “A Im portância C ultural da A rte”, e discutido mais plena­ m ente em três ensaios: “Expressiveness”, “Living Form ” e “Abstraction in Science and A bstraction in A rt”, in Problems of A rt (Nova Iorque, 1956), bem como nos primeiros capítulos de Feeling and Form (Nova Iorque, 1953).

(17) H á um a crescente literatu ra nesse campo, da qual m e ciono apenas um exemplo óbvio, a obra de Jerome Bruner em cola­ boração com vários autores: J. S. B runer e C. C. Goodman, “Need and V alue as Organizing Factors in Perception”, / . Abnorm al & Sf>cial Psychol., X L II (1947), 33-44; L. Postman, J . S. B runer e E. McGinnies, “Personal Valúes as Selective Factors in Perception”, / . Abnorm al & Social Psychol., X L III (1 9 4 8 ), 142-54; J. S. Bruner e L. Postman, “Tensión and Tension-Release as Organizing Factors in Perception”, ]. Personality, X V (1 947), 300-308.

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Com o desenvolvim|pto da atividade perceptiva e da cha­ mada atividade “ associativa” no cérebro humano, eventos na fase psíquica podem bem ter-se tornado tão numerosos que o comportamento era confundido pelo amálgama de sentimentos grandes e pequenos e pelos engodos da atenção; e talvez já de­ vêssemos ter sucumbido ao desenvolvimento e complicação excessiva que o Professor W iener antevê como nosso fado, não fôsse pelo fato de que a nova faculdade da abstração formal, e ainda uma outra de pensamento simbólico, forneceram meios de completar incontáveis processos induzidos muito rápidamente, de modo puramente intracerebral. Ao mesmo tempo, êsses novos mecanismos, que aliviam as pressões excessivas de emo­ ções conflitantes, reduziram grandemente a importância daque­ las ações animais para as quais o cérebro se está tornando antieconômicamente complexo, dado que realizam ações equivalentes com base em princípios de todo diferentes. Com o advento da concepção abstrata e do pensamento conceituai, houve uma mudança de funções, ao longo de tôda a linha, de comporta­ mento inteligente em intelecto, de respostas universais18 em conhecimento de universais, de mentalidade animal em mente humana. A ser verdade que a abstração explícita é feita pelas fun­ ções combinadas de mecanismos perceptivos e emocionais, quando ambos alcançam o ponto em que suas diferenciações se tornam tão sutis que efeitos perceptíveis usualmente exigem adição de impulsos, nós nos defrontamos com a constatação paradoxal de que só uma criatura altamente emocional poderia ter desenvolvido o talento do pensamento abstrato. Em algum período da nossa história pré-humana, a pressão das excitações centrais deve ter-se tornado tão grande, que se os incontáveis impulsos iniciados pela crescente ação cortical tivessem conti­ nuado a misturar-se e a abrir caminho para a expressão mani­ festa maciça, o comportamento do animal ter-se-ia desintegrado. A única adaptação interna aos mecanismos sensórios em cresci-

(18) Emprego aqui o têrmo “universal” porque McCulloch, Pitts e outros cientistas o usam p ara significar o que os lógicos, cha­ mariam de “geral” (incluindo “ universal” e “p articu lar” ), e, às vêzes, para significar o que é mais estritamente chamado de “ abstrato” , isto é, puram ente formal.

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mento excessivo e às suas dependências era resolver os impul­ sos emocionais suscitados pelos seus atfc individuados, de forma igualmente gradual e como acontece rfreqüentemente, as pró­ prias mudanças que ocasionaram a crise ofereciam os meios de sobreviver-lhe. Os processos intelectuais separados absorveram os impulsos centrais separados que suscitavam, e a carga extra que isto lhes deu elevou-lhes as formas principais automática­ mente simplificadas, e somente elas, até o nível psicológico. Os processos conscientes que resultaram — imagens, gestos, lembranças explícitas e outros fenômenos mentais — forne­ ceram o material para a função humanizadora final, o uso de símbolos. Não é impossível que a Humanidade tenha passado por uma fase muito mais emocional do que a que ela atualmente exibe, um tempo em que a sobrevivência realmente pendia da balança. A função de simbolização, tão profundamente enrai­ zada em nossos cérebros que começa espontaneamente na expe­ riência infantil e nos sonhos, consome grande parte de nossa resposta central. Os símbolos mais primitivos — os “ arqué­ tipos” , como os chamava o Dr. Jung — ainda mostram uma sobrecarga de emoção que pode ter pertencido a todos os sím­ bolos, antes de êles terem proliferado tanto que a vida mental tôda se intelectualizou em certa medida e a pressão no sentido da ação manifesta puramente auto-expressiva se reduziu. É inte­ ressante notar que os animais mais próximos do homem na escala evolucionária, os chimpanzés, são mais fácilmente enfu­ recidos ou reduzidos a colapso cataléptico por estímulos emo­ cionais, do que os sêres humanos. Terão êles atingido o limite de seus recursos no campo da mentação animal? H á indícios, em seu comportamento, de que êles podem estar próximos do limiar da fantasia, da preparação para o pensamento. Mas êste meu pensamento quiçá esteja também próximo da fantasia; de modo que talvez seja melhor pô-lo de lado.

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5 A IMPORTÂNCIA CULTURAL DA ARTE *

Tôda cultura desenvolve alguma espécie de arte tão certamente quanto desenvolve a linguagem. Algumas culturas pri­ mitivas não possuem nenhuma mitologia nem religião reais, mas tôdas possuem alguma arte — a dança, o canto, o desenho (algumas vêzes só em utensílios ou no corpo humano). A dança, sobretudo, parece ser a mais antiga arte aperfeiçoada. O caráter ubíquo e antigo da Arte contrasta nitidamente com a idéia dominante de que ela seja um produto do luxo da civilização, uma afetação cultural, um mero verniz social. A Arte ajusta-se melhor à convicção da maioria dos artistas segundo a qual ela é o epítome da vida humana, o registro mais fiel dos vislumbres interiores e dos sentimentos, e de que a sociedade mais vigorosamente militar ou econômica, sem arte, é pobre em comparação com a tribo mais primitiva e selvagem de pintores, dançarinos ou entalhadores de ídolos. Onde quer que uma sociedade tenha realmente chegado à cultura (no sen­ tido etnológico, não no sentido popular de “forma social” ) terá produzido arte, não apenas no seu fastigio, mas desde o seu comêço. A Arte é, na verdade, a ponta de lança do desenvolvimento humano, social e individual. A sua vulgarização constitui o (* ) Conferência pronunciada na Universidade de Siracusa; extraída de Aesthetic Form and Education, org. por M . F. Andrews, Siracusa, Nova Iorque, 1958.

sintoma mais certo de declínio ético, f O desenvolvimento de uma nova arte ou mesmo de um estilo radicalmente nôvo, sempre revela uma mente jovem e vigorosa, seja coletiva, seja individual. Que espécie de coisa é a Arte, para representar papel tão importante no desenvolvimento humano? Não constitui uma atividade intelectual, e todavia é necessária à vida intelectual; não é religião, contudo cresce com a religião, serve-a e, em grande parte, a determina. Aqui não podemos entrar numa longa discussão acêrca do que tem sido sustentado como a essência da Arte, da verda­ deira natureza da Arte, ou de sua função determinante; numa simples conferência, que trata de um aspecto da Arte, qual seja: a sua influência cultural, posso apenas oferecer, à guisa de preâmbulo, minha própria definição de Arte, com categó­ rica brevidade. Isto não significa que eu tenha estabelecido tal definição com um espírito categórico, mas sim que tão-sòmente falta-me tempo para debatê-la; rogo, pois, seja aceita como uma pressuposição subjacente a estas reflexões. A Arte, no sentido aqui proposto — ou seja, o têrmo genérico abrangendo pintura, escultura, arquitetura, música, dança, literatura, drama e cinema — pode ser definida como a prática de criar formas perceptíveis expressivas do sentimento humano. Digo formas “ perceptíveis” e não “ sensórias” por­ que algumas obras de arte se oferecem mais à imaginação do que aos sentidos exteriores. Um romance, por exemplo, é usual­ mente lido em silêncio, com os olhos, porém não é feito para a visão, como o é um quadro; e conquanto o som represente papel vital na poesia, as palavras, mesmo em poesia, não são essencialmente estruturas sonoras como a música. A dança carece de ser vista, mas empolga centros mais profundos de sensação. A diferença entre a dança e a escultura móvel ressalta isto imediatamente. Tôdas as obras de arte, porém, são formas puramente perceptíveis, que parecem encarnar alguma sorte de sentimento. “ Sentimento” (feeling), como aqui emprego a palavra, tem um significado muito mais amplo do que o definido pelo vocabulário técnico de Psicologia, onde apenas denota prazer e desprazer, ou mesmo nos limites cambiantes do discurso ordi-

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núrio, onde às vêzes significa sensação (como quando alguém diz que não sente um membro paralisado) às vêzes sensibili­ dade (como quando falamos de ferir os sentimentos de alguém), às vêzes emoção (como quando se diz que uma situação lacera os nossos sentimentos ou evoca um sentimento terno), ou uma atitude emocional direta (como quando dizemos experimentar um sentimento intenso acêrca de alguma coisa), ou mesmo nossa condição geral, mental ou física, quando nos sentimos bem ou mal, melancólicos ou um tanto ufanos. A palavra, como aqui a uso, ao definir Arte como criação de formas per­ ceptíveis expressivas do sentimento humano, compreende todos êsses significados; aplica-se a tudo quanto possa ser sentido. O utra palavra dessa definição que poderia ser questionada é “criação” . Acho que ela se justifica; não tão pretensiosa como talvez soe, mas êsse problema está meio fora de questão aqui; arquivemo-lo, portanto. Se em vez de criação alguém preferir falar de “produção” ou “construção” de formas expressivas, êsses têrmos servirão muito bem, no caso. O que realmente se precisa entender é o significado de “forma”, e mais particularmente de “forma expressiva” ; pois isso envolve a própria natureza da Arte e, portanto, a questão de sua importância cultural. A palavra “forma” tem vários usos correntes; a maioria dêles apresenta alguma relação com o sentido com que aqui a emprego, embora uns poucos, tal como “um formulário * a ser preenchido para fins tributários” ou “uma pura questão de forma” sejam empregos bem remotos, por serem muito espe­ cializados. Visto que falamos de Arte, seria bom assinalar que o significado do padrão estilístico — “ a forma de sonata”, “ a forma de sonêto” — não é o que visamos aqui. Emprego a palavra num sentido mais simples, que ela tem quando se diz, numa noite nevoenta, que se vêem formas vagas moverem-se por entre a bruma; uma delas emerge clara­ mente, e é a forma de um homem. As árvores têm formas gigantescas; fios de chuva traçam formas sinuosas na vidraça. Os fios não são coisas fixas; são formas de movimento. Quan(* ) Em inglês, a palavra form, “form a”, tam bém significa “for­ m ulário”, acepção, aliás, que encontramos na nossa expressão “pública forma”. (N. do T .)

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do observamos mosquitos a traçarem círculos no ar, ou bandos de pássaros a revolutearem, estamos vendo formas dinámicas — formas produzidas pelo movimento. É neste sentido de aparecimento à nossa percepção que uma obra de arte constitui uma forma. Pode ser uma forma permanente como a de um edificio ou de um vaso ou de um quadro, ou uma forma transiente, dinámica, como a de uma melodia ou de uma dança, ou ainda uma forma sugerida à imaginação, como a passagem de eventos puramente imaginá­ rios, aparentes, que constitui uma obra literária. Mas é sempre um todo perceptível, com identidade própria; como um ser natural, tem um caráter de unidade orgânica, auto-suficiência, realidade individual. E é dêsse modo, como aparência, que uma obra de arte é boa, má ou apenas medíocre — enquanto aparência, não enquanto comentário de coisas além de si pró­ pria, ou como lembrete de tais coisas. Isto, pois, é o que quero dizer com “forma” ; mas o que se quer dizer quando se qualificam essas formas de “ expressi­ vas do sentimento humano” ? Como é que aparições “expres­ sam” alguma coisa — sentimento ou outra coisa qualquer? Antes de mais nada, indaguemos o que exatamente se quer dizer com “ expressar” , e de que espécie de “expressão” esta­ mos falando. A palavra “ expressão” possui dois significados principais. Num sentido significa auto-expressão — dar vazão a nossos sentimentos. Nesse sentido, relaciona-se a um sintoma do que sentimos. A auto-expressão é uma reação espontânea a uma situação real e presente, um evento, as pessoas com que esta­ mos, as coisas que os outros dizem, ou o efeito que o tempo nos causa; indica o estado físico e mental em que nos encon­ tramos e as emoções que nos animam. Em outro sentido, porém, “expressão” significa a apre­ sentação de uma idéia, usualmente pelo emprêgo próprio e adequado de palavras. Mas o artifício pelo qual se apresenta uma idéia constitui o que chamamos símbolo, não sintoma. Destarte, uma palavra é um símbolo, e também o é uma com­ binação significativa de palavras. Uma sentença, que é uma combinação especial de pala­ vras, exprime a idéia de algum estado de coisas, real ou ima­ ginado. Sentenças são símbolos complicados. A linguagem

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formula idéias novas assim como comunica idéias velhas, de modo que todo mundo conhece muitas coisas acerca das quais meramente leu ou ouviu falar. A expressão simbólica, por­ tanto, estende o nosso conhecimento para além do campo da nossa experiência real. Se uma idéia é claramente transmitida por meio de sím­ bolos, dizemos que está bem expressa. Uma pessoa pode tra­ balhar longo tempo para dar ao seu enunciado a melhor forma possível, para acertar com as palavras exatas para o que deseja dÍ2er, e para levar o seu relato ou argumento o mais direta­ mente possível de um ponto a outro. Mas um discurso assim elaborado não constitui decerto uma reação espontânea. Dar expressão a uma idéia é obviamente diferente de dar expressão a sentimentos. Não se diz a um homem enfurecido que sua ira está bem expressa. Os sintomas são apenas o que são; não existem padrões críticos para êles. Se, por outro lado, o ho­ mem enfurecido tentar contar-nos a razão de sua zanga, terá de dominar-se, conter sua expressão emocional e atinar com palavras que lhe expressem as idéias. Pois narrar uma história coerentemente implica “ expressão” em sentido completamente diferente: êste tipo de expressão não é “ auto-expressão”, mas pode ser chamado “expressão conceituai” . A linguagem é, decerto, o nosso principal instrumento de expressão conceituai. As coisas que podemos dizer são, na realidade, as que podemos pensar. As palavras constituem os têrmos de nosso pensamento, bem como os têrmos em que apresentamos nossos pensamentos, porque apresentam os obje­ tos do pensamento ao próprio pensador. Antes de a linguagem comunicar idéias, ela lhes dá forma, torna-as claras, e, na ver­ dade, fá-las o que são. Tudo quanto tenha nome é um objeto para o pensamento. Sem palavras, a experiência sensoria é apenas um fluxo de impressões, tão subjetivo quanto nossos sentimentos; as palavras o tornam objetivo e lavram-no em coisas e fatos que podemos perceber e lembrar e acêrca dos quais podemos pensar. A linguagem confere à experiência exterior a sua forma e a torna definida e clara. H á, contudo, uma parte importante da realidade que é deveras inacessível à influência formativa da linguagem: o do­ mínio da chamada “ experiência interior”, a vida do sentimento e da emoção. A razão por que a linguagem se mostra aqui tão

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impotente não é, como tanta gente supõe, o fato de o senti­ mento e a emoção serem irracionais; ao contrário, parecem irracionais porque a linguagem não ajuda a fazê-los concebíveis, c a maioria das pessoas não pode conceber coisa alguma sem o andaime lógico das palavras. A inaptidão da linguagem para transmitir a experiência subjetiva é assunto algo técnico, mais fácil de entender para lógicos do que para artistas; mas o essencial da questão está em que a forma da linguagem não reflete a forma natural do sentimento, de modo que não po­ demos formar quaisquer conceitos amplos do sentimento com a ajuda da linguagem comum, a linguagem discursiva. Por­ tanto, as palavras por via das quais referimos o sentimento somente nomeiam espécies muito gerais de experiência interior: excitação, calma, alegria, tristeza, amor, ódio e assim por diante. Mas não existe linguagem que descreva exatamente como uma alegria difere, às vêzes radicalmente, de outra. A natureza real do sentimento é algo que a linguagem como tal — como simbolismo discursivo — não pode exprimir. Por essa razão, os fenômenos do sentimento e da emoção são usualmente tratados pelos filósofos como irracionais. O único padrão ( pattern) que o pensamento discursivo pode encontrar nêles é o dos eventos exteriores que lhes dão causa. H á diferentes graus de mêdo, mas são considerados como tantos graus do mesmo sentimento simples. O sentimento humano, porém, é uma trama e não uma massa vaga. Possui um intrincado padrão dinâmico; tem com­ binações possíveis e novos fenômenos emergentes. É um pa­ drão de tensões e resoluções indeterminadas e orgánicamente interdependentes, um padrão de cadência e ativação quase infi­ nitamente complexas. A êle pertence a gama tôda de nossa sensibilidade — o sentido do pensamento intenso, tôdas as ati­ tudes mentais e disposições motoras. Essas são as mais pro­ fundas regiões que subjazem à superfície encapelada de nossa emoção, e tornam a vida humana uma vida de sentimento em vez de uma existência metabólica inconsciente, interrompida por sentimentos. Creio que é êsse padrão dinâmico que encontra expressão formal nas artes. A expressividade da Arte semelha a de um símbolo e não a de um sintoma emocional; é enquanto formu­ lação de sentimento para a nossa concepção, que pròpriamente

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se diz de urna obra de arte que é expressiva. Ela pode, além disso, atender à necessidade auto-expressiva de alguém, mas não é isso o que a faz boa ou má arte. Num sentido especial, poder-se-ia chamar uma obra de arte de símbolo de sentimento, pois, como um símbolo, ela formula nossas idéias de experiência interior, assim como o discurso formula nossas idéias de coisas e fatos do mundo exterior. Uma obra de arte difere'd e um símbolo genuíno — isto é, de um símbolo no sentido pleno e usual — pelo fato de não indicar nenhuma outra coisa além de si própria. A sua relação com o sentimento é uma relação deveras especial e não nos podemos propor analisá-la aqui; na verdade, o sentimento que ela expressa parece ser dado dire­ tamente com ela — como o sentido de uma metáfora verda­ deira ou como o valor de um mito religioso — e não é separá­ vel de sua expressão. Falamos do sentimento de ou do senti­ mento em uma obra de arte, e não do sentimento que ela significa. E o dizemos bem; uma obra de arte apresenta algo assim como uma visão direta de vitalidade, emoção, realidade subjetiva. A função primordial da Arte é objetivar o sentimento de modo que possamos contemplá-lo e entendê-lo. É a formula­ ção da chamada “ experiência interior” , da “vida interior”, que é impossível atingir pelo pensamento discursivo, dado que suas formas são incomensuráveis com as formas da linguagem e de todos os seus derivativos (por exemplo, a Matemática, a Lógica Simbólica). A Arte objetiva a senciência e o desejo, a consciencia de si próprio e a consciência do mundo, as emo­ ções e os humores, que geralmente são tidos por irracionais, visto as palavras não nos poderem dar clara idéia déles. Mas a premissa tácitamente pressuposta em tal juízo — qual seja: que tudo aquilo que a linguagem não pode expressar é amorfo e irracional — parece-me errônea. Creio que a vida do senti­ mento não é irracional; apenas, as suas formas lógicas diferem muito das estruturas do discurso. Elas são, contudo, tão seme­ lhantes às formas dinâmicas da Arte que esta constitui-se no seu símbolo natural. Através das artes plásticas, da música, da ficção, da dança ou das formas dramáticas, podemos conceber o que sejam a vitalidade e a emoção. Isto nos leva, finalmente, à questão da importância cul­ tural das artes. Por que está a Arte tão apta a representar a

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vanguarda do avanço cultural, como aconteceu no Egito, na Grécia, na Europa crista (pense-se na música gregoriana e na arquitetura gótica), na Itália da Renascença — para não espe­ cular acérca dos homens das cavernas, cuja arte é tudo o que déles se conhece? Pensa-se em cultura como desenvolvimento econômico, organização social, e gradual ascendencia do pensa­ mento racional e do contróle científico da Natureza sôbre a imaginação supersticiosa e as práticas de magia. Mas a Arte não é prática; não é Filosofía nem Ciencia; não é religião, nem moralidade, nem mesmo crítica social (como muitos críticos dramáticos supõem que a comédia seja). Qual a sua contri­ buição à cultura, que pudesse ser de importância primordial? Ela tão-sòmente apresenta formas — às vêzes formas intangíveis — à imaginação. O seu apêlo dirige-se diretamente àquela faculdade, ou função, que Lorde Bacon considerava o tropêço no caminho da razão, e que escritores iluminados como Stuart Chase jamais se cansaram de condenar como a fonte de tôda insensatez e de crenças errôneas e bizarras. E ela o é, de fato; mas é também a fonte de tôdas as introvisões e fés verdadeiras. A imaginação é provàvelmente o mais antigo traço mental tipicamente humano — mais antigo do que a razão discursiva; é provàvelmente a fonte comum do sonho, da razão, da religião e de tôda observação geral verdadeira. É esta primitiva fôrça humana — a imaginação — que engendra as artes e é, por seu turno, diretamente afetada por suas produções. Alhures, no ponto em que teve início a evolução huma­ na, encontram-se os princípios dêsse supremo instrumento da mente: a linguagem. Consideramo-la um artifício destinado à comunicação entre os membros de uma sociedade. Mas a comunicação é apenas uma, e talvez nem seja a primeira, de suas funções. A primeira coisa que ela faz é fragmentar o que Willíam James chamou de a “viçosa, vociferante confusão” da percepção sensoria, em unidades e grupos, eventos e cadeias de eventos — coisas e relações, causas e efeitos. Todos êsses padrões são impostos à nossa experiência pela linguagem. Pen­ samos, à medida que falamos, em têrmos de objetos e suas relações. Mas o processo de fragmentar nossa experiência sensoria dessa maneira, tornando a realidade concebível, memorável, às

vêzes até previsível, é um processo da imaginação. A concep­ ção primitiva é imaginação. Linguagem e imaginação desen­ volvem-se conjuntamente num regime de tutelagem recíproca. O que o simbolismo discursivo — a linguagem no seu uso literal — nos faz no tocante à nossa consciência das coisas em derredor e à nossa própria relação com elas, as artes fazem em prol de nossa consciência da realidade subjetiva, do senti­ mento e da emoção; dão forma às experiências interiores e tornam-nas, assim, concebíveis. A única maneira pela qual podemos realmente considerar o movimento vital, a agitação, o desenvolvimento e a passagem da emoção, e finalmente todo o sentido direto da vida humana, é em têrmos artísticos. Um musicista pensa em emoções musicalmente. Acima de um nível muito geral, não se pode falar delas discursivamente. Mas elas podem, não obstante, ser conhecidas — expostas objetiva­ mente, publicamente conhecidas — e não há nada necessàriamente confuso ou amorfo nas emoções. Tão logo as formas naturais da experiência subjetiva sejam abstraídas ao ponto da apresentação simbólica, podemos utilizar essas formas para imaginar o sentimento e entender-lhe a natu­ reza. O autoconhecimento, a introvisão de tôdas as fases da vida e da mente, surge da imaginação artística. Eis aí o valor cognitivo das artes. Mas a sua influência sôbre a vida humana ultrapassa o nível intelectual. Assim como a linguagem realmente dá forma à nossa experiência sensoria, agrupando-nos as impressões em tôrno das coisas que têm nomes, e ajustando as sensações às qualidades que têm designações adjetivas e assim por diante, as artes com que convivemos — nossos livros de pintura e de contos e a música que ouvimos — formam realmente nossa experiência emotiva. Cada geração possui seus estilos de sentir. Uma época freme, enrubesce e desmaia, outra fanfarreia e outra ainda mostra sublime e universal indiferença. Êsses estilos de emoção real não são insinceros. São em grande parte inconscientes — determinados por muitas causas sociais, porém moldados pelos artistas, geralmente pelos populares artistas da tela, pela jukebox, pela vitrina e pela revista ilus­ trada. (Nisto, mais que no incitamento ao crime, é que se fun­ damenta a minha objeção aos “gibis” .) Irw in Edman assinala,

num de seus livros, que as nossas emoções são em grande parte poesia de Shakespeare. Essa influência que a Arte exerce sôbre a vida dá-nos um indício da razão por que um período de florescimento das artes é capaz de conduzir a vim avanço cultural: tal período formula uma nova maneira de sentir, e isso é o princípio de um período cultural. Semelhante fato sugere também outra matéria à reflexão — que um generalizado descaso pela educação artís­ tica equivale a descaso pela educação do sentimento. Á maioria das pessoas anda tão imbuída da idéia de que o sentimento é uma amorfa excitação, totalmente orgânica, em homens como em animais, que a idéia de educar o sentimento, de desenvol­ ver-lhe o raio de ação e a qualidade, se lhes afigura fantástica, se não absurda. De minha parte, creio que constitui realmente o próprio cerne da educação pessoal. Existe uma outra função das artes que não favorece tanto o avanço da cultura quanto a sua estabilização — uma influên­ cia sôbre vidas individuais. Esta função é o inverso e o com­ plemento da objetivação do sentimento, a fôrça propulsora da criação em Arte: é a educação da visão, que adquirimos ao contemplar, ouvir ou ler obras de arte — o desenvolvimento do ôlho artístico, que assimila visões ordinárias (ou sons, movi­ mentos ou eventos) à visão interior, e confere expressividade e importância emocional ao mundo. Sempre que a Arte colha um motivo da realidade — um ramo florido, uma nesga de paisagem, um acontecimento histórico ou uma lembrança pes­ soal, qualquer modêlo ou tema da realidade — ela o transforma numa peça de imaginação, e impregna de vitalidade artística a sua imagem. O resultado é impregnar-se a realidade comum com a expressividade da forma criada. Isto é a objetivação da Natureza, que torna a própria realidade um símbolo da vida e do sentimento. As artes objetivam a realidade subjetiva, e subjetivam a experiência externa da Natureza. A educação artística é a educação do sentimento, e uma sociedade que a negligencia se entrega à emoção amorfa. Má arte é corrupção do sentimento. Este é um importante fator do irracionalismo que os ditadores e os demagogos exploram.

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6 CIVILIZAÇÃO CIENTÍFICA E CRISE CULTURAL *

Tôda vida humana apresenta uma subcorrente de sen­ timento que lhe é peculiar. Cada indivíduo expressa êste pa­ drão contínuo de sentimento naquilo que chamamos de sua “personalidade”, refletida no comportamento, na fala, na voz e mesmo no porte físico (parado ou andando) como o seu estilo individual. Em escala maior, tôda sociedade humana tem sua subcorrente de sentimento que não é individual mas geral. Tôdas as pessoas a partilham em certo grau, e desenvolvem sua própria vida do sentimento dentro do quadro do estilo preponderante em seu país e em sua época. Quase em tôda parte do mundo, hoje em dia, a subcorrente de sentimento está confusa, incerta, tensa. H á muito orgulho nela, mas sob o orgulho, há mêdo; há uma grande fé na Ciên­ cia, e ao mesmo tempo um irracionalismo que trai a vacilação de tal fé; há um crescente senso de sociedade mundial, direitos humanos, e igual dignidade de tôda a Humanidade, e no entanto prevalece a hostilidade e o ciúme que tornam a situação polí­ tica do mundo uma prolongada “guerra fria” na qual tôda sociedade acaba por se envolver. O sentimento básico da maioria das pessoas hoje em dia parece ser de profunda con­ fusão em moral, fins, valores, crenças e motivos. (* ) Êste trabalho foi apresentado num a reunião da Associação Japonêsa Pró Filosofia da Ciência, em Nikko, Japão, em agosto de 1961.

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Não é difícil encontrar a razão de tôda essa instabilidade emocional. A nossa geração assistiu à maior, à mais espeta­ cular mudança do cenário humano jamais registrada pela His­ tória, Principiou ela com a chamada “ revolução industrial” na Europa — a invenção das máquinas motorizadas para reali­ zarem o trabalho que sempre fôra feito por mãos humanas, o que conduziu à produção de bens em massa. A produção em massa teve os mais dramáticos efeitos na civilização européia, fazendo com que esta florescesse vigorosamente num modo de vida inteiramente nôvo, e difundiu a economia e a soberania política da Europa, ao menos por breve tempo, através de oceanos e continentes, especialmente rumo ao ocidente, até a América, de modo que, atualmente, os dois continentes ameri­ canos são europeus na linguagem e, em grande parte, na popu­ lação. Quando, pois, falo da “ civilização moderna”, refiro-me a esta civilização que emanou da Europa, e pouco encontrou que a impedisse de estabelecer-se primeiramente na América, e gradativamente em todo o mundo. Tudo o que encontrava, ela usualmente inundava e submergia, como sem dúvida o fizeram em seu tempo as civilizações passadas. Só muito recentemente vamos compreendendo o que ela destruiu, e também o gravíssimo fato de que no seu avanço ainda está destruindo muitas coisas insubstituíveis e de valor indubitável — ordens sociais de classe e status erigidas por uma longa história nacional ou local, fé religiosa e suas insti­ tuições, artes apoiadas em boas e sólidas tradições, maneiras de viver em que desde muito as pessoas se têm sentido seguras e úteis. Tais perdas não devem ser desdenhadas. Não há negar que a ponta de lança dessa implacável revo­ lução social é algo que todos nós — pelo menos nesta nossa presente reunião — reverenciamos e desejamos: a Ciência. A Ciência é a fonte e a promotora dessa civilização moderna que está varrendo um mundo de valôres culturais. É com boa razão que aqui nos encontramos para discutir o papel da Ciência na civi­ lização; eu gostaria de levar a questão um pouco mais longe, e falar acêrca do efeito dessa civilização científica sôbre a cultura humana em todo o mundo contemporâneo. Pois não é apenas em terras que ela súbita e dramaticamente invadiu, mas tam­ bém nas suas terras de origem — na Europa e nos Estados Unidos — , que a revolução tecnológica, com seus padrões

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mentais e materiais inteiramente novos, conturbou profunda­ mente as culturas locais e mesmo nacionais. Esta observação tem um certo ar de paradoxo. Como pode a civilização aniquilar a cultura? Não são civilização e cultura a mesma coisa? Sempre que damos com um paradoxo, podemos contar com um problema filosófico — isto é, com um problema de significado. A Filosofia é o estudo sistemático dos significados. Os paradoxos são engendrados por definições inexatas ou incompletas, e um estudo mais acurado dos conceitos nelas envolvidos elimina habitualmente os paradoxos e revela, em vez dêles, interessantes distinções entre processos e condições que entre si mantêm estreita afinidade. Destarte, a questão com que nos defrontamos é essencialmente esta: que entende­ mos por cultura, e que entendemos por civilização? Uma com­ preensão mais precisa dêsses dois têrmos talvez sirva para expli­ car como, a despeito de sua íntima conexão, uma grande tensão pode surgir entre uma civilização que cresce rapidamente e os valores culturais. Que civilização e cultura não são a mesma coisa eviden­ cia-se no fato de que podem existir culturas selvagens ou civi­ lizadas. “Civilização selvagem”, porém, seria uma contradição de têrmos. Uma cultura é a expressão simbólica de modos de sentir habituais desenvolvidos. Com “ sentir” não quero dizer parti­ cularmente prazer e desprazer, acepção a que muitos psicólogos limitam a palavra, nem- apenas emoção e sensação, mas sim tudo o que possa ser sentido. Sentimos coisas indefiníveis como ritmos de atenção e tensão do pensamento, relaxamento ou tensão corporal que não podem ser reduzidos a qualquer sensação particular, atitudes da mente, a atividade geral da nossa imaginação, confiança na excelência da vida, ou aborre­ cimento, tédio, misantropia fundamentais, ou ainda os incon­ táveis estados de humor. O humor é uma das marcas mais individuais de um povo. Todos êsses fenômenos de sensibi­ lidade e emotividade geral eu os abarco aqui sob a designação de “ sentir”, como também as emoções distintas. Com modos de sentir refiro-me ao grau que os sentimentos são capazes de atingir, sua persistência ou transiência, a rapidez de várias res­ postas, e seu dirigir-se a certos eventos antes que a outros.

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A cultura é a expressão dêsse padrão ( pattern) caracterís­ tico de sentimento, que distingue um povo de outro, no padrão de suas ações e ñas coisas envolvidas em suas ações — ou seja, em suas coisas, especificamente. Os atos têm em geral um propósito, e as coisas são úteis, isto é, servem a propósitos; mas tanto os atos como os artefatos ultrapassam as necessi­ dades práticas, com assumirem caráter formal, o que não é eficaz e sim expressivo. Os movimentos humanos não são ape­ nas ações motivadas, mas também gestos; os objetos humanos — desde os palitos de dentes até casas, automóveis, navios — não têm apenas usos, mas também estilo. O elemento de gesto em nossas ações é sua formalização gradual, inconsciente, ou deliberada e consciente. Isto é mais acentuado e detalhado no ritual — religioso, militar, acadêmico ou puramente festivo — e especialmente, claro está, religioso, o qual amiúde é inten­ cionalmente simbólico de atitudes pessoais e coadjuvado por símbolos mais permanentes, imagens e objetos de culto. No entanto, o ritual não constitui de modo algum todo o campo da ação formalizada; pràticamente todo comportamento social adquire algum valor mímico, como propriedade, gôsto, boa pa­ lestra ou conversa grosseira, boas ou más maneiras, conformi­ dade ou divergência em relação a normas não enunciadas porém familiares. Esses canais formais objetivos da expressão pessoal são a nossa herança social; e da mesma forma que dão expressão a nossos sentimentos e atitudes, também os moldam e estabe­ lecem. Êles são as influências públicas que, por via de acultu­ ração, modificam nossas vidas privadas e asseguram a conti­ nuidade do sentimento vital que unifica uma comunidade na­ tural. Logo, moralidade, costume e religião são essencialmente conservadores; e se permanecem inabalados por períodos muito longos, sempre correm o perigo de fossilizar-se de modo que o sentimento seja reduzido e debilitado pelos canais que se vão estreitando. Uma cultura em desenvolvimento exige diver­ gência, mudança, novidade de formas expressivas — em lin­ guagem, idéias, objetos visíveis, maneiras de fazer coisas. Tem de haver um avanço criativo a intervalos muito breves, quando não o tempo todo. Desbravar é uma tarefa de indivíduos, e uma cultura estará condenada se não produzir grandes inconíormistas que quebrem os moldes herdados de expressão com 94

a fôrça de suas idéias novas, que rasguem um canal para novos elementos de sentimento e lavrem uma estrutura para novas atitudes e sentimentos morais. Todavia, essas inovações pessoais também podem ser transmitidas por grandes homens a homens de menor estôfo, ou a pessoa de gênio, mais jovens, como legado cultural. A cultura é todo o acervo de realizações de uma sociedade. Seu avanço tem certa semelhança com o crescimento orgânico, lento, cumulativo, cambiante, mas com identidade própria. A civilização constitui um fenômeno algo diferente. Ela é sempre produto de uma cultura superior; mas em vez de ser o aspecto simbólico do comportamento, é o padrão da imple­ mentação prática da vida — prática, não necessariamente física. Arranjos como contratos, compromissos, regulamentações legais (por exemplo, as leis de tráfego) M o são instrumentos físicos; são, porém, puramente simbólicos — pedaços de papel, conchas de ostra, metal etc. E a sua finalidade é facilitar a gestão da vida. A civilização, como o indica a palavra, surge com o apa­ recimento de cidades. É essencialmente um produto da vida citadina, e alastra-se dos centros urbanos para o campo. En­ quanto uma população vive diretamente da terra, cada família encontra ou cultiva seu próprio alimento, edifica seu próprio domicílio, e talvez o transmita de uma geração a outra; as decisões públicas são tomadas através de discussão direta, voto, declaração, ordem ou qual seja a prática; os bens são trocados diretamente entre as partes interessadas. Geralmente, basta o costume para determinar os deveres e os direitos das pessoas, e nêle se fiam os juizes para decidir casos de transgressão ou de conflitos de interêsses. Mas quando as pessoas se apinham em cidades, êsse antigo padrão se rompe. Elas não podem mais caçar nem cultivar seu próprio alimento; a zona rural tem de supri-lo, diariamente. Não podem oferecer bens em troca dêle, pois nada têm a oferecer que os coletores ou plan­ tadores de alimento necessitem diariamente; destarte, faz-se mister um meio de troca: o dinheiro. Com o dinheiro, o co­ mércio se torna complicado demais para ser conduzido numa base de práticas costumeiras; além do mais, as pessoas congre­ gadas em cidades freqüentemente provêm de diferentes comu­ nidades, de costumes diversos. Isto torna necessária a lei esta­

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tutária. Uma importante contribuição cultural da vida cívica 6 o estreito contato que as pessoas mantêm entre si e que inten­ sifica a troca de idéias, a oportunidade de cada indivíduo aprender coisas que estão além da sua experiência e de sua origem familiar, a efervescência da novidade contrastando com a pacata monotonia da vida campestre. H á uma mudança de mentalidade. Demais, a cidade proporciona uma meta de via­ gem; comunicação e movimentação assumem nova importância. Tôdas as coisas tendem para o fenômeno histórico a que cha­ mamos “civilização” — a organização prática da vida, pública e privada. As sementes da civilização estão em tôda cultura, mas é a vida citadina que as leva à fruição. Como todo processo de fruição, a civilização deforma e esgota a vida que a engendra e sustém — a cultura que atinge o clímax nesse desenvolvi­ mento. A vida civilizada estabelece um nôvo equilíbrio entre elementos conservadores e progressistas, e inclina a balança do sentimento para o pólo aventuroso e personalista, afastando-a da piedade e do decôro. Esse deslocamento de equilíbrio não ocorre, é óbvio, sem demonstrações flagrantes de rematado desequilíbrio — vidas culturalmente perdidas, degeneradas, os familiares “ elementos criminosos” e os vadios irresponsáveis de qualquer cidade grande do mundo. No entanto, isto, por si só, provàvelmente não poria em crise uma cultura grande e próspera; mesmo o crescente espí­ rito de aventura da mentalidade urbana, que conduz a comu­ nidade à agressão, a guerras de conquista, ao comando orga­ nizado, talvez a vastos impérios, não carece de ser fundamen­ talmente perturbador. Culturas há que foram edificadas em tôrno da guerra, e exprimiram-se em façanhas, triunfos e tro­ féus. O perigo que a civilização representa para a vida cul­ tural, mais agudo em nosso próprio mundo do que em qualquer era precedente, é algo menos horroroso, porém realmente mais sério. Êle alterou o caráter e a própria função da guerra. Trata-se simplesmente do fato de a civilização poder ser transplantada, e viver separada de suas raízes culturais. Ela pode ser enxertada em outras culturas e nelas vicejar. Os pro­ dutos da civilização são artifícios — coisas, que podem ser transportadas a outros lugares; técnicas, que podem ser apren-, didas. Qualquer invenção, qualquer processo, onde quer que

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se origine, hoje se difunde pelo mundo todo, deixando para trás suas bases culturais, e incide ñas vidas de pessoas para as quais não tem forma familiar, nenhuma associação, nenhuma relação com outros produtos ou atos — nada além da utilidade. Finalmente, a civilização em bloco despenca como uma grelha de ferro para esmagar a herança de sentimento e de fé, bem como o encanto da vida. A civilização — estrutura prática da vida — é como um traçado de contôrno da cultura que a engendrou. Enquanto esteja na pintura a partir da qual é feito, é mister atenção espe­ cial para abstrair o contôrno; mas, removido, semelha uma forma árida e vazia, e sobreposto a outra pintura induz à con­ fusão. Nossa moderna tecnologia, trasladada para pràticamente todos os países do mundo, fêz que a civilização em tôda parte lhe seguisse as linhas, e mudasse a gestão da vida tão radical­ mente que a realidade e a tradição parece não terem contacto uma com a outra. Mesmo as práticas religiosas se tornam insustentáveis na nova estrutura prática; e com qualquer falha do apoio religioso, os indivíduos tendem a perder a estabili­ dade emocional e moral. A comunidade de sentimentos se desintegra quando as instituições perdem o caráter sagrado e parecem meramente antiquadas, não veneráveis. É bastante fácil compreender por que uma civilização engendrada por uma cultura localizada e assaz jovem iria con­ fundir o resto do mundo, mas por que ela afronta e desafia a sociedade que lhe deu nascimento? Todos sentimos a mesma insegurança em face do nosso miraculoso progresso tecnoló­ gico, que parece correr cada vez mais rápido rumo ao completo controle das águas e fogos da Terra, dos podêres ocultos da química da Terra, das fôrças da luz, da pressão do ar, e da rotação do próprio globo, e mesmo rumo à conquista do espaço interestelar. O fato, penso eu, é que a produção científica ultrapassou-nos a imaginação, e a mudança em nossa civilização — dos meios práticos e técnicas de vida — avançou com impulso pró­ prio e sobrepujou o avanço de nosso pensamento. Por conse­ guinte, nossa civilização tecnológica parece acometer-nos e engolfar-nos como se fôsse algo estranho vindo sôbre nós; faz tôdas as nossas instituições tradicionais parecerem inadequa­ das, de forma que tendemos a abandoná-las. Religião estatal, 4

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matrimônio, autoridade paterna, respeito pelas pessoas idosas, piedade para com os mortos, santidade, hierarquia e realeza — todos êsses antigos valores perderam sua condição de inviola­ bilidade e precisam ser defendidos do iconoclasta “espírito moderno” . Às vêzes, apesar das defesas que a geração mais velha possa apresentar em favor dêles, uma geração mais jovem varre-os como relíquias de um passado supersticioso, servil e bárbaro. Mas, com êles, varre também seus próprios símbolos sociais e os elementos de sua própria orientação no mundo; então, a vida pessoal sente-se de súbito vazia, e a civilização que lhe destroça os confortos espirituais em nome de melho­ ramentos práticos parece ter-lhe sobrevindo como um poder impôsto do exterior. Penso ser esta uma transição inevitável, que realmente assinala uma das grandes crises da história humana — o surgi­ mento final da sociedade mundial ao fim de muitos séculos de, grupos culturais auto-suficientes. Pois a Ciência, certamente a tônica de nossa era, é internacional. É uma conquista humana, não uma conquista nacional. A civilização que está empolgan­ do o mundo inteiro muito embora se expresse principalmente no comércio e em novas espécies de indústria, é um produto da Ciência. Encontramo-nos num estado socialmente anômalo, entre um mundo povoado de sociedades com religiões e interêsses tribais, e um mundo de organização industrial global, povoado por uma sociedade com interêsses globais, mas sem símbolos que os exprimam, sem religião que apóie o indivíduo neste nôvo e vasto teatro da vida. Tais desarmonias de desenvolvimento são bem conhecidas de qualquer naturalista; e o que pode acontecer na evolução biológica pode também acontecer na evolução psicológica e social. Esse estranho surgimento de novas formas que o meu falecido amigo e venerando mestre, Alfred N orth W hitehead, chamou de “o avanço criativo da Natureza” , não é um processo ordenado. Está cheio de irregularidades. De acordo com os registros fósseis, alguns animais como o cavalo, que atinge grande tamanho corporal, estiveram perto da extinção antes que algum outro traço — o desenvolvimento do cérebro, por exemplo, ou dos pés, para suportar o pêso acrescentado — se emparelhasse com o súbito crescimento. No desenvolvimento da sociedade, parece haver uma irregularidade semelhante, que

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leva a excesso de podêres e a atrasos culturais. Quando ocor­ rem tais desproporções transicionais, estabelecem-se tensões no organismo social que só o tempo pode compensar. Uma nova cultura se está provàvelmente formando, a qual emparelhará com o modificado meio ambiente humano que a nossa civili­ zação desenfreada e descontrolada nos infligiu. Não se pode, todavia, forçar o aparecimento de uma cultura real. Ela prin­ cipia quando a imaginação se inflama, e os objetos e ações se tornam símbolos, e os novos símbolos de vida se tornam moti­ vos de arte. A Arte, que formula e fixa modos de sentir hu­ manos, é sempre a ponta de lança de uma nova cultura, pois a cultura é o registro objetivo do sentimento desenvolvido. O que, todavia, completa e estabelece de fato uma cul­ tura não é a Arte, mas algo que se segue: a vida, profunda e tácitamente sentida, de ação manifesta, instituições, maneiras de viver, coisas produzidas. Filosofia, lei, exploração, virtudes marciais, religião — tudo isso caracterizou várias culturas do passado. Não sabemos qual será a fôrça propulsora e a subs­ tância da próxima época cultural, mas eu suspeito que, como tão amiudadamente ocorre na Natureza, o mesmo desenvolvi­ mento que está rompendo a velha estrutura do nosso pensamen­ to amoldará a nova, a saber, o desenvolvimento da Ciência. A minha conjetura baseia-se em diversos fatos. Um dêles acabo justamente de mencionar — que, como disse Pflüger, “ a causa da necessidade é a causa da satisfação da necessidade” . A fôrça destrutiva que aniquila tantas culturas antigas 6 realmente construtora da nova; as convulsões do mundo são funções de transição. O utro fato é o caráter global e universal da Ciência. Uma cultura que possa abarcar uma civilização mundial será provàvelmente uma cultura global, abrangendo tôda a Huma­ nidade. Atualmente, o pensamento científico é a única de nossas grandes e preponderantes atividades que é universal tanto de fato quanto em princípio. Já proclamamos a universalidade da Arte, e gradualmente chegamos a apreciar a arte de outros povos, mas ela ainda começa por ser exótica e muitas vêzes assim permanece, mesmo que a conheçamos e amemos. A Ciên­ cia não é nativa nem exótica; pertence à Humanidade e é a mesma em todos os lugares. Apenas, não é provável que ela engendre uma cultura, a menos, e até, que uma imaginação artística verdadeiramente universal nela se inflame e sirva, sem

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intenção deliberada, para dar forma a um nôvo sentimento, tal como o que geralmente inicia uma nova época da sociedade. Então o desenvolvimento intelectual de Ciência terá uma van­ guarda para seguir e uma “linha de desenvolvimento” para estabelecer. Não é provável que êsse desenvolvimento faça progresso reconhecível em nossos dias, mas isso não quer dizer que não esteja fazendo progresso algum. Não ; com rapidez que se conjugam esforços e se formam os grandes movimentos de sociedade, as conquistas características de tôda uma época. Uma mentalidade científica capaz de engendrar uma cultura mundial terá de ir muito além do que hoje entendemos por tal nome; terá de libertar e todavia disciplinar uma grande imaginação, abranger temas como mente, desenvolvimento, linguagem e história, e produzir conceitos sociais que tenham sentido para uma Humanidade que habite tôda a Terra e busque outros astros. Isso não será um plano qüinqüenal; nem é plano algum; porém acontecerá ou não acontecerá, independentemente de nossas resoluções para realizá-lo dêsse ou de outro modo. Mas, com certeza, alguma coisa tem de acontecer para quebrar as tensões que ainda se estão desenvolvendo hoje em dia. Já há sinais disso, e os mais jovens de nós talvez vivam para ver o nascimento, provàvelmente numa ou noutra das artes, de um nôvo sentimento, destinado a ser a ponta de lança de uma cultura que emparelhará com a nossa desenfreada civilização tecnológica, e vencerá a violência externa e a incerteza interior que é o preço de nossa primeira possessão verdadeiramente internacional — o pensamento científico.

7 O HOMEM E O ANIMAL: A CIDADE E A COLMEIA *

Nas últimas cinco ou seis décadas, o cenário humano pro­ vàvelmente mudou de maneira mais radical do que jamais antes na Historia. As mudanças exteriores de nosso próprio ambiente já são uma velha historia: o desaparecimento de veículos puxa­ dos a cavalo, de cavaleiros, de crianças caminhando a pé para a escola, e o advento da longa, baixa e poderosa Coisa em lugar déles; a transformação da fazenda grande num xadrez de pequenos lotes, cada um fazendo brotar uma casinha. Essas são as mudanças obvias, mais patentes no campo do que na cidade. As grandes cidades tornaram-se maiores, mais bri­ lhantes, mais mecanizadas, mas seus padrões básicos parecem menos abalados pelo nôvo poder e velocidade em que culmina a longa revolução industrial. A mudança mais profunda, porém, é realmente uma mu­ dança em nossa imagem da Humanidade, e que é mais espe­ tacular onde a Humanidade pulula e se concentra — na cidade. Nossa velha imagem da vida humana era uma imagem de grupos locais, cada qual falando a língua materna, observando alguma religião estabelecida, seguindo costumes próprios. Podia (* ) Êste trabalho, lido na Cooper U nion em Nova Iorque, foi publicado em The Antioch Review (outono de 1958) e reimpresso em Society T oday and Tomorroui, E. F. H unt e Jales K arlin, orgs., N. Y.: M acm illan, 1961.

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ser uma comunidade civilizada ou uma tribo selvagem, mas possuía tradições distintas. E nela havia subdivisões, usual­ mente famílias, com seus laços locais e relações humanas mais específicos. Hoje em dia, tribos naturais e comunidades isoladas quase desapareceram de todo. A facilidade e velocidade das viagens, as rápidas mudanças econômicas que impelem as pessoas à busca de novos tipos de trabalho, as duas guerras que varreram tôdas as fronteiras — aniquilaram a maior parte das nossas tradições. A velha estrutura familial vacila. A sociedade tende a fragmentar-se em unidades novas e menores — na verdade, em suas unidades fundamentais nos indivíduos humanos que a compõem. Essa atomização da sociedade é mais óbvia numa grande cidade cosmopolita. A cidade parece compor-se de milhões de indivíduos desconexos, cada qual competindo isoladamente, e, no entanto, sendo arrastado pela caudal de todos os outros. Olhos perspicazes viram isto há já uma centena de anos, especialmente nas cidades industriais, onde os indivíduos de longe ou perto vêm fazer o que outros indivíduos de perto ou longe também tinham vindo fazer — cada qual um dente na engrenagem da nova máquina. A maioria dêsses dentes sem qualquer outra relação entre si. E desde que esta agitação na sociedade começou, uma imagem da sociedade tem-se es­ tado formando — a das massas humanas, reunidas por alguma fôrça externa, por alguma função imposta, numa unidade superpessoal — massa de pessoas, cada qual representando um átomo de “ fôrça humana” numa nova espécie de organismo: o Estado industrial. A idéia do Estado como um organismo superior — o Estado como um superindivíduo — é velha. Mas nossa con­ cepção de semelhante Estado é nova, porque nossa civilização industrial, que engendra nossa sociedade atomizada, é nova. A antiga imagem não era de massas impulsionadas por alguma fôrça econômica imposta, ou por qualquer outra fôrça externa. O superindivíduo era um ser racional, dirigido pela mente que nêle havia. Os guardiães do Estado, os governantes, eram a sua mente. Platão descreveu o Estado como “o homem em letras grandes” . Hobbes, dois mil anos depois, chamou-o “Le-

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viatã”, a grande criatura. Uma cidade-Estado como Atenas ou Esparta antigas podia ser “um homem em letras grandes” , mas a Inglaterra era grande demais para isso. Ela era o grande peixe no grande tanque. A mente do peixe de Hobbes talvez fôsse sub-humana, mas era ainda única e soberana no organismo. Um par de séculos depois, Rudyard Kipling, defrontando-se com uma civilização democrática industrializada, chamou à sua alegoria da Inglaterra “A Mãe Colmeia” . Aqui, uma von­ tade comum, ditada por complicados instintos, substituiu até mesmo a mente do Leviatã; cada indivíduo era alinhado pelas fôrças cegas da vida coletiva. A imagem da colmeia tem tido grande êxito como ideal de ação social cooperativa. Tôda utopia moderna (exceto Shangri-La, completa racionalização de desejos) reflete o ideal da colmeia. Mesmo um estadista do mais alto calibre, Jan Smuts, louvou-o como o modêlo da sociedade industrial. O Estado personificado de Platão e o monstro marinho de Hobbes impressionam-nos como fantasias, mas a colmeia parece mais do que uma imagem poética; chega mesmo a zunir à nossa volta. Penso que o conceito de Estado como um organismo cole­ tivo, composto de multidões de pequenos operários, guiado por fôrças sociais que nenhum déles pode compreender, e cumprindo algum destino mais grandioso, é apoiado por um outro fator que não a nossa indústria mecanizada; êsse outro fator é um momentoso evento da nossa história intelectual: a difusão da teoria da evolução. Prim eiro os biologistas, depois os psicólogos e finalmente os sociólogos e moralistas tomaram consciência de que o homem pertence ao reino animal. O impacto do conceito da evolução sôbre os descobrimentos científicos tem sido imenso, e não se limitou à ciência laboratorial; tem produzido também algumas inspirações menos sóbrias e menos sólidas. O conceito de evolução animal contínua tem levado a maioria dos psicólogos a menoscabar as diferenças existentes entre o homem e os seus parentes não-humanos, e alguns dêles, na verdade, a ima­ ginar o H om o Sapiens como apenas uma das espécies de primatas, semelhante às outras em todos os aspectos essenciais — não diferindo dos bugios e símios mais do que êles próprios diferem entre si de espécie para espécie. Gradualmente, a

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noção do animal humano veio a gozar de gerai aceitação, sendo posta em dúvida apenas por algumas mentes religiosas. Isto, por seu turno, tornou natural, aos teóricos sociais com propen­ são científica, modelar seus conceitos da sociedade humana em sociedades animais: o formigueiro e a colmeia. Talvez fôsse bom, a esta altura, dizer que, pessoalmente, situo-me inteiramente no campo científico. Não argumento contra nenhuma religião, sequer contra doutrinas vitalistas; tais coisas não são discutíveis. Não falo pró mas do ponto de vista do naturalista, e quem quer que o não partilhe está livre para fazer suas próprias restrições ao julgar o que digo. A despeito da condição zoológica do homem, que eu aceito sem reservas, há um profundo abismo entre o mais alto animal e o mais primitivo ser humano normal: uma diferença fundamental de mentalidade. Ela surge com o desenvolvimento de um nôvo processo no cérebro humano — um processo que parece de todo peculiar a êsse cérebro: o uso de símbolos para representar idéias. Com “ símbolos” refiro-me a tôdas as espécies de signos que possam ser usados e entendidos, estejam ou não presentes as coisas por êles referidas. A palavra “ símbolo” tem, infeliz­ mente, muitos sentidos diferentes para diferentes pessoas. Algumas reservam-na para signos místicos, como os símbolos rosa-cruzes; outras designam por meio dela imagens significan­ tes, como os “vastos símbolos nebulosos de sublime romance” , de Keats; alguns a usam de maneira totalmente oposta e falam de “meros símbolos” , significando gestos vazios, signos que perderam seus significados; e outros, sobretudo os lógicos, usam o têrmo para denotar signos matemáticos, marcas que constituem um código, uma linguagem breve e concisa. Para êstes últimos, as palavras comuns também são símbolos. A linguagem comum é um simbolismo. Quando digo que a função distintiva do cérebro humano é o uso de símbolos, refimo-me a qualquer e a todos dessas espécies. Êles são completamente diferentes dos signos que os animais usam. Os animais também interpretam signos, mas apenas como indicadores de coisas e de eventos reais, sugestões de ação ou expectativa, ameaças e promessas, pontos de refe­ rência e sinais de identificação no mundo. Os sêres humanos também usam tais signos, mas usam sobretudo símbolos — especialmente palavras — para pensar e falar acêrca de coisas

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que não estão presentes nem são esperadas. As palavras trans­ mitem idéias, que podem ou não ter correlativos na realidade. Esse poder de pensar acêrca de coisas expressa-se através da linguagem, da imaginação e da especulação — principais pro­ dutos da mentalidade humana que os animais não partilham. A linguagem, o mais versátil e indispensável de todos os simbolismos, pôs o seu sêlo em tôdas as nossas funções mentais, de forma que suponho que estas sempre diferirão até mesmo de seus análogos mais próximos na vida animal. A linguagem invadiu nossos sentimentos, sonhos e ações, bem como nosso raciocínio, o qual é realmente um produto seu. A maior mu­ dança operada pela linguagem é o alargado campo de percep­ ção ( awareness) dos sêres dotados de fala. A percepção de um animal é sempre de coisas do seu próprio ambiente e de sua própria vida. Ao passo que, na consciência humana, a situação presente, real, constitui amiúde a menor parte. Não temos apenas lembranças e expectativas; temos um passado em que situamos essas lembranças, e um futuro que excede em muito nossas próprias previsões. Nosso passado é uma história, nosso futuro uma obra de imaginação. Outrossim, o nosso ambiente é um lugar dentro de um lugar mais amplo, simbolicamente concebido: o Universo. Nós vivemos em um mundo. Essa diferença de mentalidade entre o homem e o animal parece-me abrir entre êles uma fenda quase tão grande quanto a divisão entre animais e plantas. H á continuidade entre as ordens, mas a divisão, não obstante, é real. A vida humana difere radicalmente da vida animal. Em virtude de nossa consciência incomparàvelmente mais ampla, de nosso poder de vislumbrar coisas e eventos para além de qualquer percepção real, adquirimos necessidades e objetivos que os animais não têm; e até mesmo a sociedade humana mais selvagem, tendo de fazer face a essas necessidades e de alcançar êsses objetivos, não é realmente comparável a nenhuma sociedade animal. Ambas podem ter algumas funções análogas, mas a estrutura essencial deve diferir, porque o homem e a bêsta vivem de maneiras em tudo diferentes. Provavelmente a diferença mais profunda entre as necessi­ dades humanas e as necessidades animais seja ocasionada por uma parte da consciência humana, um fato que não se apresenta nos animais, porque nunca é aprendido por experiência direta:

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o nosso conhecimento antecipado da morte. O fato de que nós mesmos devemos morrer não é um fato simples e isolado. Hnseln-BC num amplo exame de fatos que revela a estrutura

dn História como uma sucessão de breves vidas entrelaçadas, os padrões de juventude e velhice, crescimento e decadência;

e, acima de tudo isso, baseia-se na revelação lógica de que a vida de cada um é um caso ilustrativo. Somente uma cria­ tura que possa pensar simbolicamente acêrca da vida logrará conceber sua própria morte. Nosso conhecimento da morte é parte do nosso conhecimento da vida. O que, pois, conhecemos — todos nós — acêrca da vida? Tôda vida que conhecemos é gerada por outra. Cada criatura viva surge de alguma outra criatura, ou criaturas, vivas. Seu nascimento é um processo de nova individuação, num fluxo de vida cujo princípio desconhecemos. Individuação é uma palavra que não se encontra com fre­ qüência. Ouvimos falar de individualidade, às vêzes encomiás­ ticamente, às vêzes como uma escusa pelo fato de ser alguém meio amalucado. Ouvimos e lemos acêrca “ do indivíduo”, um ser que se está eternamente ajustando, como uma criança-problema, a algo chamado “ sociedade” . Mas como surge real­ mente a individualidade? O que produz o indivíduo? Um processo biológico fundamental de individuação, que marca a vida de tôda raça de planta ou animal. A vida é uma série de individuações, e estas podem ser de várias espécies e atingir vários graus. A maioria das pessoas concordaria, sem hesitar, em que tôda criatura vive sua vida e morre. Isso, na verdade, poderia ser chamado de truismo. Mas, como alguns outros truismos, êste não corresponde à verdade. As formas de vida mais inferiores, como as amebas, normalmente (isto é, excetuando acidentes) não morrem. Quando crescem muito e se espera que ponham ovos, ou que de algum outro modo criem uma família, elas não o fazem; dividem-se e formam duas pequenas amebas, prontas para se desenvolver. O ra bem, que é feito da velha? Na verdade, não morreu. Todavia, foi-se. Sua individuação representou apenas um episódio na vida da raça, uma fase, uma forma transiente que de nôvo mudou. As amebas são indivi­ duadas no espaço — elas se movem e se alimentam como orga­

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nismos independentes, inteiros — mas, no tempo, não são indivíduos com identidade própria. Não engendram novas amebas enquanto elas próprias envelhecem; envelhecem e tor­ nam-se novamente jovens. Todos os animais superiores, porém, são individuações finais que terminam com a morte. Brotam de uma linhagem comum, mas não tornam a ser absorvidos por ela. Cada um representa um fim. Alhures em seu caminho para a morte, geralmente produz uma nova vida que o suceda, mas a sua própria história termina com a morte. Esse é também o nosso padrão. Cada indivíduo humano representa uma culminação de uma linha inestimàvelmente longa — a sua ancestralidade — e cada qual está destinado a morrer. A linhagem viva semelha uma palmeira, um tronco composto de suas próprias fôlhas passadas. Cada fôlha brota do tronco, expande-se, cresce e fenece; seu passado está incor­ porado no tronco, de onde usualmente uma nova vida brotou. Destarte, há constantemente fins, mas a raça continua viva, e cada fôlha tem essa vida inteira atrás de si. A diferença importante entre nós e os nossos primos ani­ mais está em que êles não sabem que vão morrer. Vivem a sua vida evitando a morte, até que esta os surpreende. Ignoram que ela o fará. Tampouco sabem que são parte de uma vida maior; transmitem o facho da vida sem saber. Seu objetivo, pois, é simplesmente tocar para a frente, funcionar, evitar problemas, viver de momento a momento num interminável Agora. Nosso poder de concepção simbólica deu a cada um de nós um vislumbre de si mesmo como uma individuação final da longa raça humana. Não sabemos quando ou o que será o fim, mas sabemos que haverá um. Também vislumbramos um passado e um futuro, um lapso de tempo muitíssimo maior do que a memória de qualquer criatura, e um mundo tão mais rico do que qualquer mundo sensório, que faz o nosso tempo nesse mundo parecer infinitesimal. Tal o preço do grande dom do simbolismo. Em face dessas inconfortáveis perspectivas (provàvelmente concebidas muito antes da aurora de quaisquer idéias religio­ sas), os sêres humanos desenvolveram objetivos diversos dos

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dc quaisquer outras criaturas. Visto como não podemos far­ tar-nos de existir vivendo indefinidamente, queremos viver o tnais possível em nosso breve período de duração. Se a nossa Individuação tem de ser breve, queremos que seja completa; assim é que somos inspirados a pensar, agir, sonhar nossos desejos, criar coisas, expressar nossas idéias e de tôdas as maneiras realizar por concentração o que não possamos ter em extensão de vida. Buscamos a maior individuação possível, ou o desenvolvimento da personalidade. Ao fazer isto, estabele­ cemos uma nova demanda, não já de mera continuidade de existência, mas de auto-realização. Este é um objetivo unica­ mente humano. Mas, claro está, a estrutura social não se poderia erigir apenas sôbre êsse princípio. Um grande número de individua­ listas realizando-se a si mesmos furiosamente não fariam uma sociedade ideal. Um pequeno número poderia tentá-lo; existe um lugar, bem distante daqui, chamado Áurea Colônia Mundial de Auto-realização. A maioria de nós, porém, não tem nenhum mundo áureo para colonizar. Pode-se apenas fazê-lo ao sul de Los Angeles. Mas, falando sério, não se liquida um ideal com simples­ mente assinalar que êle não pode ser realizado nas condições existentes. Talvez ainda seja um ideal válido; e se fôr mesmo importante, talvez tenhamos de alterar as condições, como nos cumprirá fazer pelo ideal de paz mundial. Se a individuação completa fôsse realmente todo o objetivo da vida humana, a nossa sociedade estaria engajada nêle com muito mais empenho do que está. Não é o áureo mundo que falta, e sim algo mais; o individualista total não é sabidamente o homem mais feliz, ainda que a boa fortuna lhe permita a farsa. O fato é que a maior individuação possível é geralmente interpretada como “ tanta quanta possível sem cercear os direi­ tos alheios” . Essa, porém, não é a verdadeira medida de quanto é possível. A medida é fornecida no próprio indivíduo, e é tão fundamental quanto seu conhecimento da morte. Ela repre­ senta a outra parte de seu entendimento da natureza — o seu conhecimento da vida, do grande fluxo ininterrupto, a vida da raça de que brota sua individuação. Uma vida individual, por rica que seja, ainda parece infi­ nitesimal; não importa quanta auto-realização nela se concentre,

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é um pequenino átomo — e não gostamos de ser pequeninos átomos, nem mesmo átomos de hidrogênio. Precisamos mais que plenitude de vida pessoal para rebater nosso terrível conhe­ cimento de tudo quanto ela implica. E temos mais; temos nossa história, nossos compromissos contraídos antes que nas­ cêssemos, nossa afinidade com o restante da Humanidade. A contraparte da individuação a partir da vida maior da raça é o nosso enraizamento em tal vida, o nosso envolvimento com tôda a raça humana, passada e presente. Cada pessoa não é apenas uma ponta livre, isolada, como a verde fôlha de palma que se desdobra, cresce numa curva de beleza e fenece em sua estação; semelha antes a palmeira tôda, inclusive a parte interna do tronco. É a culminação de tôda a sua ancestralidade, e representa todo êsse passado humano. Na sua breve individuação, é uma expressão de tôda a Humani­ dade. Isso é o que torna cada vida pessoal sagrada e impor­ tantíssima. Uma única vida arruinada representa a ruptura de uma longa linha. É a isso que me refiro quando falo do envol­ vimento do indivíduo com tôda a Humanidade. Os animais estão inconscientemente envolvidos com sua espécie. A hereditariedade lhes governa não só o crescimento, a côr e a forma, como também as ações. Êles arrastam consigo o seu passado em tudo quanto fazem. Ignoram-no, todavia. Não o precisam saber, pois nunca poderiam perdê-lo. Seu envolvimento com a vida maior da raça está implícito em sua personalidade limitada. Nosso conhecimento de que a vida é finita, e, na verdade, precária e breve, conduz-nos a uma maior individuação do que a atingida pelos animais. Nossos dotes mentais libertaram-nos amplamente dêsse comportamento embutido chamado instinto. A amplitude de nossa imaginação dá a cada um de nós um mundo separado e uma consciência separada, e ameaça romper os laços instintivos que fazem que todos os arenques nadem para o fundo de uma rêde e que todos os gansos virem a cabeça ao mesmo tempo. Contudo, não nos podemos permitir perder o senso de envolvimento com nossa espécie; pois se o fizésse­ mos, a vida pessoal reduzir-se-ia a nada. O senso de envolvimento é o nosso senso social. Temo-lo por natureza, originalmente, tal como os animais e de maneira tão inconsciente quanto êles. É o sentimento direto de necessi-

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turnios de nossa própria espécie, de interessarmo-nos pelo que O senso social é um senso instintivo de estar-se de fllgum modo unido a tôdas as outras pessoas — um sentimento que reflete o arraigamento de nossa existência num passado humano. A sociedade humana baseia-se nesse sentimento. Diz-se amiúde que ela se funda na necessidade de colaboração, ou na dominação dos fracos pelos fortes, ou em alguma outra circunstância, mas eu penso que tais teorias ocupam-se de seus modos e lhe ignoram a estrutura mais profunda; no âmago dela está o sentimento de envolvimento, ou o senso social. Se per­ dermos isso, nenhuma coerção nos manterá fiéis aos nossos deveres, pois êstes não nos parecerão compromissos, e nenhuma conquista importará, já que estará condenada a extinguir-se com o indivíduo, sem ser levada em linha de conta para a continuidade da vida. Um grande desenvolvimento individual, como o que os sêres humanos são levados a buscar pelos seus vislumbres inte­ lectuais, obviamente sempre ameaça romper os vínculos de envolvimento social direto, que conferem à vida animal a sua feliz continuidade inconsciente. Quando a tensão se torna aguda, temos agitação social, anarquia, irresponsabilidade e, em vidas privadas, a sensação de solidão e infinita pequenez, que levam certas pessoas ao niilismo ou ao cinismo, e outros ao existencialismo ou a cultos menos intelectuais. É então que os filósofos sociais encaram as sociedades ani­ mais como modelos de sociedade humana. Não há revolta nem golpe nem competição nem nenhum partido anti coisa alguma, numa colmeia. Conforme Kipling representou, há cinqüenta ou mais anos, sua utopia britânica, a qual denominou de Mãe Colmeia, aquêle Estado ideal possuía uma economia totalmente cooperativa, um exército que entrava em ação sem qualquer murmúrio, cada homem animado do mesmo impulso no mo­ mento em que algum inimigo o ameaçasse de invasão, e um po­ pulacho' de tamanha solidariedade tribal que prontamente corre­ ria de seu meio todo estrangeiro que tentasse estabelecer-se no Estado e romper suas tradições. Qualquer indivíduo que não se ajustasse ao todo tinha de ser liquidado; a perda era lamen­ tável, mas não se podia evitar, seria compensada. No entanto, a colmeia não tem realmente nenhuma apli­ cação aos assuntos humanos, pois deve sua existência harmo­ acontece.

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niosa ao fato de que seus membros, mesmo como animais, são incompletamente individuados. Nenhum dêles desempenha tô­ das as funções essenciais de uma criatura: dar de comer, obter alimento, construir ninho, acasalar-se e procriar. A rainha pre­ cisa ser alimentada e servida; ela tem únicamente funções procriativas. Nem mesmo cria as próprias filhas; estas têm babás. Os zângões nascem e são criados tão-sòmente para serem seus pretendentes, e ao término do romance são mortos, como reróis românticos que se prezam. A edificação do ninho, a criação da prole, a obtenção de alimento e os combates são realizados por fêmeas estéreis que não podem procriar, amazonas que fazem todo o trabalho doméstico. Destarte, não só há divisão do trabalho como também divisão de órgãos, imperfeições fun­ cionais e físicas. Esse envolvimento direto de cada abelha com o todo permite que a colmeia funcione com um ritmo orgâ­ nico que faz seus membros parecerem maravilhosamente socia­ lizados. Eles, porém, de modo algum o são, como também não o são as células de nossos tecidos; associam-se por não serem individuados. Isto está bem longe de constituir um ideal humano. Nós necessitamos, sobretudo, de um mundo em que possamos rea­ lizar nossas aptidões, desenvolver-nos e atuar como persona­ lidades. Isto quer dizer abandonar nossos padrões instintivos de hábito e preconceito, nossos instintos gregários. Todavia, necessitamos da segurança emocional da vida maior e contí­ nua — da consciência do nosso envolvimento com tôda a H u­ manidade. Como podemos comer êsse bocado e ainda conser­ vá-lo? O mesmo talento mental que nos faz necessitar de tanta individuação vem em socorro do nosso envolvimento social: refiro-me ao talento peculiarmente humano de reter idéias na mente por meio de símbolos. A vida humana, mesmo nas formas mais simples que lhe conhecemos, é constantemente bombardeada por símbolos sociais. Tôdas as crenças fantásticas num grande antepassado são simbólicas da vida original e per­ manente da raça de que brota tôda vida individual. O totem, o herói, a vaca sagrada, êsses são os símbolos sociais mais ele­ mentares. Com uma visão do mundo mais amadurecida, e com o desenvolvimento de idéias religiosas, a imagem simbólica do homem é absorvida na visão maior de uma ordem divina do

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mundo e de uma lei moral. Somos filhos de Adão e filhas de Eva. Se Adão e Eva fôssem simplesmente um casal humano que se supõe ter vivido no Oriente Médio, antes de as coisas por lá se tornarem tão difíceis, esta seria uma estranha maneira de falar; não nos referimos ordinariamente aós filhos dos nossos vizinhos como os filhos do Sr. Silva e as filhas da Sra. Silva. Mas Adão é Homem, e Eva é Mulher (os nomes mesmos sig­ nificam isso): e entre nós, transitórios mitozinhos, todo homem é Homem, tôda mulher é Mulher. Eis a fonte da dignidade humana, cujo senso tem de ser preservado em todos os níveis da vida social. A maioria das pessoas tem algum ritual religioso que lhes ampara o conhecimento de uma vida maior; contudo, mesmo em questões puramente seculares, expressamos constantemente a nossa fé na continuidade da existência humana. Os animais propiciam tocas ou ninhos à sua prole imediata. O homem construi para o futuro — e às vêzes só para o futuro. Seus primeiros edifícios não eram mansões, mas monumentos. E não apenas edifícios físicos, mas sobretudo as leis e as institui­ ções visam ao futuro, e são amiúde justificadas pela demons­ tração de que têm um precedente, ou de que estão de acôrdo com o passado. São conveniências de seu tempo, mas, como símbolos, o ultrapassam. São símbolos de sociedade, e da condição inalienável de cada indivíduo como membro da sociedade. Qual, pois, a medida da nossa individuação possível, sem prejuízo do senso social? O poder do simbolismo social. Podemos abandonar nossos envolvimentos reais instintivos, com a espécie apenas na medida em que os possamos substituir por envolvimentos simbólicos. Eis aí a principal função dos sím­ bolos sociais, desde um apêrto de mão até a assembléia de jui­ zes togados de uma côrte suprema. No protocolo e no ritual, na investidura de autoridade, em sanções e honras, situa-se nossa segurança contra a perda de envolvimento com a Hum a­ nidade; em tais liames está a nossa liberdade de ser indivíduos. Tem-se afirmado que uma sociedade animal, como uma colmeia, é realmente um organismo, e as abelhas isoladas seus componentes orgânicos. Penso que essa afirmação exige muitas reservas, mas não deixa de conter um grão de verdade. A col­ meia é uma estrutura orgânica, um superindivíduo, algo seme­

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lhante a um organismo. Uma cidade humana, porém, é uma organização. Ela é, acima de tudo, uma estrutura simbólica, uma realidade mental. Os cidadãos são o todo sem deixarem de ser apenas indivíduos. Nãosão uma “massa viva” como um enxame de abelhas semi-individuais. O modêlo da colmeia trou­ xe consigo o conceito de massas humanas, a serem zeladas em tempo de paz, mobilizadas em tempo de guerra, educadas para serventia ou sacrificadas pelo mais alto bem do Estado. Na espe­ ciosa analogia entre a sociedade animal e a humana, a colmeia e a cidade, funda-se, penso eu, a falácia filosófica básica de tôda teoria totalitária, mesmo a mais sincera e idealista — mesmo o pensamento político, por todos os títulos nobre, de Platão. Somos como folhas de palmeira, cada qual profundamente encastoado na árvore, partes do seu tronco, cada qual se des­ cerrando para a luz numa vida separada, final. O nosso é um mundo humano, organizado para assegurar nossa mais alta indi­ viduação. Pode haver dez mil de nós labutando numa fábrica. H á vários milhões de nós vivendo numa cidade como Nova Iorque. Mas não somos massas; somos o público.

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8 A UNIDADE FUNDAMENTAL*

Já que me deram a honra de convidar-me para falar numa conferência essencialmente sociológica, embora eu não seja cientista social mas estudante de Filosofia, presumo que quei­ ram fazer uma pausa na descoberta e planejamento de fatos, que constituem nosso propósito principal aqui, para refletir filosóficamente acêrca dos fatos e atos em discussão. Refletir filosoficamente é refletir nos significados de nossas próprias palavras, e nas implicações dos enunciados que fazemos. Quando os têrmos de um discurso sério são esmiuçados com muita precisão — o que constitui a primeira tarefa da Filo­ sofia — , muitos dêsses têrmos, que pareciam ter significados bem claros e definidos, revelam-se vagos e difíceis de definir. Têm freqüentemente uma aura emocional que torna persuasivo o discurso; o Professor Lovejoy chamou a isto seu bom ou mau "pathos m e t a f í s i c o Mas o que deveria fazer alguém suspeitar de que são vagos é, sobretudo, o fato de que os nossos pensamentos mais sérios alojados nesses têrmos não têm impli­ cações imediatas que conduzam a tôda sorte de elaborações específicas e inesperados vislumbres. As palavras-chave dos tópicos propostos para a nossa pre­ sente discussão são indivíduo, sociedade, experiência criativa, (* ) Êste trabalho foi lido na Conferência Internacional reali­ zada no Centenário do V assar College, em março de 1961.

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ciência e arte. Não podemos, òbviamente, examiná-los todos; contudo o primeiro — indivíduo — é talvez o mais importante, e acontece que é o que eu acho mais problemático como con­ ceito operante. A palavra “indivíduo” tem significado muitas coisas em muitos contextos e até mesmo num único. Em Biologia, ela geralmente significa uma criatura capaz de levar avante as funções vitais básicas independentemente de outras, conquanto talvez prefira estar acompanhada. Quase de chôfre deparamos com certas anomalias. Será a hidra um indivíduo? Ela e várias companheiras possuem um estômago e um sistema vascular comuns. O macho do verme marinho Bonnelia Viridis será um indivíduo? Ele é pequenino, parasita a fêmea e passa a vida adulta em seu útero; todavia, na infância é independente, e a menos que lhe dê de assentar-se na probóscida de uma fêmea (o que os filhotes apreciam fazer), êle próprio se tornará uma fêmea. Existem muitos outros pseudo ou semi-indivíduos. Ao falar de sêres humanos, usamos amiúde a palavra “indivíduo” num sentido laudatorio: um verdadeiro indivíduo é moralmente responsável, sério, corajoso e — por estranho que pareça — mais interessado nos outros do que em si próprio, e assim por diante. Quando, porém, falamos “do indivíduo e a so­ ciedade” referimo-nos à pessoa média que possui algumas dessas preciosas virtudes. Deslizamos de um conceito para outro, se se podem mesmo chamar conceitos êsses significados vagos — pois quem jamais definiu “ a pessoa média” ? O têrmo “indivíduo” é dificílimo de definir de uma ma­ neira conveniente, dado que a definição teria de ser ampla e todavia precisamente variável, para abranger muitas espécies de indivíduos, desde os problemáticos semi-indivíduos até o Leviatã e o Super-homem, desde as flôres no muro fendilhado até os poetas que as colhem. Mas um substantivo com adjetivos para caracterizar as variedades de coisas que êle abarca não expressa nenhum conceito operante que relacione as variedades e nos conduza a outras possíveis. É amiúde mais esclarecedor operar com têrmos que designam o processo que engendra a coisa em questão e lhes produz as várias formas sob diferentes condições. O processo que dá origem a indivíduos é imensamente complexo, mas de modo geral pode ser designado como indi-

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viduação. A despeito da complexidade de tôdas as suas ma­ nifestações, ela encarna um princípio biológico fundamental que opera num incontável número de circunstâncias diferentes, cada uma das quais torna o produto, o indivíduo, especial, se não único. Acho o conceito de individuação muito mais útil do que o de individualidade, por razões que, creio, todo cien­ tista pode desde logo adivinhar: um processo tem graus e dire­ ções. Uma criatura pode ser altamente individuada num sen­ tido e muito pouco em outro. Por exemplo, o papo-roxo está mais estreitamente ligado aos pais na infância — isto é, indi­ viduare com menor rapidez — do que os gansos; êstes alimentam-se sozinhos e movem-se por conta própria tão logo saem da casca, enquanto que os papos-roxos bebês só gradativamente adquirem essas faculdades individuais. Mas, por outro lado, os papos-roxos são mais individuados do que os gansos; em adultos, atuam separadamente em resposta ao meio ambiente, ao passo que os gansos atuam em côro. Se um ganso se levanta, todos o fazem; se um se deita, todos se deitam. Não há um só fator de individualidade presente, em diferentes quan­ tidades, em papos-roxos e gansos, respectivamente. H á dife­ rentes formas de individuação: física — como no caso de um m utante numa linha hereditária, ou, para não ir tão longe, no de uma pessoa que não se pareça com ninguém da família — vital, como o gato que passeia sozinho — ou mental. Esta última forma é incomparavelmente maior nos sêres humanos do que em quaisquer outras criaturas, mas mesmo entre nós va­ ria grandemente. Assim também tôdas as outras formas. O utra vantagem de começar pelo conceito de individuação está em que existe um processo inverso, o qual tende a manter o equilíbrio por ela perturbado: o inverso da individuação é o envolvimento. Acho que alguns problemas assaz desconcer­ tantes acêrca das relações dos indivíduos com a sociedade tor­ nam-se viáveis se tratados em têrmos de individuação e envol­ vimento e dos efeitos de alguma alteração súbita ou de grande alcance no equilíbrio dêsses dois princípios biológicos. É costume, ao falar-se acêrca de sociedade, começar com uma idéia de uma sociedade particular, usualmente uma tribo imaginária, algo esquematizada, que viva num deserto não especificado e nada faça além de caçar, combater tribos rivais, em tudo semelhantes a elas, e dançar em triunfo.

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A relação de um membro generalizado, chamado “o individuo” , com essa tribo é tida como o caso típico, do qual tôdas as rela­ ções realmente conhecidas de membros com os grupos sociais são variantes. Isso, porém, é começar em um nível já cultural, que para os propósitos científicos, tem a desvantagem de ser ficticio. Acho melhor tomar o impulso para meu salto especulativo mais atrás e num terreno um pouco mais duro. Deixem-me dizer umas poucas palavras acerca do padrão de individuação, e espe­ cialmente acerca de seu limite, o envolvimento da espécie, numa estrutura mais geral da existencia animal. Entre criaturas deveras primitivas, como as que já men­ cionei, a individuação física pode ser visivelmente incompleta. Entre algumas superiores, por exemplo as abelhas e as formi­ gas, indivíduos aparentemente completos podem não ter todo o complemento de órgãos que os tornaria viáveis no isolamento. Mesmo nos mamíferos — inclusive o homem — , uma forma de envolvimento da espécie permanece essencial: êles não podem procriar sem ação conjunta. A prole é fisicamente produzida com partes de dois pais. Na maioria das espécies, ademais, cada nascimento é seguido de um período durante o qual a nova vida depende de um dos pais, ou de ambos, para sua criação. Durante êsse tempo, seus padrões elementares de comportamento amadurecem, a vida individual desabrocha. É principalmente a isso que me refiro quando digo que cada criatura viva está arraigada na vida de uma raça de dura­ ção indefinidamente longa e que atinge certo grau de indivi­ duação, típica de sua espécie, diversificadamente favorecida ou reprimida por suas condições fortuitas. Não apenas sua estru­ tura corporal, mas também seus impulsos e a estrutura de seus atos, são padrões herdados. Os animais estão obrigados a repetir o repertório de seus antepassados por serem continuações de um processo de longa evolução. O gato está comprometido com as atividades felinas, vadias e essencialmente autoconfiantes, como o Geômis está comprometido com a vida de seu grupo e com sua intensa domesticidade. Nos animais solitários ( solitários exceto nos episódios de acasalamento e puerpério), a existência individual tem de ser mantida à custa de constante defesa, fuga, auto-afirmação,

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amiúde em competição com outros indivíduos da mesma espé­ cie. Em animais de rebanho ou de enxame, certas influências que estabelecem familiaridade reduzem esta ação de automanutenção dentro do grupo; mas os grupos geralmente assumem uma atitude hostil uns para com os outros e para com os mem­ bros de outros grupos como partes de colônias hostis. Isto é, a linhagem filética parte-se em linhagens separadas, que se prolongam a si mesmas. O princípio de individuação opera no sentido de constituir unidades continuativas maiores, fre­ qüentemente com menores subdivisões, das quais o indivíduo mortal constitui a última subunidade. Já que estamos interessados agora apenas nos indivíduos mortais humanos, voltemos à raça humana e às suas peculiari­ dades, raça que levou seus processos de individuação além dos de qualquer outra espécie. Antes do aparecimento de quais­ quer fenômenos culturais — antes da fala, da dança, dos cos­ tumes e das obrigações éticas — , nossos ascendentes perten­ ciam à raça dos primatas. A Anatomia comparativa tornou isso inquestionável. Mas êles devem ter sido marcados por alguns traços que não se encontravam nas espécies mais análogas à sua, a dos precursores de nossos chimpanzés. Um cérebro de­ veras desenvolvido era, sobretudo, muito provàvelmente uma esepecialidade dos hominídeos. Esse traço é de molde a dar uma reviravolta radical no desenvolvimento ulterior de uma espécie. Não sabemos se a nossa espécie, em seus estágios pura­ mente animais, vivia em bandos ou em famílias singulares, emparelhando-se de modo permanente, como o fazem alguns animais de floresta ou acasalando-se em promiscuidade; mas a certo tempo devem ter-se constituído hordas, porque em vidas dispersas o importantíssimo hábito humanizante provàvelmente não teria deitado raízes — refiro-me ao hábito da fala. Essa atividade surge mais do cérebro ultradesenvolvido do que de outras especializações anatômicas da criatura, conquanto o ouvido, a laringe e as partes delicadamente móveis da bôca lhe sejam necessários. A origem da fala é de todo desconhecida, mas qualquer conjetura que façamos a tal respeito baseia-se nas condições complexas que devem ter aparecido conjuntamente nessa raça particular de primatas. Não podemos aqui entrar no mérito dessas questões, a não ser para observar que a espe­

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cialização mais profunda e de maior vulto, a coisa que impul­ sionou a Humanidade em sua trilha como algo mais do que uma espécie animal, foi o desenvolvimento da expressão e da compreensão simbólicas. A linguagem dotou-nos de um meio de nos comunicarmos uns com os outros, mas sobretudo da capacidade de pensar, da consciência de muitas coisas a um só tempo que não aparecem juntas na experiência, e da capacidade de conceber coisas e condições que absolutamente não existem. Vivemos sempre nossas vidas num quadro de possibilidade e de pressuposições conceituais que os animais não podem parti­ lhar. Êles vivem num meio ambiente vàriamente sentido; o homem vive num mundo que ali está quando êle dorme, sonha ou se entrega a suas concepções fictícias. A faculdade de simbolização cria a necessidade de sím­ bolos. Nós necessitamos viver na estrutura conceituai de um mundo muito maior do que o meio ambiente que percebemos sensoriamente, ou compreendemos de momento a momento em expectativa efetiva, como o fazem os animais. Estamos par­ cialmente libertos das operações do instinto, que são acionadas por fatôres ambientais, pois atuamos num mundo de pensa­ mento. A pequenez ou a grandeza do ambiente de uma cria­ tura é a medida de sua liberdade individual, ou seja, das dire­ ções e da extensão que a sua individuação pode alcançar. De acôrdo com o nosso mundo mentalmente ampliado e estrutu­ rado, é a nossa vida mental que tem o maior campo de indivi­ duação. O indivíduo humano é em essência um ser mental. A uma criatura que necessite de expressão simbólica e com uma constante tendência a encontrar valores simbólicos, a natureza fornece símbolos de tudo que seja emocionalmente importante. A tribo naturalmente isolada e engendrada, seja grande ou pequena, que corresponde à colmeia separada ou ao bando de animais a manter sua integridade mesmo contra sua própria espécie, para o homem toma-se o símbolo de algo que de outro modo êle não poderia compreender — a Humanidade. Muitas tribos se dão um nome que significa “ homem” . Toda­ via, elas não podem conscientemente imaginar a Humanidade como tal. Essa função simbólica da tribo é inconscientemente aceita. Nossos símbolos inconscientemente aceitos são os mais poderosos; na experiência consciente, êles não figuram como símbolos, mas como coisas sagradas. Amiúde, a própria tribo

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é simbólicamente representada por um totem, por uma dinas­ tia divina, por um deus padroeiro, ou mesmo pelo nome do deus, que se reveste do caráter de santidade. A Humanidade é vasta demais para ser concebida diretamente; tem de ser simbolizada. Mas é êsse valor simbólico que faz da unidade natural uma unidade social, pois a Humanidade é mais do que uma espécie — é uma sociedade, e a sua continuidade é H is­ tória. O envolvimento, ativamente reconhecido, de cada pessoa com a unidade social a que pertence atesta e confirma-lhe o envolvimento com a sua raça, particularmente expresso pelos compromissos por ela contraídos por ter nascido dentro dessa unidade — seja ela uma tribo, um clã, uma classe ou qualquer outra estrutura hereditária. E u disse atrás, embora apenas de passagem, que a con­ cepção simbólica libertou-nos da operação do instinto. A ati­ vidade instintiva de um animal constitui o seu envolvimento vitalício, real e inelutável, na vida de sua espécie, a sua parti­ cipação na vida da raça. Se os seus instintos malograssem ou vacilassem, êle se anularia, pois não possui outro mecanismo para iniciar qualquer ação. Um papo-roxo sem o instinto que o leva a construir ninho não saberia o que fazer com os ovos; talvez fôsse até incapaz de produzi-los. Nada é mais útil para demonstrar a relação recíproca entre os princípios de indivi­ duação e de envolvimento do que o instinto dos animais. Êstes agem por instinto — um compromisso vitalício com as usanças da sua raça — para se preservarem como indivíduos. A forma de vida particular da raça é a um só tempo o limite e a garantia de sua existência separada. N o homem, os instintos animais são por demais reduzidos para serem impulsionadores ou guias seguros de ação em gru­ po ou de comportamento pessoal. O que os suprimiu e gra­ dualmente suplantou foi a atividade superior do cérebro, a ca­ pacidade especial de operar com símbolos que se manifesta na concepção, na fala e no pensamento especulativo em todos os níveis, desde o simples e prático raciocínio de causa e efeito até as mais difíceis teorias abstratas. Está, então, o homem isento da necessidade de envolvi­ mento com a sua própria espécie? É êle física, prática e emo­ cionalmente auto-suficiente? Fisicamente não o é mais do que outros mamíferos. Seu princípio está na união sexual, sua

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infância é longa e totalmente dependente. Pràticamente, êle pode agir muito bem como Robinson Crusoé — mas também o pode a maioria dos animais. Emocionalmente, êle com cer­ teza não é auto-suficiente. A solidão é um dos seus riscos. No entanto, como disse um grande biólogo, na natureza “ a origem da necessidade é a origem da satisfação da necessidade” *. A função mental de simbolização, que aumenta a amplitude do nosso mundo, de modo tal que nenhum sistema de respostas instintivas poderia satisfazer-lhe as exigências, e que portanto rompe o vínculo mais constante do indivíduo com a sua espé­ cie, torna-nos êsse vínculo sobremaneira desnecessário com for­ necer símbolos da nossa participação na vida maior da Huma­ nidade, símbolos da Humanidade e da nossa dependência dela. Podemos levar nossa individuação para além dos limites a que pode chegar a de qualquer outra criatura, sem perder o equilí­ brio entre individuação e dependência, porque temos sucedâ­ neos simbólicos para os laços naturais que abandonamos. E eu acho que se pode dizer em geral que nos podemos permitir tornarmo-nos individualizados apenas na medida em que possa­ mos substituir os vínculos naturais que usualmente nos pren­ diam à nossa raça por outros simbólicos: obrigações, reconhe­ cimento de compromissos hereditários, religiosidade, sanções, honras, e, sobretudo, os diversos ritos de comunhão sagrada. Talvez pareça estranho a esta altura — a mais de meio caminho da conferência — dizer que tudo quanto eu tenho dito até aqui fi-lo à guisa de introdução, mas assim é. Uma das dificuldades de filosofar está em que antes de atingir quaisquer implicações interessantes tenhamos de analisar tantas idéias gerais. Talvez fôsse melhor fazermos o inventário das noções que até aqui tentei esclarecer, porque são necessárias para que eu lhes possa apresentar a concepção da posição do indivíduo humano na sociedade de hoje, o qual espero, os senho­ res considerarão antes que esta conferência termine. É difícil definir um indivíduo, visto haver sêres parcial ou vagamente individuados; e mesmo entre inconfundíveis cria­ turas individuais, a sua individualidade baseia-se em traços dife­ rentes, às vêzes incomensuráveis. (1 )

E. F. W. Pflüger.

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É mais proveitoso estudar os processos de individuação, que são assaz diversos, tomam diferentes direções, avançam em diferentes velocidades, e atingem graus diferentes. A individuação é um dos princípios biológicos básicos e ubíquos, manifestado em tudo na natureza animada e que assume as formas mais diversas. Uma vantagem científica do conceito de individuação é que o seu contrário não é apenas o conceito privativo d e não-individuação, mas uma condição importante, às vêzes até mes­ mo um processo inverso: o envolvimento de uma criatura com a raça viva de que brota a sua individuação. A raça {stock) é a entidade viva original de duração inde­ finida. Nenhuma criatura individual pode originar-se ou sobre­ viver sem estar em certa medida envolvida com a raça paterna. O envolvimento pode assumir muitas formas. A procriação, e em formas superiores de vida, a união sexual que pre­ cede a procriação, constituem o mais elementar e físico enrai­ zamento de cada indivíduo no continuum da vida aqui chamado raça. A repetição de formas básicas conhecidas como herança ê outro vínculo. Pode ser forma corporal ou de comporta­ mento. Os animais são fiéis ao tipo mesmo no comportamento desenvolvido, o padrão instintivo. O homem difere de tôdas as outras criaturas na forma e na função de seu cérebro. A função cerebral que o destaca, antes de qualquer outra coisa, é o uso que faz de símbolos para formular e reter idéias. A atividade simbólica origina a linguagem, a religião, a arte, a compreensão lógica, e a capa­ cidade de levar avante uma seqüência de pensamentos abstra­ tos, ou de raciocinar. Tôda imaginação requer símbolos. Tôda concepção é simbólica. Os animais dependem de seus instintos para a autopreservação. O homem não pode fiar-se em quaisquer padrões inerentes de comportamento. O âmbito de suas ações possíveis foi tão enormemente ampliado por suas faculdades simbólicas — imaginação, cognição e especulação — que nenhum reper­ tório herdado poder-se-ia ajustar às contingências de seu mundo. Mas, os vínculos naturais com sua raça, que êle perde com o grande desenvolvimento da mente, são substituídos pela mesma capacidade mental que os rompe, a capacidade de sim-

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bolização; e podemos levar a nossa individuação tão longe quan­ to no-lo permitam os símbolos de nosso envolvimento social. Assim, pois, após tôdas estas preliminares, acercamo-nos do problema que com tantos circunlóquios me proponho dis­ cutir — o problema que interessa diretamente ao temário de nossas atuais reuniões. Que aconteceu às relações dos indi­ víduos com a sociedade, que nos torna conscientes delas como nunca antes, e que nos faz sentir vagamente, se não aguda­ mente, que alguma coisa anda errada entre elas? De nôvo, tenho de pedir-lhes que considerem um dos pa­ drões mais gerais da natureza, a evolução de formas superiores a partir de formas primitivas de atividade vital. Os organis­ mos mais inferiores não possuem órgãos especiais. Êles reagem como um todo à luz, à temperatura e mesmo ao alimento. Qualquer parte de uma ameba pode momentaneamente tor­ nar-se qualquer coisa, executar qualquer resposta do repertório da criatura. Em estágios superiores de vida, órgãos especiais reagem seletivamente às diferentes espécies de estímulos. Ainda mais acima na escala evolucionária, encontramos êsses órgãos altamente organizados em complexos de partes subordinadas. O órgão auditivo, por exemplo, principia como um mecanismo para captar vibrações maciças que atravessam a água, a terra ou o ar. Gradativamente, êle se torna especializado em ondas sonoras do ar. O ouvido interno é aprimorado, de sorte que as diferentes freqüências dessas ondas registram-se como dife­ rentes tonalidades em nossa audição, e temos uma gama de alturas distintas. A divisão do mecanismo nervoso em subunidades especiais prossegue até que a sua função se torne, com­ plicada demais para ser praticável. Com tal que as vibrações atinjam índices de centenas delas por segundo, e mesmo até cêrca de duas mil, o ouvido pode reagir de modo diferente a números ligeiramente diferentes de vibrações. Se tomarmos o som de 440 vibrações por segundo como o som lá da orques­ tra, 436 ou 444 vibrações por segundo soarão “ desafinado” . O ouvido distingue essas diferenças; mas quando a freqüência cleva-se para milhares já não se podem perceber diferenças de 4 vibrações por segundo. Verifica-se então uma alteração maior; as diferenças perceptíveis não são mais gradações de uma escala unitária, mas elevam-se de um salto a milhares.

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Isto constitui uma mudança para um nôvo princípio de ope­ ração, um redesdobramento das subunidades, uma simplifica­ ção do processo num nôvo nível de resposta. Assemelha-se a um câmbio de velocidade. Aborreci-os com êste exemplo deveras técnico porque êle ilustra tão claramente quanto possível aquilo que julgo ser um princípio universal de evolução: a diferenciação de formas até às menores subunidades funcionais, e, após isso, uma mudança de funções para subunidades grandes, inteiramente novas e imprevislvelmente diferentes, formadas das menores por via de um nôvo processo que aqui se inicia — integração. Uma reversão da individuação progressiva se verifica. Velhos pro­ cessos dão lugar a novos modos de operação apropriados às estruturas orgânicas recém-integradas. Êste princípio de mudança de funções pode ser visto não só no desenvolvimento do ouvido como também do olho, ou nos padrões motores de alguns animais inferiores que têm fases larvais, e sobretudo na evolução do cérebro tal como a reconstituímos a partir dos animais superiores — digamos, os cães — até o homem, no qual as funções sensorias, especial­ mente, foram redistribuídas, transferidas dos centros cerebrais internos para a massa cinzenta, o córtex. Um homem que seja privado da porção cortical utilizada para a audição, ficará surdo; um cão não ficaria — não de todo; êle ainda teria certa audição primitiva na medula espinhal. A transferência funcional no cão não é completa. No homem é. Agora deixem-me inferir a moral de tôdas essas histórias. O mesmo padrão encontrado na evolução orgânica, ou seja, no desenvolvimento de sêres individuais, existe no desenvolvi­ mento da espécie viva como uma vida indefinidamente longa. Podemos, outrossim, ir diretamente à espécie humana. Encon­ tramos diferenciações progressivas, dividindo-se em subunida­ des, várias raças de homens — uma divisão que nós usualmente não podemos rastrear, mas apenas reconstruir a posteriori — depois divisões ulteriores em subunidades menores efetuadas principalmente por circunstâncias que isolam ou reúnem Unhas hereditárias, formando grupos naturais — tribos, famílias — às vêzes linhas confluentes, grupos expandidos igualmente na­ turais, tais como clãs, povos e nações. As unidades constitu­ tivas de tais grupos conservam geralmente algo da sua identi-

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clade, como fizeram por longo tempo as doze tribos de Israel c as várias linhagens familiais dos vikings. Nesses funda­ mentos históricos é que se baseiam as dinastias, classes, castas e outras divisões sociais. Os grupos humanos mantêm a sua singularidade, a sua individuação, mais firmemente do que os grupos de qualquer outra espécie, porque não apenas sentem mas também conce­ bem sua identidade. Entre os animais, a luta é um episódio motivado pelo encontro casual de bandos; na vida humana, a guerra é uma instituição, reconhecida e preparada em tempo de paz. Suas várias ações são distribuídas entre subgrupos de­ signados que podem ser juntas de um: chefes com seus homens, conselhos de chefes, altos comandos. Os grupos humanos são subunidades organizadas, articuladas, da raça humana. Não é apenas na auto-afirmação — hostilidade para com rivais — mas em tôda a extensão da vida que elas possuem estrutura interna, bem como limites externos. Não são simples bandos, são sociedades. É mais fácil apreender uma sociedade do que tôda a espé­ cie humana que remonta a tempos imemoriais. Uma tribo possui uma ancestralidade lembrada, um corpo de membros vivo e um futuro prefigurado nos filhos em crescimento. Para simbolizadores como os sêres humanos, tudo que possua algu­ ma identidade permanente tende a adquirir valor simbólico e a ser usado para encarnar uma concepção maior — isto é, para significar mais do que aquilo que os olhos vêem. Os símbolos primitivos são feitos espontáneamente das formas que a natu­ reza fornece, inclusive formas de comportamento; e a subunidade social — a tribo, o clã, a igreja ou a casta com que uma pessoa mais ardentemente se identifica — constitui-lhe o sím­ bolo da vida maior que a abrange, tôda a Humanidade. Ela ignora isto; na sua consciência, o grupo é tudo que a reclama. Mas o fato é que ela pode transferir o seu devotamento explí­ cito, de um corpo para outro — de sua tribo para sua raça, ou para uma confraternidade mística ou mesmo para sua famí­ lia — e de algum modo o sentido dêle é sempre o mesmo, uma vida maior. O papel simbólico do corpo maior a que ela se entrega manifesta-se apenas na sua emoção em relação a êle, o que seria inexplicável se o corpo fôsse um arranjo puramente prático destinado a atender a interêsses comuns.

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N# longa história que existe por igual atrás de cada um tio nó», ns tendências individualizantes mais persistentes e atiViu mnnlfcstaram-se na evolução do cérebro. Em lugar do comportamento instintivo, os homens desenvolveram uma for­ ma de comportamento que deriva em grande parte da imagi­ nação, da cogitação e do julgamento, com um momento cons­ ciente de intenção antes de o corpo entrar em ação. Isto é liberdade moral — liberdade em relação aos estreitos limites das reações animais em que somente há pequenas opções e decisões imediatas, nenhuma resolução nem política nem obri­ gação. Ainda estamos levando avante nossa individuação pes­ soal. Muito poderíamos dizer sôbre isso, mas não há tempo. O que importa aqui é que atrás das longas idades em que a liberdade humana evolveu, os homens se mantiveram fiéis aos seus símbolos dessa boa e essencial sujeição que conserva a pequenina vida mortal como uma parte da vida maior da nossa espécie. Parece haver, normalmente, uma longa fase “organísmica” , ou semelhante à de um organismo, na sociedade em que ocupações, funções e ofícios especiais se articulam e se estabelecem por processos mais ou menos naturais: “ anciães” que governam a comunidade, ou famílias que conquistam do­ mínio e o transmitem em herança, homens que se atribuem podêres místicos a fundarem um sacerdócio e a tomar alguma providência para sua continuidade, a qual se torna automática. Essas formas evoluem de modo algo semelhante a tecidos que, num organismo em desenvolvimento, se tornam especializados devido à sua posição, exposição externa ou proximidade a fontes de nutrição geral, pelo que formam órgãos especiais através do seu envolvimento particular com o todo. Na sociedade humana, os homens são naturalmente dotados de capacidade de luta desde a juventude até a meia idade, e nêles os impulsos agres? sivos, a competição, o orgulho e a exuberância se combinam para formar uma casta de guerreiros sem nenhum propósito consciente. Tôda cultura superior parece ter passado por tal evolução. Seu clímax é uma monarquia dinástica absoluta correlacionada com um forte clero, que culmina às vêzes na própria perso­ nagem real. Essa estrutura pode manter-se por longo tempo, porque ela ajuda a simbolizar a unidade orgânica da vida hu­ mana em larga escala, e favorece o longo e lento processo da 126

individuação mental para o qual necessitamos do símbolo con­ fortador de nossa segurança num todo vivo maior. A expressão emocional dessa segurança — devoção e lealdade — tende a ser mais completa e ardente na fase monárquica, talvez teocrá­ tica, da vida nacional. Após isso, a ação do princípio de individuação no todo maior, a sociedade, começa a sobrepujar o ritmo da capacidade humana de produzir símbolos; o rompimento da ordem real e eclesiástica pela autonomia cada vez maior de suas partes ine­ rentes produz conselhos legislativos e militares, corpos reli­ giosos separados, grupos de poder econômico não aliados a nenhuma alta ou venerada autoridade. O efeito emocional sôbre as pessoas como indivíduos cifra-se no fato de que as instituições perdem seu caráter sagrado. Para um grande número de pessoas hoje em dia, alguma pequena igreja sectá­ ria, de sua própria escolha, e a família baseada no santo matri­ mônio são as únicas coisas ainda consideradas sagradas. Mas mesmo elas são precárias. O fato é que a adesão a uma fé não constitui mais um imperativo, e ainda que se suponha deva o casamento durar a vida inteira, o divórcio é geralmente tolerado. H á somente uma ou duas gerações, uma pessoa divorciada era considerada uma desgraça para a família, e filhos de lares desmoronados levavam consigo um estigma, ainda que não tanto quanto os pobres párias nascidos ilegítimos. Hoje êles são humanamente aceitos até mesmo pela chamada “boa sociedade” . Em verdade — tal é o importante desfecho de tudo isso — , nas regiões mais avançadas de cultura “ ocidental” , que deriva da Europa, nós não mais punimos os pecados dos pais nos filhos. Não concluam, por favor, que eu ache que o devêssemos fazer ainda; estou certa de que não devemos. O que não significa que as pessoas jamais o deveriam ter feito, ou que nada se perdesse com a mudança. Penso que o que aconteceu à sociedade, e ainda está acon­ tecendo, é o fato de que a individuação de suas partes quase alcançou o limite. A sociedade está-se reduzindo às suas uni­ dades fundamentais — aos simples indivíduos, às pessoas. Muitas coisas poderiam ser aduzidas como prova dêsse impor­ tante fato se tivéssemos tempo. Mas o fato é que em nossa cultura ocidental, que é, infelizmente, a única que conheço, cada indivíduo encontra-se realmente só, sem amparo de status

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nem mesmo das raízes familiais. O reconhecimento dêsse isolamento pessoal expressa-se no princípio básico do governo democrático — “cada qual vale por um e somente por um ” . Nossos magistrados são encarregados de distribuir justiça “ sem cuidar de pessoas” (significando personae, personagens). É o “ cada um por si” do nosso mundo. Penso que estamos testemunhando o princípio de uma vasta mudança na sociedade, nada menos que uma transfe­ rência biológica de funções para novas estruturas. A fase da sociedade semelhante a um organismo, em que formas cada vez mais subordinadas se tornam articuladas, está chegando ao fim; as novas estruturas que já estão se formando — e, na verdade, o têm estado há muito — são produtos da integração, são novos conjuntos constituídos de outros bem menores, até mesmo de unidades fundamentais. Na sociedade, essas formas integrais são instituições. No passado, as instituições se basea­ vam nas articulações sociais naturais, e eram essencialmente reconhecidas e sancionadas como produtos naturais. No futuro, elas terão de surgir cada vez mais dos processos mentais supe­ riores peculiares ao homem — planejamento e domínio consciente. Enquanto isso, somos engolfados pela turbulência da mudança. Com a rápida dissolução das unidades sociais natu­ rais, os símbolos da Humanidade, que herdamos, estão fazendo falta, e um número incontável de pessoas às quais isso está acontecendo sentem, mas não podem entender, a sua perda dêsse senso de envolvimento, que faz o mundo parecer uma corrida de ratos desprovida de sentido na qual estão reduzidas a nada, solitárias na vida e na morte. Elas se voltam deses­ peradamente para as religiões que abandonaram ou para cultos exóticos que prometam um nôvo modo de salvação, condenam seu mundo real como falso, rejeitam o que parece precipitar a fragmentação da sociedade — a Ciência, a tecnologia e o cultivo da razão que originou êsses avanços — e aspiram a retornar à auto-realização dos animais, inconsciente e orientada pelo instinto, ou pelo menos às lealdades tribais que atribuem a selvagens desconhecidos. Enquanto isso, ignoram que a mais dramática rejeição do envolvimento social cifra-se no seu repú­ dio das onerosas coisas com que a vida civilizada os castiga, pois o vínculo mais forte que nos liga à nossa espécie é a

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aceitação de compromissos que não assumimos, compromissos que contraímos pelas circunstâncias do nosso nascimento ou pelos decretos de nossos ascendentes. Não importa o quanto desejemos pôr fim ao progresso da individuação, nossos pró­ prios atos o aceleram. A maioria das pessoas de hoje em dia, e especialmente as reflexivas e sérias, sentem que não estão prêsas a nenhum compromisso que elas próprias não tenham assumido. A versão mais espetaculosa desta doutrina é a de que os novos governos que desbancam os velhos governos, tradicionais e obsoletos, podem repudiar obrigações e acordos celebrados por seus predecessores. A perda de segurança emocional com a destruição dos nossos símbolos naturais — acelerada pelas duas guerras que erradicaram milhões de pessoas — é patente. E qualquer reintegração da vida em novas bases — tão novas que ninguém pode sequer arriscar uma conjetura sôbre o seu plano — está ainda na sua infância; e muito tempo decorrerá antes que pro­ picie formas que possam assumir significação social profunda e tornar-se nosso símbolo da Humanidade e de seu lugar na natureza. Não tenho nenhuma solução a propor, mas tão-sòmente ofereci estas reflexões na esperança de explicar alguns dos vastos tumultos que estão ocorrendo. Mas uma sugestão (para outros tempos, não para já) me ocorre. A cultura oci­ dental, essencialmente européia, é relativamente jovem. Exis­ tem culturas mais velhas e mais amadurecidas no mundo, e existem ao menos algumas pessoas aqui que as conhecem por herança e estudo. Não me refiro às famosas práticas de con­ templação mística destinadas a salvaguardar-nos contra a indi­ viduação excessiva, e sim a um assunto bem mais terreno — ao fato de que muitas dessas sociedades mais antigas desenvol­ veram atitudes em relação ao sexo, ao divórcio e à obrigação social que talvez sejam algo de que agora nos estamos aproxi­ mando. Talvez a sua própria história tenha atravessado a fase em que a nossa está apenas ingressando; e é possível que, inten­ cionalmente ou mesmo inconscientemente, elas nos possam mostrar algumas maneiras comprovadas de manter nossas vidas individuais ancoradas na da Humanidade, através dêste turbilhonante momento em que a maré evolucionária está mudando.

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9 O CRESCENTE CENTRO DE CONHECIMENTO*

O conhecimento cresce com a exploração, acrescentando-se novos fatos, corrigindo velhas crenças. Cresce como uma árvore, em cada ponta, de modo que a copa parece alargar uma fimbria sempre crescente. Um ser humano não é uma árvore; nosso crescimento é mais complicado. Temos mais do que funções vegetativas, e portanto mais do que uma forma vegetativa de crescimento. Mas a analogia entre o crescimento físico e o crescimento cul­ tural, vida orgânica e vida mental, realmente vai bem mais além do que a pitoresca imagem da “crescente margem de conhecimento” . A multiplicação constante de fatos, amiúde ocasionada pela fragmentação de vultosas observações em dados graduados, mais exatos, que por seu turno levam à informação geral, porém precisa, constitui o espetacular processo de nossa expansão científica. Ocorre principalmente nos pontos de mais recente interêsse, e êsse crescimento do nosso cabedal de conhecimento semelha o crescimento físico de tecido nôvo por proliferação das células que o compõem. Mas nos organismos superiores, como os sêres humanos, todo o processo de desenvolvimento — a vida tôda — é con­ trolado por um órgão complexo cujos componentes se difun(* ) Extraído de Frontiers of Knowledge, org. por Lynn W hite, Nova Iorque: H arp er’s, 1956.

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dem pela maior parte do corpo, Tal órgão é conhecido como sistema nervoso central. Compreende o cérebro, a medula espi­ nhal e todos os nervos; os órgãos especiais da visão e da audi­ ção, conquanto não inteiramente constituídos de tecido nervoso, são extensões do cérebro. O sistema nervoso central não se desenvolve por multi­ plicação de células. Da infância à velhice, temos essencial­ mente as mesmas células nervosas com que nascemos. (Existem alguns nervos, por exemplo no rosto, cujo tecido se renova, mas em geral células nervosas destruídas jamais podem ser substituídas.) O sistema nervoso não possui nenhuma “margem de crescimento” . Contudo, o sistema nervoso de um homem é òbviamente maior do que o de um bebê. Cresceu, de algum modo. O cérebro é maior, embora proporcionalmente não o seja tanto, e a medula espinhal é mais longa. Os nervos que vão até os dedos do homem têm de ir além do que costumavam. No órgão controlador central, há uma espécie diferente de cresci­ mento — não por acréscimo de novas células nas extremidades do nervo ou na superfície do cérebro, mas sim pelo cresci­ mento das próprias células originais. Elas se estiram. Estiram-se para acompanhar o crescimento da sociedade das células que se dividem e multiplicam, e que ampliam os limites do corpo assim como uma população em crescimento amplia os limites de uma cidade, subúrbio por subúrbio. O sistema ner­ voso é um centro crescente, que mantém tôdas as outras partes em desenvolvimento numa união mútua, como um organismo, vivendo uma vida una. Na vida cultural do nosso tempo — tempo verdadeira­ mente surpreendente na história do homem — , os mais pas­ mosos eventos surgem do súbito aumento do conhecimento científico. Uma descoberta leva a outra. Todo fato nôvo sugere outros a serem estabelecidos. Quando séries inteiras de fatos demonstráveis se harmonizam, exemplificam leis naturais, que são simplesmente os fatos mais gerais que conhecemos acêrca do universo. Então a “ margem em crescimento” deixa de ser uma fimbria de fatos mais ou menos fortuitos e solidi­ fica-se numa nova parte do corpo do conhecimento.

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No desenvolvimento da cultura, porém, assim como nc desenvolvimento de um organismo superior, existe algo que não cresce pela adição de elementos, mas sim por modificação e estiramento: tal se dá com a própria mentalidade, que abrange muito mais do que conhecimento. O conhecimento pura­ mente factual, ainda que extenso, não constituiria uma vida mental. Nem uma mente isolada, nem a mente coletiva de uma sociedade é, única ou sequer básicamente, “ uma tabuinha em branco em que a experiência escreve” o seu registro de fatos batidos. O conhecimento dos fatos constitui um requisito para a atividade de um cérebro vivo com todos os seus envolvi­ mentos. As maiores e mais antigas funções mentais são o sentimento e a imaginação. Não que êsses fatores diversos estejam realmente separados, ou sejam mesmo separáveis; serão quando muito discerníveis numa mente normal. Se se esboroarem, ou se um interferir com o desenvolvimento natu­ ral do outro, haverá perturbação mental, que pode ir de um breve momento de desorientação até o mais grave e perma­ nente desequilíbrio. A imaginação é provàvelmente a maior fôrça a atuar sôbre os nossos sentimentos — maior e mais constante do que influên­ cias exteriores, como ruídos e visões amedrontadores (relâm­ pagos e trovões, um caminhão em disparada, um tigre furioso), ou prazer sensual direto, inclusive mesmo os intensos prazeres da excitação sexual. O que esteja realmente acontecendo é, para um ser humano, apenas uma pequena parte da realidade; a maior parte é o que êle imagina em conexão com as vistas e sons do momento. A imaginação constitui o seu mundo. O que não quer dizer que seu mundo seja uma fantasia, sua vida um sonho, nem qualquer outra coisa assim, poética e pseudofilosófica. Isso significa que o seu “ m undo” é maior do que os estímulos que o cercam; e a medida dêste, o alcance de sua imaginação coerente e equilibrada. O ambiente de um animal consiste das coisas que lhe atuam sôbre os sentidos. Coisas ausentes, que êle deseje ou tema, provàvelmente não têm substitutos em sua consciência, como as imagens de tais coisas na nossa, mas aparecem, quando por fim o fazem, como satisfações de neces­ sidades imperiosas, ou como crises em seu espreitar e reagir

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mais ou menos constante. Êle não vive num mundo de espaço e tempo ininterruptos, repleto de acontecimentos mesmo quando êle não esteja presente ou quando não esteja interessado; o “m undo” animal tem uma existência fragmentária, intermi­ tente, que surge e se aniquila juntamente com suas atividades. O mundo de um ser humano é coerente, seus eventos ajus­ tam-se uns aos outros; por mais remotas que sejam as conexões, elas sempre existem, numa grande moldura de espaço e tempo. (O conceito moderno de “ espaço-tempo” constitui um requinte de pensamento que consideraremos mais adiante.) O meio ambiente de um animal não é realmente um “ mundo”, muito menos “ o mundo” ; seu ambiente é uma realidade momentânea, parte de sua própria atividade, influenciada por suas experiên­ cias prévias, mas não de modo a trazê-las de volta como um “passado” , e orientada para experiências futuras, mas não para um “futuro” . Passado e futuro, eventos e estados, talvez mesmo coisas em suas relações umas com as outras, não tomam parte na sua percepção. O mundo é algo humano. O que ocasiona a diferença é a tendência peculiar do cérebro humano a usar as impressões sensorias que recebe não apenas como estímulos ou obstáculos à ação física, mas como material para a sua função especializada, a imaginação. Nós não apenas vemos coisas, mas ao mesmo tempo imaginamos que têm tôda sorte de propriedades que não se podem ver. Os animais respondem aos estímulos exteriores, ou de maneira manifesta ou de maneira nenhuma; os homens, porém, em grande parte respondem de um modo cerebral, invisível, pro­ duzindo imagens, noções, ficções de tôda espécie, que servem como símbolos de idéias. O resultado é que vivemos numa teia de idéias, uma trama de nossa própria fabricação com que agarramos as contribuições da realidade exterior, vistas, sons, odôres e assim por diante. As percepções reais vêm e vão, e não podemos controlá-las (a não ser na medida em que possa­ mos abrir ou fechar os olhos, tocar ou não tocar em coisas e fazer que algumas mudanças ocorram), mas os símbolos podem ser encontrados ou produzidos à vontade, e podem ser mani­ pulados com grande liberdade; por meio dêles, suplementamos nossas sensações fragmentárias e erigimos em tôrno de cada núcleo perceptivo uma estrutura de idéias. Êste o sentido de se dizer que temos idéias acêrca do que realmente vemos.

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A representação simbólica da experiência é um tema vasto em que absolutamente não podemos entrar aqui. Muito se tem escrito e ainda se escreve sôbre isso, pois a importância da simbolização é uma descoberta recente. Bastará então, tocar os pontos altos dêsse importantíssimo processo. Seu produto mais espetacular é o grande simbolismo sistemático conhecido como linguagem, o qual engendra todo o desenvolvimento mental que distingue os homens de seus irmãos zoológicos. A linha divisória entre os animais e os homens é, penso eu, pre­ cisamente a linguagem. (Os animais provàvelmente comuni­ cam tão-sòmente intensões e excitações emocionais diretas, não idéias acerca de coisas.) A linguagem serve a propósitos muito maiores do que mesmo o sistema mais apurado de sinais por meio dos quais pudéssemos dar a conhecer nossos desejos e controlar o comportamento uns dos outros. Sua primeira e mais assombrosa função é a de moldar o mundo humano. As percepções sensórias são apenas parte do mundo. São elementos indispensáveis, mas não lhe constituem de modo algum tôda a substância. O mundo, para os sêres humanos, é feito de fatos-, e os fatos tanto são um produto da concepção como da percepção. Os fatos são “ acêrca” de coisas, como o nosso conhecimento imediato é “ acêrca” de nossas experiências sensórias. Nosso mundo não é uma coleção fortuita de coisas, mas um grande nexo de fatos físicos, fatos históricos, fatos legais e políticos, e especialmente, para cada pessoa, uma falan­ ge de fatos práticos que constantemente se aproxima dela e com a qual ela tem de se haver a todo momento. O que chamamos “ mundo” é uma estrutura conceituai de espaço e tempo em que os eventos acontecem e se desenvolvem em situações das quais surgem novos eventos menos ou mais espe­ taculares; êste desenvolvimento é a ordem de causa e efeito como a concebemos, e o que se desenvolve é a realidade, a teia dos fatos. A realidade contém todos os veredictos dos nossos senti­ dos, mas a sua estrutura não é algo visível, tangível ou percep­ tível de qualquer forma sensoria. Sua estrutura é algo inte­ lectual, perceptível apenas através de símbolos. Dizê-la intelec­ tual não é dizê-la reservada a uma intelligentsia ou mesmo a raças civilizadas; uma intelectualidade comum é própria a todos os sêres humanos que não sejam mentalmente retardados, e

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imprime-se em sua experiência ao nível elementar de com­ preender palavras. Diz-se às vêzes que as palavras substituem coisas e atos, e que por conseguinte um cão para o qual uma palavra signi­ fique determinado objeto, pessoa ou ato a ser realizado, com­ preende a linguagem. Isto, porém, é um argumento descuidado e uma falsa conclusão. As palavras que um cão “compreende” funcionam como sinais, como sinetas de jantar e buzinas de automóvel. Elas lhe falam das coisas que designam, não lhe falam porém a respeito delas. Podem fazê-lo esperar o alimento mas não lhe podem informar que êste virá mais tarde, ou que o jantar de ontem foi bom. O uso humano da linguagem, em compensação, serve essencialmente para expressar idéias acêrca das coisas mencionadas — chamar atenção para suas relações, partes, propriedades, aspectos e funções, e para as intrincadas relações dêsses constituintes e das funções entre si. Conhecemos as relações sobretudo através de palavras, nossos símbolos mais poderosos e mais à mão. Embora impli­ citamente levemos em conta as relações na ação, explicitamente elas não podem ser isoladas e apontadas, à semelhança de coisas físicas. Coloque-se um grande vaso de flôres perto de um menor, e experimente-se apontar a relação de “maior do que” : uma pessoa olhando para onde fôr apontado — de um vaso para outro — pode ver “ diferente” , “ forma igual”, “lado a lado”, “côr de tijolo” , ou mesmo “ dois, um par” tão prontamente quanto “ maior do que” . As relações são abstra­ tas, e entidades abstratas se encarnam somente em símbolos. A profunda diferença entre sêres dotados de fala e os dela desprovidos deve-se ao poder das palavras de manifestar rela­ ções, as quais não podem ser vistas nem tocadas, e todavia são os vínculos entre as nossas sensações que criam o “fatos” . Nosso mundo de fatos é perpassado a todo instante por con­ ceitos simbolicamente compreendidos; a “natureza” é um assun­ to muito mais lingüístico do que geralmente as pessoas supõem — produzido não apenas para os sentidos mas para o entendi­ mento e sujeito a desmoronar no caos se falhar a ideação. No centro da experiência humana, portanto, existe sempre a atividade de imaginar a realidade, concebendo-lhe a estrutura através de palavras, imagens ou outros símbolos, e assimilan­

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do-lhe percepções reais à medida que surgem — isto é, inter­ pretando-as à luz das idéias gerais, usualmente tácitas. Esse processo de interpretação é tão natural e constante que sua maior parte decorre de modo inconsciente. Em vez de ter sensações e julgá-las como “ significantes” da existência de coisas ou da ocorrência de eventos, nós em verdade percebemos coisas e acontecimentos, e tornamo-nos diretamente conscientes de “ fatos”. Tôda a estrutura intelectual de espaço e tempo, coisas e propriedades, mudança, causa e efeito e assim por diante, está implícita no próprio modo como usamos nossos sentidos. A percepção de relações, de conexões e especial­ mente de significado ocorre através de quaisquer e de tôdas as vias do sentido; esta espécie de percepção é a intuição lógica contida na experiência humana como tal, o fator que a tom a humana, diferente da resposta animal. Isto se reflete nas maneiras como as pessoas usam palavras (a “ sintaxe” de sua língua particular), das quais há variedades, mas tôdas as varie­ dades de sintaxe servem para formular proposições, e dão ori­ gem ao discurso e ao raciocínio discursivo. Tôda a nossa expe­ riência — prática, ética ou intelectual — erige-se sôbre uma base lógica, intuitivamente construída, conhecida como senso comum. Assim como a consciência humana difere da dos animais, assim também, é claro, diferem o sentir e a emoção humanos. Como o nosso meio ambiente é um mundo, temos sentimentos relativamente ao mundo — não excitações transitórias mas uma atitude emocional permanente em relação a um “universo” permanente. Esta atitude constitui, em nós, o mais profundo nível de sentimento, em virtude da qual temos uma vida emo­ cional contínua; e, a exemplo de todos os sentimentos huma­ nos, ela está estreitamente relacionada com a imaginação. Ali­ menta-se, em cada pessoa, de seus vislumbres do mundo, da vida humana e de si própria dentro dessa moldura: vale dizer, de sua orientação dentro da realidade. Suas experiências po­ dem ser muitas ou poucas; desde que sejam suscetíveis a inter­ pretação em têrmos de senso comum, seu conhecimento de realidade poderá crescer apenas pela adição de fatos, sem alte­ rar sua imagem do mundo nem perturbar seu senso de orien­ tação, que é sempre a tônica de uma vida de sentimento coerente.

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O senso comum é o üso 4nn3TTsrtente~ cie' categorias e con­ ceitos que se ajustam à experiência comum. Desenvolveu-se através dos tempos, desde as mais primitivas formas de per­ cepção e reação característicamente humanas — isto é, as ma­ neiras mais primitivas de pensar — até aquilo que hoje em dia reconhecemos como pensamento sensato e lógico. O seu desenvolvimento gradual reflete-se na evolução das línguas, um fascinante campo de estudo que só recentemente se abriu e que promete ser rico em novos materiais históricos e psicoló­ gicos. Os filósofos também têm colhido o seu quinhão de idéias das novas pesquisas dos lingüistas, que coincidem com a grande obra de Frege, Peirce e Russel sôbre o simbolismo lite­ ral, e a de Cassirer sôbre formas simbólicas como tais, para dar à filosofia atual a sua viragem semântica. O uso de palavras sempre constitui um índice da capa­ cidade intelectual das pessoas: a vaguidade ou precisão das dis­ tinções que estabelecem entre uma e outra coisa pode ser vista na sua escolha de palavras distintas para essas coisas, ou na sua tendência a deixar que uma palavra sirva a muitos propó­ sitos e mude de significado sem levar em conta diferenças per­ tinentes. Os centros de atenção do seu discurso são assina­ lados pelas “ palavras-chave” — substantivos nas nossas línguas indo-européias, unidos por verbos que simbolizam nossa cons­ ciência de relações, e aprimorados por modificadores para expressar distinções maiores. Existem outras línguas em que as ações são designadas pelas “ palavras-chave” e as coisas são gramaticalmente expressas como condições das ações, isto é, por modificadores. Sociedades cujas línguas difiram radical­ mente na estrutura lógica possuem de fato um legado dife­ rente de senso comum, e sua compreensão mútua apresenta um problema mais profundo do que elas mesmas se dão conta quando estabelecem um vocabulário tôsco para servir-lhes ao intercâmbio. As palavras dêsse vocabulário têm um núcleo de significação prática para ambas, mas as conotações que uma palavra adquire no decorrer de sua existência provàvelmente tendem a se desenvolver em separado enquanto cada grupo continuar a viver com a sua própria língua. A capacidade da linguagem de acompanhar a expansão da experiência humana através do longo curso da História reside na tendência das palavras a significar mais do que desig-

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nam ou diretamente simbolizam; pois elas tendem a simbo­ lizar indiretamente tudo aquilo de que a sua própria significa­ ção direta possa ser símbolo. A palavra “luz” designa um fenômeno físico que percebemos com os olhos, mas a mesma luz constitui um símbolo, tão velho quanto o mundo, de conhe­ cimento, inteligência, razão, intuição lógica (John Locke deno­ minou essa intuição de “luz natural” ), e também de uma vasta classe de sentimentos — alegria, alívio, amor e exaltação religiosa. A palavra “luz” adquire todos os significados que a própria luz de hábito simboliza, na qualidade de seus signifi­ cados metafóricos, o que se dá tão natural e originalmente que, ao estudar a história das palavras, é impossível decidir qual o significado mais antigo, se o físico, o emocional ou algum outro. Max Müller, grande filólogo do século X IX , chamou ao significado físico “metáfora de raiz” , dando por estabe­ lecido que as palavras significam originariamente objetos e ações físicos, tal como de imediato significam para o nosso senso comum. Todavia, a verdade é provàvelmente que no sentido prístino de uma palavra tôdas essas concepções, que hoje consideramos como seus diversos significados, não fôssem diversos, e sim que se tivessem separado aos poucos de uma matriz de significação vaga e ampla, a um tempo física, e emo­ cional, mais sentida do que compreendida. A luz do dia era quiçá experimentada como alegria e a noite como aflição, antes que algum pensador primitivo compreendesse que luz é uma coisa e alegria outra, escuridão uma coisa e aflição outra, e que a luz lhe dava alegria e a escuridão lhe causava aflição. A metáfora de raiz é a imagem transmitida pela palavra, e essa imagem talvez signifique um sentimento, um ato, um objeto, ou mesmo uma personalidade ou lugar. Tôda sorte de coisas pode aparecer nessa imagem, isto é, pode ser imagi­ nada sob essa forma. A essência da mentalidade humana é uso de imagens, não como simples traços mnemônicos, mas como símbolos que podem ser elaborados livremente, compos­ tos e tratados como quadros mentais das mais diversas expe­ riências, vale dizer: a capacidade de ver uma coisa em outra. Os processos da natureza, em especial, podem ser vistos uns em outros; e aquêles difíceis de observar são geralmente entendidos só através de um modêlo. A morte é vista como um sono eterno, a juventude e a velhice como primavera e

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outono, ou inverno, a vida como uma chama que consome a vela que a fornece. A própria estrutura da experiência só é pensável por meio de modelos: o tempo é de imediato imagi­ nado como um rio a correr, e é, de fato, tão difícil de conceber sem essa imagem metafórica que muita gente crê que o tempo literalmente flui. Pensa-se usualmente no espaço como um enorme vaso contendo tôdas as coisas, mas que também pode­ ria estar vazio; o fato de que um vaso seja necessàriamente algo no espaço, dividindo um interior de um exterior, não perturba a imaginação ingênua. O espaço é um receptáculo, e nêle está tôda matéria. Porque vemos uma coisa em outra — a vida na chama da vela, a morte no sono, o tempo no rio a correr, o espaço numa taça ou no céu que vemos como uma taça invertida — a vasta multiplicidade de experiências compõe-nos um mundo. Nossa visão simbólica é o que confere a tal mundo a sua uni­ dade fundamental, muito mais profunda do que a unidade de seu encadeamento causai — a gnomônica “ semelhança na dife­ rença” que unifica uma série de tábuas, mais que a simples concatenação de elos que unifica uma cadeia. A maioria das coisas que encontramos não possui conexões causais óbvias: o ronco de um avião que passa, a voz que anuncia um dentifri­ cio pelo rádio, o termômetro a zero, o cão coçando-se sob a mesa. Um ardgo de fé científica (e o principal) é o de que todos os eventos estão causalmente conectados, por mais com­ plexa lhe seja a teia de suas conexões. Nós realmente vemos conexões causais apenas numas poucas cadeias de eventos. Algo pica o cão, e então êle se coça; o fato de êle se coçar nos preocupa, e então o cutucamos; como o cutucamos, êle pára por um momento e em seguida passa a usar a outra perna. Essa é uma cadeia causal; mas até onde interessa à nossa observação direta, a maioria das coisas “ apenas acon­ tecem” no momento em que acontecem, e poderia ter sido de outro modo. Acreditamos que elas têm causas, mas estas têm de ser aprendidas ou ser admitidas por fé. O que vemos, porém, é que as coisas mais diversas repe­ tem algumas formas fundamentais, em virtude das quais po­ demos usar eventos familiares como modelos para entender eventos novos e objetos tangíveis como símbolos de realidades intangíveis. Isto auxilia uma pessoa a haver-se de duas ma­

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neiras com o seu mundo: em primeiro lugar, tornando conce­ bíveis grandes e remotos aspectos ou partes déle, e em segundo lugar, dando um valor simbólico a seus conteúdos simples, tri­ viais. Quando atos ordinários como comer e dormir, e coisas comuns como fogo, árvores e água, se tornam símbolos do orbe da natureza, da paixão humana, ou do que fôr, êles dei­ xam de ser itens tolos e separados de experiência, e assumem importância como fatores integrais do cenário humano. Esta importância das coisas do quotidiano, a reflexão de uma ordem cósmica na ordem da vida comum, é o que erige a imagem do mundo de uma pessoa, o quadro em que suas crenças, dúvidas e juízos fazem sentido. A posse de tal quadro constitui orientação mental. Ela é usualmente ignorada ou só vagamente reconhecida, mas forma o primeiro requisito para uma “vida interior” concertada; pois o senso de orientação geral no mundo é a base da nossa segurança emocional. Como a pressão do assoalho contra nossos pés, não estamos normal­ mente conscientes dêle; mas se êle nos faltar, dificilmente tere­ mos consciência de qualquer outra coisa; há desorientação com­ pleta e tudo se torna confusão. A unidade da natureza não é tudo o que devemos à nossa capacidade de pensamento simbólico, que espontáneamente construi modelos e metáforas conceituais a partir de objetos sensorios. Nossas idéias de qualidades morais, bem e mal, bênção e maldição, parecem ter sido alcançadas com o auxílio da imagética concreta, amiúde de uma espécie assaz terrena. A expressão de valores é tão sistemáticamente metafórica que palavras como “ alto” e “baixo”, “reto” e “ torto” , têm quase mais de imediato uma conotação moral do que geométrica; é às vêzes difícil dizer qual o seu sentido primário e qual o derivativo. Sem os conceitos que transmitem não teríamos nenhum mundo moral. O mesmo se dá com a nossa concepção de funções e qualidades intelectuais: “brilhante” e “ apagado”, “ vivido” , “ obscuro”, “ duro” (ou mesmo, em inglês, palavras como wit, “ agudeza, espírito”, cuja metáfora de raiz é white, “branco” ) são por certo têrmos físicos; sem êles, porém, não poderíamos ter desenvolvido o senso característicamente huma­ no de existência intelectual e moral. As imagens metafóricas penetram fundo em nossas ma­ neiras de pensar orientadas pelo senso comum. Ninguém põe

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em dúvida o bom senso de se dizer que uma árvore estende os ramos a fim de captar o mais que possa de luz; o modêlo de uma pessoa erguendo voluntàriamente os braços para rece­ ber algo de benéfico vindo de cima é esquecido quando fala­ mos da árvore como se ela estendesse os ramos para um seu propósito. Na verdade, essa imagem orientadora é tão convin­ cente que muitas pessoas que não crêem tenha a árvore discer­ nimento, intenções e movimentos voluntários não podem des­ fazer-se de todo da metáfora de ação proposital; se a árvore não age realmente por escolha, algum agente inteligente deve estar fazendo com que ela cresça de um modo e não de outro, de molde a poder captar a escassa luz da floresta. Com freqüência opomos aquilo que chamamos de “metá­ foras poéticas” ao “ severo senso comum” . Todavia, o senso comum se construi sôbre metáforas poéticas. No entanto, senso comum não é poesia. A capacidade de ver uma coisa em outra, que origina nossas metáforas e nossos modelos conceituais (dos quais os mais velhos são os mitos da natureza e da vida hum ana), leva também a um processo de pensar característicamente humano, conhecido como abstra­ ção. Através da intuição lógica, nós não apenas vemos o que é “ o mesmo” em duas coisas assaz diferentes, como por exem­ plo uma vela acesa consumida pela chama e um corpo vivo consumido pela vida, mas também aquilo que as torna dife­ rentes. Tão logo as diferenças sejam reconhecidas com clareza, o elemento comum sobressai, e pode ser concebido isolada­ mente como aquêle que as duas coisas diferentes exibem. Dêsse modo, o conceito, isto é: “matéria a ser consumida pela pró­ pria atividade”, é abstraído; e uma mente que possa fazer tal abstração compreende que a vida não é literalmente uma vela acesa, mas é racionalmente simbolizada assim. A linguagem registra esta abstração lógica no crescimento do vocabulário. Os conceitos com os quais operamos em nossa vida diária — conceitos de coisas e propriedades, mente e matéria, necessidade, valor monetário, valor moral, bem e mal — podem ser todos rastreados, através da história das palavras que os expressam, até suas origens, em “metáforas de raiz” mais vagas, porém via de regra mais ricas. O sentido

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abstrato de nossas palavras hoje derivou-se por um processo de distinção e separação que resulta no estabelecimento de pelo menos um sentido literal, e freqüentemente de vários usos metafóricos reconhecidos. Assim, podemos encontrar, por exemplo: “ Brilhante: que fornece ou reflete a luz; figura­ damente, de inteligência vivaz” . Aqui, porém, o emprêgo figurado é tão comum que a maioria dos dicionários (por exemplo, em inglês, o W ebster ou o Funk & Wagnall) o re­ gistram hoje como um sentido literal secundário. No discurso, e mais ainda na linguagem escrita, nós con­ tinuamos a dar às palavras novos sentidos figurados; e assim como há muitas maneiras de “ver” um nôvo objeto ou acon­ tecimento, há com freqüência uma ampla escolha de coisas mais antigas às quais êle poderia ser assimilado. Quem deci­ diu' que a tampa de um m otor de automóvel devia chamar-se hood, “capuz” nos Estados Unidos, e na Inglaterra, França e Alemanha bonnet? Quem chamou a cobertura para certas uni­ dades menores de “ capuz” e em seguida fêz o verbo “encapuçar”, derivando o adjetivo “ encapuçado” para o mesmo objeto? Quem, em inglês, chamou à cobertura do cubo da roda cap, “ gorro” ? Ninguém sabe. Tôdas essas palavras denotam cha­ péu, a cobertura indeterminada mais familiar de uma parte especial, e a analogia é suficientemente óbvia para aceitarmos o significado extensivo sem dificuldade. Uma bigota pequena, com um furo no meio e em forma de sapato, usualmente se designa como “ sapata” ; encontramos novamente a figura de linguagem natural, e prontamente esquecemos que ela é uma figura. Por extensão metafórica, “ sapata” torna-se o nome literal de uma peça mecânica, em virtude da sua semelhança àquilo com que calçamos os pés. Dêsse modo, a linguagem cresce com a concepção, e usual­ mente a concepção acompanha o progresso de novas experiên­ cias. O repositório de todos os nossos conceitos, velhos e novos, tanto os deveras abstratos como os inveteradamente poéticos, é o senso comum, a base em geral aceita do discurso racional, do conhecimento e do bom senso. Mas o senso comum não é um sistema conceituai perfeito, lógico e coerente, por meio do qual se possa compreender tudo

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acêrca da realidade. Erige-o uma imaginação espontânea que re­ corre a muitas fontes, e as imagens que emprega são amiúde incompatíveis; de modo que êle é realmente um instrumento improvisado, propenso a absurdos quando se põe à prova tudo quanto seus conceitos implicam. Tais implicações estão com fre­ qüência em flagrante contradição umas com as outras, ou levam a uma mixórdia de crenças extravagantes, desconexas. Por exemplo, pessoas que tenham estudado um pouco de Psicologia — diga­ mos, um curso introdutório na universidade — podem ver, por via do senso comum, que o conceito de “ vontade” , como facul­ dade ou capacidade distinta, é insustentável; mas em debates morais e religiosos tais pessoas continuam a preocupar-se com e a argumentar acêrca da “liberdade da vontade” . Não podem abandonar a tradicional pressuposição do senso comum segundo a qual uma entidade chamada “vontade” é o verdadeiro agente por detrás de seus atos — não uma parte do corpo, mas algo que está de algum modo dentro déle e o aciona — embora em outro contexto tenham visto claramente que essa pressu­ posição não faz sentido. O fato é que qualquer trabalho intelectual ambicioso e sistemático cedo sobrecarrega as possibilidades do senso co­ mum. Tão logo alguém se põe a pensar séria e estrênuamente acêrca da natureza, da sociedade, da mente, da verdade, ou de qualquer outro assunto vasto e complexo, as maneiras tradi­ cionais de concebê-lo revelam-se por demais confusas para per­ mitir quaisquer distinções e definições que possam revelar rela­ ções ocultas, ou tornar inteligíveis as relações óbvias. O pen­ sador, portanto, depara com a tarefa de criticar e corrigir, quiçá mesmo rejeitar, as imagens aceitas e as pressuposições tácitas, e de erigir um nôvo conjunto de conceitos, mais abstra­ to e mais viável. Semelhante crítica sistemática do senso comum é filosofia. Como disse William James: “A palavra significa apenas a busca de clareza onde as pessoas comuns nem mesmo suspeitam que haja falta dela” . A Filosofia é a busca de significados. Não é um processo de descobrir novos fatos; a descoberta e enunciação generalizada de fatos chama-se Ciência. Filosofar é um processo de dar sentido à experiência, e não de fazer

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acréscimos a ela, como acontece com o aprendizado factual e com a investigação experimental. “A busca de clareza” — eis na verdade, a procura cons­ tante à qual tôdas as técnicas especiais de filosofia se inclinam. Essas técnicas constituem uma disciplina, conhecida e ensinada desde a antiguidade como Lógica. Conquanto o estudo de Ló­ gica seja antigo e venerável, seus avanços mais espetaculares datam de um período bem recente, e estão ainda em pleno curso. No passado, a Lógica devotava-se quase inteiramente a analisar os conceitos formais de uso geral — as abstrações im­ plícitas na gramática e na sintaxe e no discurso comum conca­ tenado. Com o desenvolvimento da chamada “lógica simbó­ lica”, porém, os lógicos conquistaram certa liberdade com rela­ ção à influência da linguagem, com usarem formas de dizer as coisas, diferentes das formas lingüísticas tradicionais — isto é, formas que não o sujeito-e-predicado dos enunciados positivos e negativos. Êsse desvio, que teve início com a invenção de um vigoroso simbolismo, quase matemático, franqueou campos de trabalho lógico inteiramente novos; voltou os holofotes inte­ lectuais para os princípios da abstração, para a necessidade e os limites da simbolização, e para as combinações possíveis de conceitos abstratos no quadro de qualquer sistema simbólico que seja, não apenas o que se chama comumente de uma “lin­ guagem” . O trabalho lógico hoje em dia é, pois, mais do que uma questão de analisar formas dadas; consiste em grande parte em manipular têrmos abstratos de aparência exótica em novas combinações, construindo novos conceitos formais. Clareza, portanto, não é tudo o que o pensamento filo­ sófico produz, ainda que lhe seja o alvo constante. Os concei­ tos podem ser claros .e todavia ainda inadequados. Suponha­ mos que pudéssemos definir ao ponto de perfeita clareza o conceito de “ flogístico” ; se não houver nada no mundo que exemplifique o conceito, nada que se ajuste à definição, ou se não pudermos combinar êsse conceito com nenhum outro, sua clareza não terá nenhuma utilidade; nada poderemos fazer com o têrmo. Os conceitos devem ser não apenas claros mas ade­ quados a algum propósito intelectual. Tal é o núcleo de ver­ dade da doutrina conhecida como “pragmatismo”, a qual afir­ ma que as crenças são verdadeiras se “ funcionam” . Não são

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as crenças que são verdadeiras, e sim os conceitos nelas envol­ vidos que são válidos, se — e somente se — funcionarem. Asgumas das abstrações feitas pelo senso comum poder-se-iam tornar muito precisas e coerentes; na verdade, foi exa­ tamente isso o que originou a geometria euclidiana e a psico­ logia, a física e a lógica aristotélicas. À medida, porém, que a observação se torna mais ampla e mais aguda, e fatos se acrescentam a fatos, mesmo uma versão refinada e codificada de nossas metatoras naturais não se ajusta à crescente tarera de compreender conexões científicas. Conceitos que principiam em imagens concretas são simples demais para êsse propósito. Em ocasiões que tais, os condutores do pensamento hu­ mano realizavam trabalho filosófico. Eis por que os grandes períodos da Filosofia seguem-se a períodos de rápido desenvol­ vimento cultural ou de experiência novas: as realizações de Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles, no nascimento da civilização grega que culminou na Idade de Péricles, pouco antes do tempo déles; a filosofia medieval, desde Erigena até Aquino, após o tremendo advento do Cristianismo; os cha­ mados “filósofos modernos” — Descartes, Bacon e Hobbes, e tôda a sua progênie intelectual, definhando lentamente depois do gigantesto Kant — na esteira da Renascença, para dominar o tumulto de suas descobertas, aventuras e ímpetos criativos. Um período altamente filosófico assinala uma extensão da mente humana, uma reorientação mais ou menos geral no mundo, e um nôvo desenvolvimento do sentir dos homens em relação à natureza e a si mesmos. Tais revoluções intelectuais se iniciam, decerto, onde abstrações mais elevadas e conceitos mais viáveis que os do senso comum corrente se fazem necessários: entre teólogos, advogados, matemáticos, astrônomos, físicos, químicos, médi­ cos, biologistas e outros profissionais que lidem com intrin­ cados sistemas de fatos ou idéias. Peritos, tanto quanto leigos, quando se avêm com um assunto puramente conceituai como leis ou matemática, materiais invisíveis como os da Teologia, objetos infinitesimais como “ átomos” e mesmo partes de áto­ mos, ou porções inacessíveis do mundo, tal como em Astro­ nomia, recorrem necessariamente a um modêlo, isto é, a uma

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imn^cm simbólica tirada de experiência mais familiar para reprelentir um conceito impalpável. Um cientista demonstrará a ní mesmo e a outros o funcionamento de um coração por meio de uma bomba de construção simples, com quatro válvulas e duas presilhas de mangueira; ou fará que uma estrutura de barras e bolas metálicas represente as minúsculas distâncias e outras relações entre partículas girantes de matéria elètricamente carregada chamadas “ prótons” e “elétrons” , que supostamente compõem os elementos materiais submicroscópicos que hoje em dia levam o nome de “ átomos” . Quando o quadro conceituai do nosso pensamento fôr inadequado para compreendermos o nosso mundo, os modelos que o serviram no passado já não nos servirão de nada. A primeira teoria dos átomos foi proposta há mais de dois mil anòs pelo filósofo grego Demócrito*; sua ilustração da maneira como os átomos compunham a matéria era tirada da areia do mar de pedaços duros de pedra ajeitando-se pelo seu pêso em grandes massas, e de grãos de poeira vistos em résteas de sol, exibindo um movimento constante que pensava êle lhes fôsse “natural” . Sua concepção de átomos envolvia forma e movi­ mento, mas nenhuma estrutura ou partes interiores. Na ver­ dade, o nome que deu a êsses elementos materiais, “ átomos” , significa “indivisível” , isto é, sem partes. A estrutura atô­ mica, tal como a conhecemos, não poderia ser imaginada sem um nôvo conceito, ou melhor, sem tôda uma série de novos conceitos — fôrça eletromagnética, carga positiva e negativa, unidades de energia e diversos outros têrmos de análise que não eram correntes e, na verdade, eram impossíveis no seu tempo. O pensamento filosófico não tinha atingido o nível de abstração próprio de tais têrmos. Em virtude de operarmos com semelhantes noções, os velhos modelos gregos da substância física já de nada nos apro­ veitam. A nossa filosofia da natureza os sobrepujou, e a obser­ vação científica nos mostra condições que êles não podem representar. A principal razão, porém, pela qual os físicos jamais estiveram satisfeitos com o antigo conceito de átomo

(1) O u, provàvelmente, por seu mestre Leucipo; mas o poeta latino Lucrecio, em quem nos louvamos, no-la associa ao nome de Dcmócrito.

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é a de que êsse conceito abrigava uma incoerência lógica. Uma substância simples, como supôs Demócrito, não iem realmente nenhuma propriedade a não ser as de extensão espacial. Por minúscula que seja tal extensão, ela jamais é indivisível. Poder e imaginar uma partícula de matéria sólida que seja indivisível na prática, isto é, por não têrmos nenhum instrumento que ainda a possa dividir; mas em teoria, o fim de sua divisibilidade não pode ser estabelecido em nenhuma magnitude. Este é um exemplo típico da espécie de problema concei­ tuai que surge na Ciência, na religião, na política ou em qual­ quer outro campo de interêsse sistemático, e que suscita um desafio filosófico. Não basta analisar o conceito tradicional, achá-lo logicamente insustentável e rejeitar a palavra “ átomo” como desprovida de sentido; “ átomo” realmente significa algo que existe, mas o que a êle corresponde na realidade não pode ser uma partícula de matéria absolutamente dura, semelhante a uma pedra infinitesimal. A esta altura, temos de construir um nôvo significado, algum que possa resistir à análise lógica e nos permita ainda empregar a palavra “ átomo” ao descrever as diferentes formas da substância física. Tal é a obra constru­ tiva da Filosofia. Ela constitui, de longe, a maior parte dessa disciplina; a análise dá forma ao problema e serve de constante aferição, mas a construção lógica constitui a sua verdadeira vida. Ela requer imaginação, talento na manipulação de defi­ nições formais, e, sobretudo, certa ousadia e liberdade de espí­ rito para afastar-se dos meios tradicionais de pensar e de falar, para abrir mão dos velhos modelos enganosos, e dispensar mesmo as instigações do senso comum com altivo desapêgo, no interêsse da conceptibilidade abstrata. Ordinàriamente, numa sociedade normal e estabelecida, as limitações do senso comum são de escasso interêsse para a pessoa comum. Nem mesmo os seus paradoxos e absurdos a perturbam, pois ela não tem consciência déles. A estrutura do seu pensamento, e com isso, de suas ações, paixões, expecta­ tivas, e de todos os assuntos de sua vida, é tôsca mas firme. Constitui-se principalmente de uma trama de imagens tiradas dos aspectos mais familiares da existência: o espaço de sua própria vida, ampliado a proporções cada vez maiores, é o espaço de seu universo; os anos — medidos pela rotação da Terra em tôrno do seu eixo — estendem-se pelo seu próprio

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puiando c para além déle, e pelo seu futuro e mais além, per­ imendo n eternidade. Da sua experiência social, a pessoa toma de empréstimo a imagem de uma lei imposta, que regula as ações das pessoas, e nem mesmo sabe que está criando uma metáfora quando chama as regularidades da natureza de “lei natural” ; e assim como uma autoridade impõe leis ao povo, a pessoa dificilmente pode eludir o pressuposto de uma auto­ ridade imensamente grande a impor uma lei absoluta e perfeita às coisas, a que estas conseqüentemente “obedecem” em todos os pontos. Em épocas de mudanças rápidas, porém, quando a socie­ dade nem é normal nem assente, a pessoa comum é levada a pensar acêrca de coisas que estão além da sua esfera de vida — coisas que sustentam essa esfera essencial, e de súbito pare­ cem inseguras: a providência e o seu plano, as credenciais das autoridades humanas, a validade da moral e das instituições, o valor ou a vaidade do trabalho e da própria vida. Poucos homens podem meditar em tais problemas até chegar a um ponto de decisão, assim como não poderiam exco­ gitar para si mesmos as razões de esperar um eclipse para o quinto dia do mês próximo, às dez horas. A sua segurança mental, porém, não é necessàriamente perturbada por êsse fato, desde que acreditem implicitamente que as questões principais da vida poâem ser compreendidas por aquêles que de fato se apliquem de corpo e alma à tarefa — isto é, que há respostas, e que a razão humana pode formulá-las. Essa é, para o leigo, a principal importância do filósofo profissional — a razão por que a doutrina das idéias de Platão e a teleologia de Aristó­ teles interessavam aos mercadores e soldados da Grécia, que mal tinham ouvido falar delas, se é que o tinham de algum modo; por que a Summa Theologica de S. Tomás tinha grande importância para tôda a cristandade, embora provàvelmente só o alto clero o lesse, e assim mesmo apenas na Igreja do Ociden­ te; e por que, no apogeu de uma cultura secular em expansão que se seguiu à Renascença, num nôvo mundo de Ciência e comércio moderno, o Ensaio Sôhre a Compreensão Humana de Locke foi uma bomba intelectual, e o Principia Mathematica de Newton, escrito em Latim e consistindo em grande parte de enunciados matemáticos, influiu intelectualmente em pessoas que não eram

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cientistas nem matemáticas e que jamais lhe tinham estudado uma página sequer. O pensamento adestrado e especializado está sempre na vanguarda do nosso desenvolvimento conceituai; o que é abstruso e misterioso para uma geração é em geral de todo aceitável para a seguinte. O mesmo se dá em Filosofia, em arte e em música: o que reputamos compreensível, a pintura de E l Greco ou a música de Beethoven, foi outrora recebido com relutância ou mesmo sob violento protesto como detur­ pada coisa moderna. John Locke teve de lutar contra as cren­ ças do senso comum das pessoas quando argumentou que a origem de todo o nosso conhecimento factual é a sensação (essa noção era antiga, mas não era popularmente conhecida); Kant, uma centena de anos depois, teve de arrostar o senso comum para questionar a mesma idéia. Conceitos abstrata e logicamente desenvolvidos só penetram o pensamento inadestrado quando se encontrem modelos familiares e con­ cretos para representá-los. Parecem sensatos ao comum das pessoas apenas na medida em que sejam imagináveis. E usual­ mente o avanço do conhecimento é moroso bastante para per­ mitir que tais versões populares de novos conceitos tomem forma. É, em última análise, a imaginação que estrutura, suporta e orienta nosso pensamento, não apenas acêrca das coisas prá­ ticas do cotidiano, mas também acêrca de coisas mais grandio­ sas — bem e mal, amor, vida e morte, passado e futuro, e destino humano. A pessoa comum provàvelmente não cogita de tais assuntos muito amiúde, mas tem idéias a respeito dêles, como se costuma dizer, “no porão da mente” — colhidas, desde a infância, na igreja, em momentos impressivos e nas noites indormidas. Quando ela tem ocasião de considerar ques­ tões fundamentais de princípios morais, esperança ou renún­ cia, “ eu” ou sociedade, os têrmos em que pensa devem ter algum significado claro para ela; é então que necessita de uma imagem do mundo definida e adequadamente vasta. Vivemos, hoje em dia, num mundo ansioso. As gerações futuras provàvelmente considerarão o nosso tempo como uma época de transição de uma ordem social para outra, assim como

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consideramos a Idade Média um “meio” entre a civilização Kreco-romana e a civilização européia plenamente desenvolvida. Mas não podemos encarar o presente dessa maneira, porque aquilo em cuja direção estamos indo ainda não existe, e déle não podemos ter nenhuma imagem. Tampouco é a ascendencia da Europa — o concêrto de nações que consistem de povos brancos, e sua cultura económica que compreende aproxima­ damente a Cristandade — um ato histórico já finalizado; mas sua forma se rompeu. Sentimo-nos arrastados, numa vio­ lenta transição, de um mundo que não podemos salvar, para outro que não podemos ver; e a maioria das pessoas tem mêdo. O dilúvio de experiências novas que nos empolgou nas duas ou três últimas gerações é sem dúvida reconhecido geral­ mente como a origem da nossa desorientação. Todo mundo sabe o quanto os aspectos sociais, econômicos e físicos da vida têm mudado — como o trabalho artesanal cedeu o passo à maquinaria, como as novas maneiras de viajar e os novos mé­ todos de comunicação revolucionaram a estrutura social, colo­ cando as culturas mais primitivas em contacto direto com as mais civilizadas, e como a guerra moderna e o comércio mo­ derno, difundidos pelo mundo todo, misturaram tôdas as raças, religiões e línguas numa balbúrdia fantástica. Êsses fatos não carecem de ser reiterados. O que pouca gente compreende é que as condições de vida, já mudadas e ainda em processo de mudança, são apenas uma das coisas — a mais tangível — que nos mantêm num estado de tensão nervosa beirando a histeria. Existe uma fonte mais profunda de ansiedade, abaixo do nível das expectativas prá­ ticas e mesmo do pensamento explícito: a crescente impropriedade das palavras, e especialmente de certas palavras-chave, que sempre funcionaram em nosso discurso moral e político para expressar com exatidão o que queremos dizer em tal discurso hoje. Talvez o atual entusiasmo popular pela “ semântica” resulte de uma consciência incompleta, mas justa, dessa pro­ funda perturbação. É curioso o fato de que questões filosó­ ficas de fatos importantes suscitem usualmente algum eco na mente do público; na verdade, o público em geral tem uma misteriosa capacidade de sentir a importância de coisas acêrca das quais nada sabe explicitamente. Mas os cultos e suas campanhas — tal como ensinar a grandes audiências as pri­

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meiras, superficiais e amiúde especiosas descobertas da pes­ quisa semântica — eqüivalem a curandeirismo aplicado a graves doenças filosóficas. A impropriedade das palavras assinala uma dificuldade mais séria que o uso emotivo da linguagem, e o escapar das categorias aristotélicas do pensamento requer mais do que uma fórmula nova que se possa aprender. A diagnose pode estar essencialmente correta, mas a cura é um ataque a sintomas. O que tais sintomas revelam é uma frustração geral dos nossos poderes conceituais em face do mundo nôvo, e isto signi­ fica, decerto, incapacidade de raciocinar com clareza a seu res­ peito; por conseguinte, carecemos de fundamentos teóricos para apoiar qualquer asserção acêrca das coisas que nos interessam mais urgentemente — direitos humanos, lealdade, liberdade, democracia, religião, nacionalidade, cultura. A causa dessa fa­ lência reside em duas condições: a rapidez com que as mudan­ ças práticas têm salteado o mundo, e a súbita expansão do pensamento. Tanto a vida real como o pensamento teórico excederam a nossa capacidade de imaginação; de modo que a pessoa comum — simples ou requintada — é incapaz de figu­ rar o universo, ou mesmo de conceber o que possa ser o futuro próximo. A imagem do mundo desmoronou. Nosso principal desconcêrto não se origina de novas expe­ riências, e sim do fato de que espaço e tempo, o quadro implí­ cito de tôda experiência, se alterou; a História se desenrola muito mais depressa do que nunca antes. O desenvolvimento dos acontecimentos políticos é diretamente influenciado pela rapidez da comunicação e pela velocidade das viagens. Consi­ dere-se, por exemplo, a diferença entre as guerras romanas contra os gôdos e contra os hunos, respectivamente. Os gôdos migraram com suas famílias, alargando aos poucos sua fronteira ocidental, sempre a ameaçar o império romano estabelecido. Quando César marchou sôbre êles, o perigo era óbvio, mas a crise — a efetiva invasão da Itália, a primeira marcha sôbre a cidade — ainda estava muito ao largo. Os gôdos se desloca­ ram com a lentidão de carros lotados e famílias a pé, e a situa­ ção política alterou-se à mesma velocidade. Os hunos checa­ ram com a rapidez de cavaleiros. A notícia da sua vinda difi­ cilmente os poderia preceder, pois só poderia viajar ao com­ passo do galope dum mensageiro. Quase tão prontamente

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quanto Roma o soube, os hunos estavam às portas. A crise política foi imediata. Nossa Historia tem-se acelerado em função do aceleramento de nossas comunicações e viagens, que é tal que já não o podemos conceber como “ duas vêzes mais rápido” ou “ dez vêzes mais rápido” , como os meios mais antigos. Foge a tôda proporção, de modo que os nossos velhos padrões não podem sequer ser modificados para aferir as novas dimensões. Por mais cuidadosamente que digamos a nós mesmos que as coisas acontecem mais depressa hoje em dia do que antes, nossas idéias a respeito delas ainda se atrasam em relação à mudança. Isto confere a tôda a História atual um ar de extraordinária pressão, como uma súbita emergência. O falecido Franklin D. Roosevelt disse: “Não podeis ter uma emergência durante trinta anos” . É verdade; mas pode-se ter um senso de emer­ gência que dure tanto ou mais. O espaço, igualmente, tem sofrido mudanças fundamen­ tais, não apenas no domínio da Astronomia, mas também em nossos cálculos terrenos. Desde a descoberta do vapor como fôrça motriz e da invenção ainda mais revolucionária do motor a gasolina, as distâncias se têm encurtado, como todo mundo sabe. Recentemente, porém, algo mais radical do que isso aconteceu ao espaço de nosso viver: a natureza física dos lugares se alterou. Com o advento das viagens aéreas, nossos cami­ nhos, que eram comumente limitados pela topologia do terre­ no, agora se situam na atmosfera, e as barreiras naturais — montanhas, gargantas, rios, calotas glaciais e oceanos — per­ deram seus antigos significados. Só as cordilheiras mais altas apresentam uma “corcova” no horizonte da nossa viagem. O assombroso resultado é que a Terra já não possui lugares iso­ lados. Vales profundos e retiros circundados de matagais estão abertos aos olhos perscrutadores como o estão ao céu. Já não existem esconderijos. Nem mais existem redutos naturais; as velhas fortalezas sôbre penhascos e picos são os alvos mais fáceis. Ao mesmo tempo, o pensamento científico, que no tempo de Newton começava a conquistar a condição de “ senso co­ mum” e a substituir os modos de pensar mais poéticos e reli­ giosos dos séculos anteriores, não parou de se desenvolver. Kepler, Galileu e Newton eram apenas um comêço. A con­

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cepção científica cresceu desde então como o feijão mágico, c depressa deixou para trás a vivida imaginação popular. As modernas operações matemáticas são de todo estranhas a quais­ quer imagens metafóricas que possamos formar. No entanto, conhecemos algo dessa grande aventura mental, pois nas socie­ dades civilizadas hoje em dia quase tôda gente sabe ler, e o rádio divulga novas idéias mesmo a círculos onde a leitura não seja comumente praticada, de modo que todos se informam do que se passa, e a coisa mais importante que se está passando é a Ciência. Nossa imaginação é influenciada por concepções cientí­ ficas que a nossa razão não pode de fato compreender, espe­ cialmente depois que as mais incitantes dentre elas passem provàvelmente pelo rádio como se pelo cutelo do açougueiro. O resultado é que o pensamento mais avançado e emo­ cionante de nosso tempo move-se num reino próprio. Seus resultados nos chegam sob a aparência de “maravilhas da Ciência” , “ drogas milagrosas”, e pesadelos de histórias em quadrinhos, de guerras interestelares ou explosões de mundos desencadeados por um grão de poeira transviado. As constru­ ções teoréticas, por detrás dos prodígios, transcendem a pró­ pria linguagem que falamos; só podem ser expressas em sím­ bolos matemáticos. Mas as idéias científicas genuínas que gradualmente se incorporaram ao pensamento popular o estão pressionando de outro modo: alguns dos nossos símbolos éticos mais importantes perderam muito da sua fôrça, se não tôda ela. “A lto” e “baixo” sempre simbolizaram o bem e o mal; “ acima” e “ abaixo” desig­ navam por isso direção moral bem como espacial. A com­ preensão de que “em cima” e “ embaixo” não indicam lugares fixos, de que o céu diurno e o céu noturno são diferentes partes do espaço, e “acima” e “ abaixo” significam respectiva­ mente “ para longe do centro da Terra” e “ em direção do cen­ tro da Terra” , influenciou sutil mas profundamente o pensa­ mento moral; pois assim como os significados literais de têrmos como “ acima” e “ abaixo” são tidos como relativos, e mais ainda, relativos à Terra, assim também o seu sentido simbólico deixa de parecer algo absoluto, e implica um ponto de origem terreno. Este é apenas um exemplo, mas não é difícil encontrar outros A religião sempre se valeu do modêlo de govêrno pa-

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trlarcfll, elevado ao grau glorioso de um monarca senhor de

«eu reino e de todos os seus vassalos, um Faraó, um Salomão, um César, um Luís. Numa época que se indigna contra o govêrno dinástico e que gaba a democracia, o governante divino já não aparece sob a imagem de algo que admiramos, mas sob a de um personagem obsoleto ou então de um rei de contos de fadas. Exceto nuns poucos países que ainda não cederam à tendência dominante, o rei outrora sábio, onipotente e sobre­ tudo esplêndido, é hoje cercado de restrições ao seu poder e de aferições da sua sabedoria, e veste-se como um homem de negócios algo formal e preciso. O govêrno terrestre não é mais um “ símbolo natural” da lei cósmica antes concebida à sua imagem. As velhas metáforas perderam sua pertinência, os velhos modelos são quebrados, e a Humanidade — especialmente a parte mais sensível e pensativa dela em tôda parte — perdeu a orientação mental e a certeza moral. A Filosofia exibe hoje violentos sintomas dêsse colapso intelectual. O seu mais importante elemento de prova é a tendência dos pensadores sérios da atualidade a basear todo o seu cometimento filosófico não na racionalidade humana, mas no desespero da razão. Isto torna a própria Filosofia não um processo de construir fundamentos lógicos para a Ciência, para a arte, para a religião e para as relações humanas, mas uma disciplina da mente para aceitar a irracionalidade, um ato de vontade diário e constante para evitar a razão e viver ou pela fé ou por algum “ compromisso moral” eleito, conquanto abso­ luto. Essa atitude, mais do que qualquer doutrina, constitui o espírito do “ existencialismo” que impregna a maior parte da filosofia e da literatura contemporâneas no continente euro­ peu, e de certo modo também nos países de fala inglêsa. Os princípios que unem os diversos filósofos que se dizem “existencialistas” — notadamente Heidegger e Jaspers na Ale­ m anha2, Sartre e Mareei na França — são mais programáticos

(2) Ambos êsses escritores repudiaram posteriormente o movi m ento existencialista, pois todo filósofo ativo deve rejeitar um rótulo que englobe suas idéias com as de outros. C onquanto fundador da escola pragm atista, Peirce rejeitou tal rótulo depois que James publi­ cou a “teoria pragm atista da verdade” . H istóricam ente, H eidegger e

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do que doutrinais. Na doutrina, êsses escritores amiúde estão deveras apartados. É no objetivo, no ponto de partida e no método que êles pertencem a um mesmo movimento espiritual. O seu ponto de partida é o reconhecimento da existência como uma experiência interior suprema — não apenas a exis­ tência de cada um, mas a do mundo, que tem o mesmo cará­ ter. Seu problema não é entender a existência,dado que ela é essencialmente irracional e portanto elude o entendimento, mas sim aceitá-la e avaliá-la. A motivação mais profunda da busca dêsses filósofos é introduzir valores no mundo onde não os encontram. Êsse é um motivo comum em qualquer tempo, e numa época de transição cultural, repleta de tensão, paradoxo e incer­ teza, um poderoso motivo; conduz milhares de pessoas deses­ peradas de seus vãos esforços de haver-se com o mundo, para dentro dos apriscos de fés religiosas. Mas a maioria das pessoas tem pouco que sacrificar nessa mudança; êsses homens, bem ao contrário, não se podem livrar fácilmente da sua pró­ pria razão, que se revolta contra o absurdo. Seus escritos estão repletos de idéias racionais e de argumentos hábeis. Tais pen­ sadores consideram a aceitação de contradições uma tarefa pe­ sada. Têm de lutar contra a tentação da racionalidade; e seu método filosófico demanda, por conseguinte, uma constante humilhação da razão. Essa humilhação é o ato moral livre, a escolha constante, que o existencialista tem de praticar assim como o simples sectário religioso pratica constantemente a oração. A promessa do existencialismo é a personalidade indivi­ dual, a reorientação, a liberdade de uma vida emocional per­ turbada pelo temor do caos, do nada e da alienação. Seu pro­ gresso é biográfico. O objetivo de tôda essa aventura filosó­ fica é transcender as limitações pessoais, satisfazer as necessi­ dades pessoais e solucionar problemas pessoais, sejam quantas forem as pessoas que tenham a mesma ansiedade a apaziguar e a mesma “ interioridade” a atingir. Nesse particular, lembra as antigas escolas helénicas dos estóicos, cínicos, epicuristas e Jaspers foram os chefes do movimento existencialista, da mesma forma que Peirce o foi do movimento pragm atista.

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drcnaicos; c a exemplo delas, não contribui para o pensamento leórlco, pois não é uma teoria e sim uma experiência. Começa com "tem or e trem or” e culmina em transcendência, ou liber­ dade, ou afirmação de Deus, ou auto-realização na morte, mas não em qualquer avanço do pensamento; pois diz-se que o pensamento construi apenas paradoxos. O existencialismo é um movimento de retiro intelectual. Pode haver sabedoria no retiro, mas nos tempos atuais o que nêle há é sobretudo grave perigo. Se os líderes do pensamento, os filósofos por vocação e educação, desesperarem da razão, quem conservará a confiança para que o conhecimento possa ampliar-se a fim de manter sob seu comando o assombroso acréscimo de novos fatos? Afortunadamente, há, hoje em dia, pessoas filosofando, não tão conscientemente desorientadas que a solução de problemas pessoais lhes domine o pensamento sistemático. Elas vêem a Filosofia como uma crítica de conceitos operantes em todos os domínios da vida, especialmente naqueles em que os velhos conceitos sejam obsoletos e os novos incoerentes e talvez mais que algo metafóricos. O paradoxo, que os existencialistas con­ sideram o fim de todo argumento racional, constitui para êsses pensadores mais extrovertidos o ponto de partida, não o lugar de chegada. As idéias paradoxais são idéias imperfeitamente formuladas, e a tarefa do filósofo é analisá-las, ponderar quais conceitos essenciais e não essenciais entraram nelas (assim como na clássica idéia de matéria o conceito de massa é essencial, mas o de inconsciência ou de inutilidade ética não é), e defi­ ni-las coerentemente. Sua definição talvez pareça estranha ao senso comum, mas ao menos faz sentido; e se fôr adequada bem como coerente, então em outro século, ou em menos tempo, ela se tornará matéria de senso comum. Os campos mais sedutores, mais abertos para êsse nôvo trabalho lógico são atualmente as ciências naturais. Os con­ ceitos científicos cresceram como cogumelos nos domínios da Física, Química, Astronomia, Biologia. Seu desenvolvimento sobrepujou não apenas a imaginação popular, mas também tôda a filosofia acadêmica corrente. Os grandes cientistas foram seus

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próprios filósofos. Êles jamais temem as idéias. - Newton, Faraday, Einstein, Planck e seus pares — geração após geração — inventaram novos conceitos da ciência física à medida que os iam necessitando. É claro, porém, que limitaram suas cons­ truções intelectuais às exigências de seus temas. Ao físico não interessa que essas ousadas abstrações venham jam ais, a adequar-se às formas econômicas, legais, morais, estéticas e outras formas de ideação que prevaleçam no restante da vida; êle está muito ocupado no seu domínio para representar o papel de metafísico, e na verdade, onde quer que o faça, a sua ima­ ginação é tão pouco guiada por problemas estritos quanto a de qualquer pessoa, e é capaz de cair em canais tradicionais tão logo se aventure em terreno estranho. A Filosofia tem seus postos avançados em qualquer campo especial, mas seu avanço frontal constitui tarefa dos seus próprios estudiosos. Estabelecer os fundamentos racionais de proposições cien­ tíficas é o trabalho que arregimenta hoje as mais vigorosas mentes filosóficas. Êle as tem levado longe no terreno dos problemas semânticos: o efeito das formas simbólicas sôbre os significados, os limites dos sistemas lógicos, e as bases para a escolha de sistemas. Deu início a uma análise penetrante de conceitos como espaço-tempo, mensuração, simultaneidade, loca­ lização, equivalência, estrutura, padrão dinâmico, elemento, forma e função; mas êsse trabalho analítico é entretecido com os processos de nova construção e imaginação lógica, que são naturalmente reclamados onde a análise pura só possa revelar enigmas e paradoxos. M orton W hite, ao editar uma antologia de escritos filosóficos recentes, intitulou-a A Idade da Análise. Essa designação de nosso tempo talvez seja justa. Analisar conceitos constitui a nossa única técnica formal; mas poucos filósofos compreendem que suas análises estão “carregadas” de intenção construtiva, voltadas para a formulação de novas idéias em função das quais o universo científico possa tornar-se con­ cebível outra vez como um mundo, engendrando e encerrando tôdas as coisas que para nós são reais. Enquanto as ciências caminham com botas de sete léguas, o nosso pensamento social parece atolado num charco. Seus próprios objetivos se tornaram problemáticos. O desenvolvi­ mento de poder físico praticamente ilimitado deturpou e rom-

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neu n ordem tradicional da política mundial de poder, que se em muito menores medidas de violência e em seus efeltos. Como Einstein certa vez assinalou, agora que sabemos poder destruir qualquer coisa que queiramos, a ameaça de des­ truição hostil torna-se algo extravagante. Desde a invenção das armas atómicas, o ataque armado não é mais um trunfo diplo­ mático razoável. Uma nova ordem política, ajustada a um sistema económico mundial e a uma população mundial essen­ cialmente livre, a miscigenar-se, deve-se estar formando, mas até agora não temos nenhuma imagem dela. Se os nossos velhos ideais e práticas se tornaram insensatos, que o sejam, mas nós ainda os possuímos. l)#*eAvn

Deparamos com uma inintencional, não-dirigida, mas irre­ sistível revolução em tôdas as relações humanas, desde os laços de matrimônio e os contrôles da família pelos quais a vida pessoal tem sido tradicionalmente ordenada, até as lealdades religiosas e patrióticas que costumavam regular as atividades mais latas das pessoas. .Uma mudança tão radical do cenário humano e^ige e efetua uma mudança dos conceitos com que operamos prática e intelectualmente, mas pouca gente compreen­ de que suas concepções sociais básicas se alteraram. Ao passo que nossas metáforas mais profundas perderam a significação moral, algo igualmente desconcertante aconteceu a quase todos os têrmos estritamente literais da teoria social: tornaram-se equívocos, pois já não se aplicam às coisas a que antes se aplicavam, e a mudança de velhas para novas aplicações abalou-Ihes o sentido exato. Quando falamos de “ comunidade” , “ so­ ciedade” , “ democracia” , “liberdade” , não significamos o que nossos predecessores significavam com êsses têrmos, mas ainda dizemos as coisas que êles diziam. Uma “comunidade” costu­ mava significar um grupo mais ou menos permanente de indi­ víduos ou famílias a entreter entre si relações especiáis que não mantinham com famílias ou pessoas fora do grupo. Pode essa noçãa ser simplesmente estendida à Humanidade como um todo, à “comunidade mundial” ? “Liberdade” costumava significar liberdade de agir sem restrição, como se achasse me­ lhor, e assumir as conseqüências; referimo-nos a algo seme­ lhante ao q u e os pioneiros americanos chamavam de liberdade, quando nç>s propomos a conceder às pessoas “liberdade da penúria” o>u “liberdade do mêdo” ?

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Assim como espaço e tempo mudaram de feição e abala­ ram nossos mais elementares pontos de apoio no mundo físico, a linguagem alterou seus significados sem o sabermos e con­ fundiu o nosso discurso literal, teórico. Ao nosso pensamento moral e político falta qualquer espécie de estrutura conceituai própria. Mesmo em campos especiais que dignificamos com nomes de aparência científica — Sociologia, Psicologia Social, Dinâmica Social — não existe base conceituai de vigorosas abstrações capaz de assistir análises cada vez mais profundas, definições que possam ser construídas umas sôbre as outras, como as definições de têrmos matemáticos ou elementos físicos, e a construção de um sistema de relações altamente articulado. A terminologia hoje usada na chamada “ciência social” é cons­ cientemente artificial, mas os conceitos ainda são os do senso comum, generalizados mas não abstratos: vale dizer, são ainda pré-científicos. Desde que os assuntos políticos, a moral apartada de doutrinas de igrejas, e as questões sociais não têm um lastro de pensamento formal, coerente, a que possamos recorrer quando os problemas se compliquem, a “ciência social” não pode ser guia para a ação racional. Onde não há teoria não existe ciência — política, social ou qualquer outra. A explicação corrente, apresentada como escusa dêsse malo­ gro intelectual, é a de que conceitos precisos são impossíveis e inúteis no campo do pensamento político, porque em política as pessoas são movidas pelo interêsse próprio ou pela emoção, e não agem com base na razão. Isso equivale a dizer que a engenharia não pode construir uma reprêsa para produção de energia elétrica porque as reprêsas são construídas com dinheiro e arranjos políticos, não com matemática. As pessoas são tão emotivas em relação à religião como à política; isso não signi­ fica que a Teologia deva ser confusa e assistemática. A enge­ nharia não levanta a verba nem faz tram itar os necessários projetos de lei para obter a construção de uma reprêsa, mas determina precisa e claramente o que é necessário para cons­ truí-la quando quer que nos decidamos a fazê-lo. Necessitamos de conceitos vigorosos para haver-nos com o tumulto das novas condições que nos cercam. Justamente a essa altura, falha-nos a concepção; é demasiado o número de palavras velhas que temos usado com novas aplicações, a que

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NCUN «Ignificados literais estritos não se ajustam devidamente, i)«r« iBDcrmos acêrca de que estamos falando. De sorte que lol-ac a base do nosso firme pensamento prático. Isso ocasiona o pânico da descrença na razão, ou, não raramente, um desejo nostálgico de voltar a doutrinas construídas de modo racional c conveniente no quadro de um mundo mais estável, antes de a razão ter-se confundido. É então que se ouvem as senhas: “ Volta a Kant!” , “Volta a S. Tomás!” , “Volta a Aristóteles, a Platão, a Pitágoras!” Mas não podemos voltar atrás a não ser em sonho. A História caminha para a frente, não para trás. A Filosofia deve ir para a frente — ousadamente, sôbre todos os obstáculos — a fim de tornar adequada a linguagem, possibilitar o pensamento literal e torná-lo novamente eficaz. Nos domínios em que a teoria é mais fraca, e em que os têrmos do discurso são mais indistintos, é que está a maior e mais urgente obra a ser realizada. Temos de construir a morali­ dade de uma nova época, de um nôvo mundo, e isto significa uma nova moralidade. Tal não se pode fazer adotando alguma idéia nova simples e fazendo-se dela um “ismo” — humanis­ mo, existencialismo, freudismo — nem estabelecendo uns quan­ tos princípios gerais pelos quais tôdas as leis éticas familiares devam daí por diante ser aferidas. Só pode ser feito analisando e quiçá redefinindo não apenas os óbvios aspectos éticos da vida, mas a própria natureza da vida, a vida individual, men­ talidade, sociedade e muitos outros assuntos. Somente de tão longa e livre reflexão podem surgir os conceitos abstratos que tornarão o pensamento social tão vivo quanto a ciência física, e tão vigoroso quanto ela. Somente por via de trabalho assim infatigável podemos ter a esperança de engendrar “ciências sociais” . O problema de restaurar o equilíbrio mental que a H u­ manidade òbviamente perdeu nestes tempos não é psiquiátrico nem religioso nem pedagógico, mas sim filosófico. É a impropriedade dos nossos conceitos que acabou por levar todo o pensa­ mento ético e político a decompor-se em ideologias desabusadas. O único antídoto da ideologia é ideação ativa, resoluta e confiunte: cis a tarefa do filósofo. O que hoje em dia necessitamos não é basicamente um rcnmclmcnto da boa vontade ou o retorno a alguma antiga 160

ordem de vida; precisamos de uma geração de pensadores vigo­ rosos, firmemente devotados à Filosofía, adestrados em Lógica, Lingüística, Matemática, e preparados para aprender qualquer habilidade ou conhecimento especial que possam achar necessá­ rios em seu caminho — adestrados de modo tão integral quanto qualquer cientista, sem evasão a assuntos áridos ou a procedimentos graduais — pessoas capazes de atacar questões terríveis e de abrir caminho à viva fôrça através de todos os falsos conceitos e tradições confusas que nos aturdem os pensa­ mentos e as vidas. Temos de construir o andaime de nossa nova vida, rápida e engenhosamente, e com lineamentos amplos. Precisamos de grandes idéias, abstratas, poderosas, novas — modernas em suma — de jeito que a mente humana possa sempre abranger e dominar o que as mãos humanas alcancem.

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