157008854 Gerard Lebrun 1988 O Avesso Da Dialectica OCR

March 17, 2017 | Author: Leonardo Andrade | Category: N/A
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GÉRARD LEBRUN

O AVESSO DA DIALÉTICA HEGEL À LUZ DE NIETZSCHE Tradução: RENATO JA N IN E RIBEIRO

______ COMFANHIA EKS LETRAS

Oadoi d« C a t a lo g a ç ã o na P u b lic a ç ã o (C IP ) In lo rn a clo n a l (C A m a ra B f a s ila lra d o Llvro , S P , B r a s il)

L cb ru n . C e ra rd , 19300 avesso da d i a l é t ic a : Hegel â luz de Nietzsche / Gérard Lcbrun ; tradução Renato Jan in« R ibe iro. — São Paulo : Companhia das L e tra s, 1988.

ISBN 85-7164-007-6 1. Dia lé tic a 2 . Hegel, Ceorg Wilhelm F rie d rich , 1770-1831 3 . N ie t z sc h e , F rie d rich , Wilhelm , 18441900 I . T ítu lo . 1 1. T it u l o : Hegel > luz do Niettschs-

índices para catálogo sistemático: 1 . D i a l é t i c a begelian a s F il o s o f ia alemã 193 2 . F il o s o f ia alemã 193

Copyright © Gérard Lebrun Tradução do Prefácio: Cláudio Marcondes Capa: Ettore Bottini a partir de Elementos mecânicos sobre fundo vermelho (1924), de Fernand Léger Revisão: Olga Cafalcchio Adalberto CoUto Elvira da Rocha

1988 Editora Schwarcz Ltda. Rua Tupi, 522 01233 — São Paulo — SP Fones: (011) 825-5286 e 825-6498

ÍNDICE

Prefácio ............................................................ .................

^

i. A verdadeira teodicéia.......................................................... II.

O poder sem a fo rça............................................................

65

m . A grande suspeita ................................................................ A doçura de temer ..............................................................

167

v. O tema do círculo........................ ......................................

213

vi. O círculo dos círculos ........................................................

243

Notas ...................................*.............................................

293

IV.

PREFÁCIO

Os ensaios reunidos neste livro dizem respeito à dialética hegeliana. Não se trata de isolar a armação desta, pois a “dialética” não é algo que se possa resumir de uma vez por todas: como indica por vezes o próprio Hegel, sua estrutura varia conforme seus momentos (por exemplo, em cada uma das três partes da Lógica). Trata-se ape­ nas de analisar algumas amostras da dialética com um objetivo bem preciso: determinar certas opções que ela, sem o dizer, implica. Pri­ meiro, opções ontológicas, cuja detecção muitas vezes exige referência aos clássicos gregos. Mas também — e inseparavelmente — opções antropológicas, que o perfeito funcionamento da maquinaria hegeliana contribui para dissimular ao leitor. Não que exista aí qualquer desleal­ dade por parte do autor. Acreditamos que o efeito de dissimulação se deva à própria natureza dessa "ginástica” conceituai, denominada “dia­ lética” pelo menos desde o Parmênides de Platão, e que consiste em deixar que se explicitem significações que o "entendimento são” não sonharia em questionar, pois as supõe “bem conhecidas”, como disse ironicamente Hegel. Por isso, todo discurso dialético deve, antes de tudo, ser compreendido como um jogo, destinado a desiludir o leitor aturdido — e todos nós o somos, necessariamente. O “Um”, o "Mes­ mo”, o “ Outro” . . . aparecem, numa primeira aproximação, como sig­ nificações no mínimo estáveis para quem confia na linguagem corri­ queira: a tarefa do dialético é, portanto, tomar flutuantes tais signi­ ficações, e nos fazer descobrir em cada uma delas um ninho de aporias e de contradições. Nessa metamorfose dos conceitos, que à primeira vista parece levar direto ao ceticismo, se elabora o Saber ao qual o “entendimento” era, por natureza, incapaz de ter acesso. Este é o movi­ mento da dialética: uma pedagogia que parte da idéia de que os alunos se encontram na total ignorância do significado das palavras que em­ pregam. Se é assim, talvez nos perguntem: por que tomar como hipó­

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tese de trabalho este que é um jogo trucado? Por que levantar uma suspeita de princípio contra um discurso que pretende eliminar todos os bloqueios e dissipar todas as miragens do falar cotidiano? Por que essa obra de desmistificação deveria ser silenciosamente mistificadora? Todavia, se levarmos em conta esses escrúpulos, seria impossível empreender qualquer questionamento do discurso hegeliano. Para nos distanciar dele, teríamos de escolher entre apenas duas posições: ou continuar dirigindo a Hegel as objeções do "entendimento”, que ele próprio teve o prazer de refutar antecipadamente, ou então concluir que seu sistema não passa de uma montagem de sofismas, de um gigantesco Vernünfteln. A quem recusar essas atitudes, resta o comen­ tário, com sua facilidade e seu risco. Facilidade, pois o comentador se dá a garantia de nada encontrar além dos problemas locais de inter­ pretação, os quais não colocarão em causa a pertinência, admitida previamente, do discurso. Risco, também, pois, uma vez aceita a vali­ dade das regras do jogo, estamos destinados a reutilizar indefinida­ mente uma linguagem sobre cujo valor nunca nos perguntamos. A isso se deve a monotonia de muitos dos bons comentários sobre Hegel: ao intérprete nada resta além de falar, por sua vez, o “hegeliano” e de nos apresentar em câmara lenta a mutação das significações. Em suma, ao procurar manter-se fiel à dialética, ele acaba se deixando levar por ela e, por conseguinte, opera sobre meros conceitos, sem jamais referi-los a qualquer experiência. Na verdade, a própria dialética constrange o comentador a adotar essa solução. Desde Sócrates, o dialético faz crer (ou acaba por fazer crer) ao senso comum que só ele tem possibilidade de encontrar a exata definição do conceito que os homens sequer haviam procurado. Somente ele, do fundo de sua douta ignorância, será capaz de fazer entrever o que é o Justo, o que é o Belo, incondicionalmente e sob todos os aspectos. Pois essas palavras devem certamente designar algu­ ma coisa sub specie aeternitatis. Mas aqueles que as empregam (por­ que são estragados pela educação da cidade, inteiramente tomados pela vida prática etc.) nunca experimentaram a necessidade de trazê-las à luz. O dialético, portanto, se encarrega de remar contra a corrente e de afastar seus ouvintes do uso comum da linguagem: ao deslocar os conceitos usuais, ao dissipar as pobres convicções que os induziam, ele conduzirá o interlocutor da incultura até o saber absoluto. Essa é a paidéia presente tanto na alegoria da Caverna quanto na Fenomenologia. E esse esquema pedagógico é responsável por grande parte do êxito da dialética, pois se adequa de modo admirável ao espírito de uma “filosofia” convertida em disciplina universitária. Há um bom

tempo os velhos “sistemas filosóficos” deixaram de atrair professores e estudantes, tendo sido deixados de boa vontade à dissecção dos his­ toriadores estruturalistas. A dialética, por outro lado, conserva seu poder de sedução. Quaisquer que sejam as dificuldades acarretadas aos discípulos pelos “ longos desvios” platônicos ou pelas reviravoltas hegelianas, elas também lhe trazem a certeza de que esse árduo périplo será recompensado e que ele já se encontra no caminho do saber, que sua ingenuidade inicial já ficou longe atrás de si. Desse modo, a dialética (assim como, é verdade, a fenomenologia) sustenta a convicção, que não deve desgostar ao filósofo-aprendiz, de que a aquisição do “saber filosófico” exige que se tome distância frente aos saberes “ingênuos” que nos satisfizeram até então. Os ho­ mens, assegura-nos o dialético, nunca souberam dizer o que era o Justo, o Belo, o Piedoso... E eu lhes dou os meios para que realizem bem essa investigação. Pois, enfim, por que o Belo, o Justo, o Pie­ doso . . . deveriam poder ser determinados no absoluto? Do simples fato de pensar que existam essências e que elas sejam formuláveis, poderíamos muito bem sucumbir à pior ingenuidade, à qual somos conduzidos, precisamente, pelo emprego irrefletido da linguagem. Os homens não sabem, literalmente, o que dizem: este é o ponto de par­ tida do dialético. Mas, é isso o importante? Talvez o que importa seja que os homens consideram as palavras como instrumentos teóricos, deixando assim aos filósofos o cuidado de estipularem o “conheci­ mento” contido em tais sinais. Dessa superestimação da linguagem, dizia Berkeley, nascem os problemas filosóficos: “ nós mesmos levan­ tamos a poeira e depois reclamamos de que nada conseguimos ver”. Essa frase assinala uma linha divisória entre os filósofos. Ou bem continuamos a acreditar que existe algo para se ver atrás da nuvem de poeira, e que a "razão”, empregada de modo conveniente, pode nos colocar em presença das “próprias coisas” . . . ou, então, não nos arriscamos mais a “levantar a poeira” e, recusando a herança dos clássicos gregos, procuramos apenas desmontar as armadilhas que nos coloca todo logos. Não é certo que este outro modo de pensamento seja outro modo de “filosofar”, visto que implica a dissolução das ilusões que tomaram possível o advento de uma “filosofia" que se considerava como o saber supremo (pense-se em Nietzsche, mas tam­ bém em Schopenhauer e em Bergson). Em todo caso, ele faz surgir questões desrespeitosas. Afinal, era o bom senso dos atenienses tão desprezível quanto dizia Platão? É tão evidente assim que a atitude de “entendimento”, da qual Hegel nos liberta, nos confina em certe­ zas abstratas?

líssas questões não se colocam quando estamos presos ao jogo da dialética. Desnecessário dizer, portanto, que, para nós, o “enten­ dimento” fixou indevidamente as significações e introduziu oposições falaciosas. E, sobretudo, não mais sonhamos em examinar o valor dos conceitos conforme nos foram transmitidos pela tradição. Nossa tarefa é somente fazer com que se dissolvam e, com isso, reaver sua “ver­ dade’', assim como a tarefa de Sócrates, nos diálogos, é desmontar os argumentos de modo a provocar, naqueles que os sustentam, o senti­ mento de seu não-saber. Essa busca exclusiva da “ verdade” nos dis­ pensa de qualquer reflexão prévia sobre o sentido usual das palavras. Por que este conceito está marcado desse modo? Por que o uso desta palavra prevaleceu sobre ele? Hegel deixa ao filólogo, ao historiador do fortuito, essas questões indignas da filosofia. A dialética nos afasta dessa curiosidade filológica, pois supõe que os homens sempre falaram de uma ou outra maneira. Nada se pode esperar dessa micrc história, a filologia, quando se trata de fazer surgir o conceito da coisa, e a dialética, de modo mais geral, faz apenas com que voltemos as costas aos historiai, isto é, às investigações positivas. Nasce assim um dogmatismo mais insinuante do que aquele que procede por Axiomas e Teoremas e que, melhor do que este, nos assegura que só depende de nós fazer com que se manifeste o discurso da Verdade. Refúgio ines­ perado para a teologia. Não há dúvida de que poderíamos observar que, ao se contestar desse modo a pertinência da dialética, acaba-se lançando suspeitas sobre todo o empreendimento filosófico. E por que o negar? Se en­ tendemos por "filosofia” a atividade de pensamento que, por seus próprios recursos, deveria nos fornecer um regramento definitivo dos conceitos abstratos, sim, é da filosofia que desconfiamos, e especial­ mente de sua pretensão (dialética ou fenomenológica) de ultrapassar em rigor ou pelo menos rivalizar com as disciplinas formais. No en­ tanto, por qual obstinação léxica deveríamos vincular a sorte da filo­ sofia à crença na existência de um iogos que seria determinado em última instância por um método dado? Por que deveria a filosofia, para merecer crédito, tomar o lugar, doravante vago, da teologia? Filosofar poderia muito bem consistir em interrogar a experiência que temos das palavras, e em restituir a suas diversas origens as signifi­ cações cuja verdade os filósofos pretendem reencontrar com um “dis­ curso sério”. Não mais explicitar o sentido (que, desde sempre, espe­ rava ser enunciado), mas investigar os acasos de sua formação. Esse é o espírito com que tentamos, aqui, analisar alguns temas hegelianos, simplesmente para mostrar que a dialética permanece ine­

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vitavelmente presa a certas escolhas semânticas. Quando submetida a esse tipo de exame — que, bem entendido, ela recusa por princípio — percebemos que sua radicalidade é apenas aparente, visto que ela realizou, sub-repticiamente, uma bem determinada flexão em seus con­ ceitos, em vez de extirpar todo pressuposto com seu mero exercício. Percorrer essa dimensão é descobrir que há um ponto de vista a partir do qual a razão hegeliana se expõe ao mesmo tipo de crítica que ela própria dirige sem cessar ao “entendimento”. É começar a desvendar o avesso da dialética. Ela também é parcial. Ela também oculta seus pressupostos. Ela não é o metadiscurso que pretendia ser em relação às filosofias de “entendimento”. De onde viria essa afinidade entre a razão especulativa, a des­ peito de sua pretensão subversiva, e o que ela denomina "entendi­ mento”? Para compreender isso, lembremo-nos de que o “entendimen­ to” é o nome, com freqüência pejorativo, que Hegel dá à “ razão” dos clássicos, compreendida como faculdade de descoberta e de possessão de princípios. Kant, em certo sentido, manteve essa “razão” em seu lugar, ainda que mostrando, é verdade, sua incapacidade de nos pro­ porcionar, por si mesma, qualquer conhecimento, e que sua operacionalidade se restringe a uma área estreitamente delimitada, ali onde (sob o nome, precisamente, de “entendimento”) ela apenas articula a intuição sensível. Quando opera como razão stricto senso e nos aguiIhoa em direção ao incondicionado, ela não pode ser mais do que uma fonte de dissabores: a história da metafísica basta para indicar isso. O pós-kantismo, como se sabe, restituiu os direitos dessa “razão” que Kant havia criteriosamente distinguido do entendimento, mas que havia caluniado de modo desastroso, pelo menos enquanto razão teó­ rica. Vítima de seu preconceito em favor do "entendimento” (em certo sentido, desde então, pejorativo), Kant não havia feito justiça à na­ tureza da razão. A velha metafísica certamente não tinha mais motivo de ser: nesse ponto, o diagnóstico kantiano era justo. Mas o saber absoluto, longe de ter se tornado impossível, podia enfim tomar im­ pulso, pelo fato de que a razão cessava (graças a Kant) de ser con­ fundida com o entendimento, e o saber filosófico com as ciências positivas. No fim das contas, o sismo kantiano colocou a descoberto, de modo inesperado, o saber absoluto, que os maiores pensadores “dogmáticos” haviam apenas anunciado vagamente. Kant havia assi­ nalado o final desses ensaios infelizes. Mas, sobretudo, havia liber­ tado, e disso não tinha dúvida, o local do verdadeiro saber de si da razão. Entre os “dogmáticos” (no sentido de Kant) e Hegel, existe, portanto, em comum, essa convicção de que a razão não é uma facul15

dndc apenas encarregada de formar os conceitos, mas um poder de conhecimento original. Esse ponto, aliás, não havia sido contestado por Kant. .Ele havia simplesmente negado que o homem, ser finito, pudesse conhecer algo por meio da razão pura. Mas admitia a validade desse modo de conhecimento para seres constituídos diferentemente... Essa confiança no poder original da razão não basta, certamente, para caracterizar a dialética hegeliana. Mas pode nos oferecer uma pista que nos permitiria contornar esta última. A hipótese é a seguinte. Se o sistema hegeliano é vulnerável, isso não se deve a seu dogmatismo (no sentido comum) nem a seu idealismo, ou, ainda, ao fato de que Hegel teria tratado superficialmente as ciências de sua época. Para encontrar a falha na couraça, precisamos nos convencer de que toda crítica a Hegel é vã, se se começa por aceitar a razão como uma fonte de conhecimentos por meio de meros conceitos. Pouco importa, assim, que acusemos Hegel de dar uma imagem deformante, ou mesmo ca­ ricata, dessa razão pura. Pois, enquanto nos mantemos nessa posição — que o enorme impacto de Kant, diga-se de passagem, abalou menos do que poderíamos crer — , o sistema hegeliano permanece inexpug­ nável. Podemos muito bem acusá-lo de charlatanismo, mas não o re­ futaremos. . . Isso se passa de outro modo, contudo, se o exame do hegelianismo é comandado pela exigência de se colocar em questão a própria noção de um conhecimento pela razão pura (em vez de criticar o alcance desta, como o fez Kant). Desde logo, a aposta se torna tudo ou nada, pois já não se trata mais de refutar. “ Não se refuta uma doença dos olhos”, dizia Nietzsche a propósito do cristianismo; mas também poderia ter dito isso a respeito de toda a filosofia. Não se refuta um "sistema de razão”. Tudo o que se pode fazer, é reencon­ trar, bem ou mal e por subterfúgios, as escolhas léxicas nas quais ele se baseou e que traduzem, sem margem de dúvida, tomadas de posi­ ção eminentemente infra-racionais. Nem mesmo diremos (ou não dire­ mos, sobretudo) que o avesso da dialética é uma ideologia, pois o próprio emprego dessa palavra ainda supõe a crença em uma “razão” canônica, passível de deformação ou confusão. Mais vale falar de uma estratégia filológica inconfessa, conveniente como resposta a certas exigências vitais de ordem e de segurança. É dessa estratégia que ten­ tamos recuperar alguns momentos. Pelo menos, essa é a direção para a qual apontam esses textos. Devo confessar que era outro o projeto inicial: tratava-se de testar a dialética com a ajuda de analisadores emprestados a Nietzsche. Isso teria resultado em outro livro, destinado tanto à releitura de Hegel quanto à verificação da confiabilidade dos conceitos nietzschianos.

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Mas não teria sido também um livro fora de prumo? Foi a conclusão a que cheguei, por diversas razões. Primeiro, Nietzsche não conhecia Hegel o suficiente para que essa investigação fosse justificada. Segun­ do, o leitor poderia imaginar que minha intenção fosse apresentar Nietzsche como vencedor por pontos num pugilato. Por fim, podemos encontrar em outras partes, além do Zaratustra, o tipo de desconfiança que tentamos despertar aqui em relação a Kant e Hegel. Por certo, é a contribuição de Nietzsche à qual me refiro nestas páginas, com o objetivo de determinar os parti pris contidos no texto de Hegel — e são alguns aspectos de sua “grande suspeita” que tento retomar. Mas a leitura de outros grandes autores poderia igualmente nutrir uma suspeita bastante próxima: Berkeley, Hume, Schopenhauer, Bergson. Isso eu apenas compreendi após ter escrito estes ensaios. A ponto de ter me censurado um pouco por haver abandonado estes últimos auto­ res por tempo demasiado enquanto estudava outros que não faziam “meu gênero” — seja dito para pastichar Proust. Não se veja presunção nem desrespeito nessa confissão. Nem por um instante sonho em desviar alguém da meditação de Kant ou de Hegel. Guardemo-nos apenas de esquecer, ao lê-los, que a “ razão”, o "Conceito”, a “ Idéia” são palavras que indicam, também, certas acei­ tações e certas recusas. Sim, guardemo-nos de ler essas palavras como se elas não tivessem uma face oculta.

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I A VERDADEIRA TEODICÉIA

Antes de tudo o mais, devemos saber o que é Deus, tal como Ele se revelou na religião cristã. Os que nada sabem de Deus recebem, na Bíblia, o nome de gentios. O Deus cristão é O que se revelou aos homens. Não é a moral que constitui o que há de mais elevado no cristianismo, pois também os gentios se caracterizaram por uma grande elevação moral. Nós temos de conhecer o que é o agir de Deus; senão, seremos como os atenienses, que ergueram um altar em honra do deus desconhecido. Hoffmeister, Ph. Geschichte, p. 261.

“Na História-Mundial, somente podemos considerar os povos que constituem Estados.” Essa frase de Hegel1 já foi lida como se indicasse que a formação dos Estados modernos seria o objetivo da História — cuja missão estaria cumprida uma vez realizado esse fim ... Mas a relação entre a História e os Estados singulares que a pontuam não é tão simples assim: se é certo que o Estado é a realização “ terrena” da liberdade, que se elabora no curso da História, resta porém que os Estados, enquanto instâncias singulares e finitas, necessariamente se mostram inadequados ao movimento da História. À primeira vista, esta tese pode parecer abstrata. Tentemos esclarecê-la, para começar a determinar o que há de específico na Necessidade * histórica hegeliana. (*) Para deixar clara a distinção em francês dos significados de besoin (exigência nascida da natureza ou da vida social; estado de privação, falta, carência) e de nécessitê (obrigação ou coerção inelutável, encadeamento neces­ sário na ordem das razões ou das matérias — eventual mas raramente também um besoin imperioso), foi utilizado, na tradução de ambos os termos por “necessidade”, o recurso da inicial minúscula para a primeira acepção e da maiúscula para a segunda. (N. T.)

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Sendo a História a formação do Espírito sob a forma do advir [Geschehen], da realidade natural imediata, nela os graus da evolu­ ção são princípios naturais imediatos, e, sendo naturais, estão dis­ persos enquanto pluralidade, de modo que, além disso, a cada povo caiba um de tais graus: s u p existência geográfica e antropológica.2

Assim, a História-Mundial explicita a finitude que jaz no cora­ ção de cada povo, enquanto individualidade natural, ao passo que a organização estatal contribui, ao contrário, para obscurecer essa fini­ tude. Nesse sentido, podemos dizer que a História trabalha ao avesso da estatização. Um povo, mesmo depois de se organizar enquanto Estado, continua às voltas com a natureza ou com os povos vizinhos, e é por isso que ele é propriamente histórico: porque o fato de se entregar a tais acasos já o expõe ao envelhecimento, à morte. Tanto quanto os indivíduos, os povos também estão sujeitos ao destino bio­ lógico, também comprovam “a impotência da vida”.3 E é por isso que o desenvolvimento de um povo nada tem a ver com o desenvol­ vimento do Espírito, pois o Espírito não morre de morte natural; sua “ velhice” é maturidade, não senilidade.4 Por isso, sua “evolução” não admite nenhuma comparação biológica ou, mais geralmente, intramundana. Hegel acrescenta que o Espírito, na História-Mundial, se retoma "apagando sua própria mundanalidade”.5 O que, exatamente, quer ele dizer com isso? Para o entendermos, precisamos nos reportar ao sentido original que a “finitude” adquire quando é “finitude do Espírito”. Se a consciência se diz “finita” na medida em que se refere a um objeto, já o Espírito é “finito” na medida em que contém uma determinação que não foi posta por ele — ou seja, enquanto ignora que o elemento no qual vive foi criado por ele mesmo. Enquanto não se torna livre. I . . . ] É para o Espírito livre que o próprio [Espírito] produz, a par­ tir de si mesmo, as determinações do objeto que se desenvolvem e transformam — que o próprio [Espírito] torna objetiva a subjetivi­ dade, e subjetiva a objetividade. As determinações que ele conhece habitam o objeto, é verdade, mas ao mesmo tempo é certo que foi ele quem as pôs. Nele, nada existe que seja exclusivamente ime­ diato.6

Se é este o Espírito em sua liberdade, entende-se que o Espírito de um povo jamais possa se libertar por completo: um povo sempre age com base em dados que não escolheu, e que limitam nessa pro­ porção a explicitação de seu princípio (é por isso que o fato de “ser a Inglaterra uma ilha” determina a história inglesa, porém não dá

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razão de seu lugar na História-Mundial). Acrescentemos que Hegel submete o saber-de-si a um nível tão alto de exigência que fica impos­ sível que o Espírito de um povo consiga apreender algum dia, “o em-si e o para-si de sua razão”. Saber-se significa ter consciência de que todas as determinações próprias simplesmente constituem meios a ser­ viço da auto-revelação do Espírito — e o Espírito de um indivíduo geográfico não pode chegar a essa consciência de uma autoprodução integral. Somente pode chegar a tanto o Espírito que se libertar de sua forma limitada, que recusar toda possibilidade de fixação defini­ tiva, em qualquer entidade que seja. É por isso que Hegel enfatiza, com freqüência, que o Espírito tanto é inscrição numa figura finita quanto permanente apagamento dessa mesma figuração.7 O movimento do Espírito consiste, pois, em furtar-se perpetua­ mente a si mesmo, enquanto se finitiza, em renegar suas próprias fixa­ ções. E por aí compreendemos o que irá distinguir a historicidade e evolução orgânica: esta é elaboração de si por si, tendo a forma da calma diferenciação de um princípio; naquela, ao contrário, “o Espí­ rito opõe-se a si em si mesmo; é ele que constitui o verdadeiro obstá­ culo que ele próprio tem de vencer; se na natureza o desenvolvimento é uma produção [Hervorgehen] pacífica, no Espírito ele é um com­ bate árduo e infinito contra si mesmo. O que o Espírito quer é atingir seu próprio conceito, porém é ele mesmo quem o oculta a seus olhos [. .. ] ” 8 Esse tema ressurge na idéia revolucionária de uma sub­ versão integral e interminável das condições de existência (“Escavas fundo, velha toupeira...”), mas que, para Hegel, não passa de co­ mentário à noção de manifestação (Offenbarung), quando esta é pen­ sada no máximo de sua pureza: o Espírito, manifestando-se, não revela algo que teria ficado no escuro — longe de constituir mero interme­ diário, de ser figurativo, ele é a contínua supressão de toda figura na qual poderíamos sentir a tentação de hospedá-lo.9 Se assim não fosse, se o Espírito não colocasse sempre cada uma de suas criações como uma nova matéria (Stoff) a que se opõe, a que deve transformar, seu movimento não seria infinito: ele bem poderia “aquietar-se” (befrie­ digen) numa de suas produções — e assim poderíamos conceber a possibilidade de uma fixação privilegiada, de um povo eleito. E, com isso, a História deixaria de ser V/ELT-Geschichte, História-Mundial, isto é, refutação necessária de uma soberania por outra, de um impé­ rio por outro. Melhor ainda: todo vetor que quiséssemos dar à evolu­ ção, toda razão que alegássemos para a Grécia ter sucedido à Pérsia, e Roma à Grécia, incorreria na suspeita de não passar de uma maneira pedante para esconder o fato de que só existem deslocamentos con-

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tingentes de uma formação a outra. . . Para que seja de outro modo, é preciso então que a sucessão histórica não se funde mais nos Espí­ ritos particulares, porém em seu apagamento. O “progresso”, então, não significa que determinado Volksgeist foi atingido (pois seria im­ possível provar que ele é superior aos que o antecederam), porém simplesmente que determinado Volksgeist foi eliminado, que foi reco­ nhecida sua insuficiência específica — e que o Espírito deu, portanto, mais um passo. Se temos a certeza de que o progresso não é repeti­ tivo, porém explicitador, é porque o Espírito não se autoproduz pro­ duzindo suas formações finitas, mas no gesto contrário, no de renegálas uma após outra. Não é o poderio dos impérios, mas sua morte, que dá a “razão” da História. O sucessivo desaparecimento dos impérios, e não o quadro de sua sucessão, como tema da História: é esta a condição, no entender de Hegel, para que a História seja um sistema descrevendo a neces­ sidade absoluta de um desenvolvimento, pois só há desenvolvimento necessário quando o devir é manifestamente outra coisa que não uma mera passagem. E é por isso, em contrapartida, que “a natureza orgâ­ nica não tem História". Essa fórmula da Fenomenologia é menos banal do que parece à primeira vista, desde que a recoloquemos em seu contexto: o da crítica das taxionomias. Ela não quer dizer que a sucessão monótona dos indivíduos biológicos é incompatível com toda narração de res gestae, mas que a sucessão das figuras orgânicas so­ mente pode ser articulada por um “movimento contingente” — que portanto essas figuras não se prestam a nenhuma sistematização exaus­ tiva, a nenhuma determinação integral (as variedades de uma espécie poderiam ser outras, ou mais numerosas. . .), e que no reino orgânico é impossível encontrar o equivalente de uma Weltgeschichte, isto é, da “vida do Espírito que se ordena até dominar o Todo” .10 Em outras palavras, o que dá originalidade à Weltgeschichte não é, de forma alguma, a contingência e a imprevisibilidade das mutações, nem os lances da sorte que a atravessam, porém, muito ao contrário, a pos­ sibilidade de uma inteligibilidade integral, de que jamais serão capa­ zes as figuras orgânicas. Para uma canônica de Entendimento isso constitui, é óbvio, um paradoxo que já frisa o absurdo. Mas não é precisamente um sinal da miopia do Entendimento o fato de que ele pensa todo “sistema” à imagem de um “quadro da Natureza”, a so­ brevoar formas simplesmente dispersas? Ao passo que o único Sistema capaz de dar conta do lugar e função de cada formação é o que re­ colhe as formas desaparecidas em um “reino dos Espíritos” — e não uma organização, inescapavelmente artificial, de formas externas umas

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às outras. .. O que significa que o único tipo de devir a desposar o movimento do Conceito nada tem em comum com a transição indife­ rente de uma forma a outra: só pode ser um devir que endosse a instabilidade da figura que ele acaba de transgredir — um devir expressamente nadijicante. É por isso que a História só constitui sub­ vertendo: porque nela o caráter necessário do Conceito se impõe em estado puro. Se a natureza o máximo que pode é "exprimir”, “pres­ sentir” ou ainda "adivinhar” o Conceito, a História o expõe enquanto tal. Ou, ainda: ela é “realização da Idéia”. Sob a condição de não imaginarmos que se trata de uma Idéia platônica apoderando-se, gra­ dualmente, do mundo. “ A Idéia realizar-se” quer dizer que o Conceito deixou de se ocultar, que ele não se inscreve numa exterioridade na qual a duras penas tentaríamos divisar seus vestígios — mas que a objetividade só o exibe no ato de desaparecer. O devir histórico men­ cionado na filosofia da História não passaria de uma trivial imagem mobilista, se ele não fosse a ilustração da relação original que a Idéia tem com sua objetividade, como vemos analisada no final da Lógica: a única “objetividade” que convém à Idéia é a que se suprime. Enquanto objetividade, ela traz consigo o momento da exterioridade do Conceito: ela é pois o aspecto da finitude, da alteração, do fe­ nômeno, encontrando, no entanto, precisamente, seu desaparecimento no fato de retornar à unidade negativa do Conceito [ . . . ] Ainda que a Idéia tenha sua realidade numa instância material [M ateriatur), esta não é um ser abstrato, consolidado perante o Conceito; ela é apenas devir [nur als Werden], simples determinação do Conceito mediante a negatividade do ser indiferente.11

O devir histórico, portanto, não é mais o transcorrer das coisas, o passar do tempo, porém a abstração do finito que se suprime. É pois numa objetividade em devir, que se abole e recolhe nele, que o Con­ ceito se manifesta sem equívoco — e não quando penetra num ele­ mento que se conserva estranho a ele. Pois nesse caso ele não age mais como arché no sentido forte do termo: archein é transmitir a força sem precisar se deslocar, é dominar uma realidade sem ter de "passar” nela * (tornaremos a encontrar esse tema no âmago da filo­ sofia do Estado). Do Conceito, é lícito afirmar que ele “passa à reali­ dade”, mas "é de modo que ele a engendre, não de modo a retornar a uma realidade já disponível e existindo fora dele”,11 O Conceber (*) A regência verbal não usual em português (passar em no lugar de passar a) é proposital, como o leitor notará pelo sentido que assume o verbo. (N. T.)

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não é, absolutamente, como uma autoridade que viesse submeter um elemento rebelde — e é pelo fato de o neoplatonismo ter rompido com essa representação formalista que Hegel veio a exaltá-lo como uma “mudança radical” no filosofar grego. Decorre, dessa convicção especulativa, a recusa de toda epistemologia que se resigne a princi­ piar de uma separação entre forma e conteúdo. Conceber não é fazer aumentar o domínio da forma; não é melhorar o código, introduzir um pouco mais de ordem no fenômeno. Os classificadores bem po­ deriam ter êxito em sistematizar, com meticulosidade crescente, as formas zoológicas e botânicas; mas com isso tudo o que fariam seria mostrar um pouco melhor como o Conceito se propaga numa objeti­ vidade que não foi criada por ele — não daríamos um passo sequer rumo à compreensão de como ele se move. Ao contrário: até aumen­ taria a tentação de representar o Conceito como um universal tão poderoso que pode ser reconhecido de alto a baixo na escala dos seres,13 Certamente é este o ideal de inteligibilidade que governa os saberes chamados por Hegel de “representativos” ou “positivos”. E também a história dos historiadores procura fornecer esse tipo de compreensão: “ igualmente a história pode ser compreendida e narrada de modo que, nos acontecimentos singulares e nos indivíduos, trans­ pareça [hindurchleuchtet] sua significação essencial e sua necessária conexão”.14 O historiador tem todo o direito a proceder dessa forma, porém sua metodologia continua sendo pré-conceitual: consiste em referir o acontecimento ou instituição singular a um invariante que, quando muito, permite restringir ao máximo sua fortuidade, Ora, a Necessidade do Conceito é completamente diferente. E é por isso que, quando se trata da “escrita-histórica”, Hegel parece preferir a simples narrativa, “a intriga” — como diria, hoje, Paul Veyne — , a uma história erudita, “refletida”, que traz sempre em seu bojo o risco de não passar de uma exposição pedante e estéril, porque parte do falso princípio segundo o qual mostrar o funcionamento da Necessidade é reduzir o espaço ocupado pela contingência. Ora, a dialética hegeIiana, nesse ponto, encontra-se a mil léguas de nossas ciências huma­ nas; é, na sua essência, anti-sociológica: a Necessidade, tal como ela a entende, não tem de superar ou contornar a contingência do con­ teúdo histórico, não tem de obrigar com toda a força o sublunar a exibir um pouco mais de regularidade. É por isso que, se temos de escolher, mil vezes Walter Scott, antes de qualquer livro de sociolo­ gia. . . A verdadeira compreensão histórica jamais se alcança contra a contingência e a suas expensas. É o que afirma esse texto metodo­

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lógico da Enciclopédia, que deveria ter cortado pela raiz tantas repre­ sentações sumárias do que seria a Necessidade histórica para Hegel. Ainda que a contingência não passe de um momento unilateral da realidade e não deva ser confundida com esta, ela tem contudo um direito no mundo objetivo, enquanto forma que é da Idéia. Isso se aplica, em primeiro lugar, à natureza: a contingência se mostra por assim dizer livremente, na sua superfície, e isso temos de reconhe­ cer, a despeito da pretensão errônea de alguns filósofos, para os quais as coisas só podem ser de tal modo e de nenhum outro. Porém a contingência também pode ser reconhecida no mundo espiritual [. . .] Quando se trata do Espírito e de sua ação, devemos tomar cuidado para que não nos induza em erro o impulso bem-intencionado do conhecimento racional, que bem gostaria de apresentar como necessários fenômenos que são apenas contingentes — ou, como se diz, gostaria de construí-los a priori f. . .j É verdade que a Ciência e a filosofia têm por tarefa conhecer a necessidade por sob a capa da contingência. Contudo, disso não devemos inferir que o contingente resulta de nossa representação subjetiva, e que portanto basta afastá-lo para alcançar-se a verdade. Quando a Ciência, mo­ vida por esse impulso, segue unilateralmente uma tal direção, então justifica a crítica de ser ela um jogo gratuito, um pedantismo estéril.15

De resto, o historiador, se quisesse a todo custo achar sentido às custas do acidental, estaria trocando de gênero, pois confundiria his­ tória e poesia. Aristóteles já observava isso na Poética: compete à poesia, não à história, ordenar as ações e situações com base num universal. E Hegel repete quase com as mesmas palavras essa distin­ ção entre conteúdo poético e conteúdo histórico. O poeta tem o dever de transformar o individual em tipo; mas esse direito o historiador não possui, pois, por sob o tipo substancial que pode orientar sua explicação, ele não demora a encontrar o formigar dos acontecimen­ tos que se furtam a toda e qualquer conexão (ohne inneren Zusam­ menhang). Se desprezasse esse elemento acidental e se ativesse apenas ao que pode ser unificado por um sentido, ele desconheceria a espe­ cificidade do gênero que está praticando.'6 Mas, disso, segue-se que devemos dar razão a Aristóteles quando este afirma que a poesia é “mais filosófica” do que a história? é evidente que não. Se o indi­ vidual que interessa ao historiador escapa em tão grande medida à dominação do eidos, não cabe porém concluir que o histórico seja apenas o mais baixo grau do sublunar. Por que Aristóteles pensou assim? Por que, seguindo-o, a tradição dita “racionalista” identificou sem maiores formalidades Geschichte e

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Historie, compreensão do passado e cronologia dos acontecimentos? Porque ele e ela caíram na cilada de uma alternativa simplória, uma dessas alternativas do Entendimento: ou as propriedades de um con­ teúdo podem ser deduzidas de um universal ou resultam do jogo das causas externas — e, como este é o caso do conteúdo histórico, ele só pode ser relegado ao campo do factual, do événementiel, abando­ nado pois aos caprichos da tuché. . . Na base da desvalorização do objeto histórico temos, pois, apenas um ideal bastante limitado de inteligibilidade — um ideal dominado pela oposição abstrata de dois pólos: epistemé/doxa. “ Saber”, assim, significaria sempre pôr a acidentalidade em xeque, de algum modo, ou fazê-la recuar: abstrair seria o mesmo que expulsar o inessencial — compreender, expelir o fortuito. Mas, assim, o Entendimento também reconhece o ser positivo e indelével disso que ele expulsa.17 Consegue mais uma vitória sobre o sublunar, conquista-lhe mais uma província, porém apenas para confirmá-lo, afinal, em seus direitos. Ora, ao contrário dessa epistemé voluntarista e conquistadora, o movimento do Conceito não faz avan­ çar a razão nem recuar o acaso: deixa que este se negue, que o inessencial se confesse como o que é. Assim, Hegel pode a um só tempo reconhecer a contingência intrínseca do conteúdo histórico e fazer da Weltgeschichte a curva da Necessidade — porém da Neces­ sidade nadificante, que nada mais tem a ver com a progressiva impo­ sição de uma figura de sentido. Não fosse assim, que inconseqüência seria um pensador da Necessidade histórica proclamar, alto e bom som, que a História-do-Mundo não se repete, que é risível considerá-la um campo de experiências e que jamais houve “lições da História”. Se o pensamento hegeliano da História-do-Mundo se inspirasse em alguma intenção epistêmica, que absurdo seria. . . Porém, se admiti­ mos, com Michel Serres, que a epistemé clássica consiste em assumir quer um espaço de jogo (Leibniz), quer um adversário de jogo (Des­ cartes versus o Gênio Maligno), veremos com nitidez que o movimento do Conceito nada tem que se possa comparar com uma epistemé, pela simples razão de que ele se situa fora de qualquer jogo.ig Daí a estra­ nheza desse discurso sobre a História tão afastado da sociologia quanto da crônica — a estranheza, igualmente, desse “objeto” que ele cons­ titui: nem região epistemológica, nem tema de narrativa. Dizer a His­ tória não é dissolver sistematicamente o factual nem assumi-lo: é compreender o factual como uma dissolução necessária.

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Assim podemos entender melhor por que o Conceito jamais se fixa em qualquer formação particular que seja — povo ou Estado. Um Estado determinado pode, no máximo, dedicar-se à realização de seu princípio — e tal operação, localizada e finita por definição, não pode coincidir com a atividade infinita, portanto unicamente dissol­ vente, do Espírito-do-Mundo. Ela visa, ao contrário, a retardar essa dissolução, a prolongar o máximo possível uma particularidade que o Espírito deve destruir para se realizar. De modo que a palavra atividade (Tätigkeit) não detém o mesmo sentido quando designa o trabalho do Conceito e o fato de um povo, ou Estado, perseguir um interesse histórico determinado. Entre a atividade nadificante do Es­ pírito-do-Mundo e a conservação em seu ser de cada um dos Espíritos particulares, existe por definição uma defasagem: do ponto de vista da História-do-Mundo, os Estados não passam de momentos evanescentes. Acerca desse ponto, que é fundamental, basta comparar as últimas páginas da Filosofia do Direito com as páginas finais do texto sobre o Direito Natural para se medir a evolução do autor — ou, mais exatamente, a mutação a que ele submete o conceito de História, ao deixar de pensá-lo em função da “bela vida ética”, para compreen­ dê-lo em função do “Estado moderno”. No Direito Natural a ênfase está na adequação de cada ethos ao Espírito-do-Mundo, na vitalidade de cada qual e não na sua finitude — e Hegel denuncia a idéia de uma “não-concordância do Espírito absoluto com sua figura [Nicht­ übereinstimmung] ”.19 Um ethos se constitui organizando as condições geográficas históricas que lhe são dadas — penetrando-as, “vivificando-as”. Cada um deles é pois mais uma estase do que um momento do Espírito-do-Mundo. “ [ ...] Em cada figura o Espírito-do-Mundo tem uma sensação de si mais surda ou mais aguçada, porém sempre absoluta, e em cada povo, sob cada conjunto de costumes éticos e leis, sua essência, e nela ele desfrutou de si mesmo”.20 E o texto ter­ mina com a enigmática menção à "figura absoluta” na qual a Idéia da vida-ética deverá realizar-se — forma esta que não pode ser “nem a falta-de-figura do cosmopolitismo. . . [nem] a vacuidade de um Estado internacional e da República mundial”.21 Parece então, com base nessas páginas, que a realização da Cidade orgânica será a única tarefa que a História deva cumprir. Por isso, o Espírito-do-Mundo é apresentado como totalizador, e não como negador, de seus momen­ tos: sua pulsação ainda não é histórica. Para que se torne tal, certa­ mente precisará, como afirma Bernard Bourgeois, que o curso do tempo apareça “como um processo criador de autodiferenciação de si”.22 Mas essa criatividade não estará mais ordenada face a qualquer 27

obra determinada, a qualquer objetivo finito (realização da vioa-ética, ou Estado perfeito). Pois, ao contrário da historicidade organicista, a História-do-Mundo se limita a fazer justiça, sem nada elaborar, além do sentido. .. Vamos reler a página na qual o Estado é apresentado como a realização terrestre da liberdade, do “fim-supremo-absoluto” cujo desdobramento é a História:23 poderemos constatar que Hegel não diz que a constituição dos Estados é o fim visado pela História, e que ele evita representá-la como uma prática finalizada. Se utiliza o termo “fim-supremo” (Endzweck) a propósito do Espírito-do-Mundo, ele não apresenta esse “fim-supremo” como um objetivo a atingir.24 Não exis­ te “fim-supremo” da História que se assemelhe, sequer de longe, ao que pôde ser sonhado por conquistadores ou fundadores de impérios — nem existe nada, ao termo desse singular percurso, que possa sa­ tisfazer a curiosidade dos que perguntam “para quem, para que fim [se fazem] sacrifícios tão imensos”. Em suma, o fato de ser “a ver­ dadeira teodicéia” não faz da História-do-Mundo uma super-“intriga” — daí, a severidade de Hegel para com o providencialismo antropomórfico de Görres.25 Daí, acima de tudo, sua convicção de que a His­ tória propriamente dita somente se deixa vislumbrar nas épocas de crise e de "colisões”, quando a referência às normas éticas e morais se toma vã e os objetivos finitos dos homens se vêem submergidos por uma situação nova. £ somente então que surgem possibilidades propriamente históricas: “tais possibilidades contêm um universal de uma outra espécie [ein Allgemeines anderer Art] do universal que forma a base consistente de um povo ou Estado; esse universal é um momento da Idéia produtora”.26 Os “grandes homens” se improvisam como intérpretes dessas possibilidades novas. E as páginas dedicadas ao papel dos “grandes homens” são exemplares para mostrar como a Necessidade histórica, tal como Hegel entende, não apenas rompe com qualquer epopéia providencialista, como ainda escapa a todas as redes demasiado humanas nas quais seriamos tentados a inscrevê-la, a lê-la. Com efeito, a existência dos “grandes homens” documenta a defasagem entre a História e a instituição. “ Empresários do gênio do mundo", “ indivíduos da História-do-Mundo”, eles somente aparecem quando há grande subversão — passagem de uma ordem instituída a outra, destruição e fundação de impérios. “ [ ...] Eles haurem seus fins e vocação não apenas do transcurso pacífico das coisas, ordena­ do, santificado pelo sistema vigente [das bestehende System] [. . . ] mas do Espírito interno, ainda subterrâneo”.27 Assim, mesmo que eles fundem ou dirijam um Estado, sua ação ultrapassa a esfera do Estado — e é por isso que devemos dizê-la heróica. Pois a era heróica é a

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era “pré-legal”, a idade anterior à era prosaica do Estado (staatslose Zustand), e propícia à eclosão das individualidades geniais.28 Ora, o “grande homem”, nisso igual aos heróis míticos ou trágicos, escapa aos critérios de toda moralidade constituída. Se realiza o universal, é por vocação, não por obediência — e deve apenas a si mesmo a lei que o governa. Enquanto no Estado, onde o universal reina a céu aberto, onde “a vitalidade do individual parece suprimida, ou secun­ dária, ou insignificante”, o “grande homem” marca o ressurgimento do indivíduo pré-estatal — do indivíduo substancial que não está submetido ao universal, porque ainda não se separou deste. . . Seria um grande erro imputar-se a alguma nota “romântica” (bastante rara no autor) essa interpretação do homem histórico. É mais correto dizer que ela é a contraprova da convicção de que a História-do-Mundo e a sucessão dos Estados são coisas muito diferentes. Por sob a historicidade estabilizada no Estado, há pois a historicidade subterrânea e subversiva, a História-do-Mundo, que sempre termina por refutar o instituído — e é dela que as individualidades históricas são como que os mandatários. Podemos indagar, é verdade, se esse mandato que o Espírito-doMundo lhes confere não reduz a uma simples aparência a genialidade dos “grandes homens”. Pode-se dizer que são, mesmo, responsáveis pelo que fazem? E, se têm faro para “as coisas cuja hora chegou”, não será sinal de que são inspirados, mais do que heróis? “Eles pare­ cem [scheinen] haurir sua obra de si mesmos, e seus maiores feitos produzem estados de coisas e relações mundanas que parecem ser realização e obra apenas deles”.29 E, assim, nos “grandes homens” a sorte, a oportunidade prevalece sobre a genialidade: simplesmente aconteceu que seus fins particulares coincidissem com o que o curso das coisas exigia. .. Por esse viés, é evidente que a análise hegeliana está mais perto de um fatalismo do que da exaltação de alguns indi­ víduos, membros de uma elite: será ela que Nietzsche visará, ao cri­ ticar esses que só vêem, “em todos os grandes homens, a expressão mais exata das leis da história, as borbulhas visíveis à tona do rio”.10 E, no entanto, os “grandes homens” não foram, tampouco, os fantoches de uma finalidade sobre-humana. Se “toda a sua natureza consistiu apenas em sua paixão”, isso não quer dizer que eles estives­ sem possuídos por um Fatum. Devemos notar que Hegel, na Estética, insurge-se contra essa concepção do herói trágico. Sófocles errou (afir­ ma) ao introduzir Héracles, no seu Filoctetes, à maneira de deus ex machina, parecendo pois fazer de seu herói mero joguete de “um arbí­ trio externo”. "O conteúdo divino deve aparecer justamente como o

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que é mais intimo aos indivíduos".31 E não haveria pathos trágico se a vocação do herói lhe fosse ditada por um poder superior, em vez de ser o centro que unifica todos os seus gestos (o amor fraterno de Antígona, a paixão amorosa de Romeu, que transparece até mesmo no duelo com Teobaldo). Ora, o homem histórico é tão pouco agido quanto o herói patético. E sua inconsciência não vem de ele, porventura, des­ conhecer a força superior que o manobra. Em que, aliás, consiste tal inconsciência? Louis Althusser dá uma resposta bastante adequada, à sua maneira, quando afirma enxergar, nessas páginas da Filosofia da História, Hegel confessando que é “ impossível” a “ previsão histórica” : “os grandes homens não percebem nem conhecem o futuro [. . . ] não passam de adivinhos que, incapazes de conhecer, apenas pressentem a iminência da essência por vir [ . . . ] ”.32 E disso o autor conclui — com toda a razão — que a História hegeliana, tornando impensável um saber relativo ao futuro, veda igualmente uma “ciência da polí­ tica”. Tem razão, dizíamos. Mas sob uma condição: a de acrescentar­ mos que a previsão política sequer poderia interessar a Hegel enquanto filósofo da História-do-Mundo. É somente o futuro a curto prazo de uma formação política determinada, ou a solução para uma situação conflitual particular, que pode favorecer algum tipo de previsão — mas não a História-do-Mundo, que, por definição, excede todas as configurações finitas em cujo interior a previsão pode ter sentido. Na escala da História-do-Mundo, nenhum modelo de “ Necessidade” dos que nos são familiares tem como funcionar, porque ela não é um devir que vai se tornando inteligível graças a certos dados (relações de força, estratégias, recursos de Estados etc.). E é justamente por isso que, na melhor das hipóteses, só podemos imputar seus progres­ sos e reviravoltas à ação, inconscientemente racional, dos “grandes homens”. O que é um modo de relembrar que o Entendimento é in­ capaz de dominar esse processo que devasta, que nada edifica. É so­ mente à margem da História que o Entendimento pode conseguir — e isso de maneira bem localizada — “explicar” ou prever, porém esse modo de inteligibilidade se evidenciará impróprio ao se tratar de al­ guma grande modificação no “curso das coisas”. Traduzindo: da obra de um “grande homem” .. . Que fosse inevitável ruir o Império, na China, ou o regime do Kuomintang, isso o Entendimento histórico (ou seja, sociológico) ainda pode explicar mediante uma combinação de causas. Porém, como compreenderá, partindo delas, que a China tenha se transformado numa nação líder do Terceiro Mundo? Daquilo para isso, que continuidade — inteligível — éíe poderia descobrir? Como a História poderia albergar a previsão e as estratégias bem dirigidas, 50

essa História que só aparece sob a forma da ruptura? E, no vocabu­ lário hegeliano, para formularmos — neste caso — que só existe ruptura, diremos, simplesmente, que Mao é um “grande homem”. Só que isso não implica, absolutamente, que consideremos o mundo fa­ dado a um nacional-comunismo cujos desígnios começariam a se rea­ lizar em Mao. A obra de um "grande homem” jamais enuncia tanto assim: ela apenas nos incute a sensação de que o trabalho do Espíritodo-Mundo não tem medida comum com nenhuma política finita, com nenhum desempenho no finito. E é por isso mesmo que a ação histó­ rica, no sentido forte do termo, tem de ser meio cega. Os “grandes homens”, é verdade, recebem também o nome de “clarividentes” (Einsichtigen), e disso poderíamos inferir que eles adi­ vinham o futuro do mundo da mesma forma que decifrariam os enig­ mas de um oráculo. Mas isto só seria verdade caso a História seguisse um vetor que o Entendimento finito pudesse conhecer previamente, pelo menos em tese, pelo menos de jure. E isto só seria verdade se o Espírito-do-Mundo fosse autor de um roteiro ao qual alguns hiperlúcidos pudessem, ocasionalmente, ter acesso. A crítica de Louis Althusser tem pelo menos o mérito de mostrar que, contrariamente à lenda escolar, não é isso o que se deve censurar em Hegel, e sim o fato de haver pensado tão cabalmente a História mediante a categoria do Presente que ele termina — no que nos aparece como um grande paradoxo — neutralizando-a enquanto processo articulado e, portan­ to, objeto de ciência. Contudo, por que enfatizar tanto que os “grandes homens hegelianos” jamais podem ser mais do que adivinhos? Tanta ênfase seria um modo de lastimar que a História-do-Mundo não con­ sista num texto legível, consignado em algum álbum da deusa? Não lançaremos essa suspeita contra Louis Althusser. É de outra coisa que ele constata a falta: de uma historicidade que propiciaria um recorte determinista. Hegel, porém, não julgaria essa exigência como essen­ cialmente distinta de uma exigência providencialista: para ele, ela não passaria de uma outra maneira de submeter a um código de inteligi­ bilidade finita uma Necessidade histórica que é de outra natureza. E então, para concluir? O que pode ser essa “ Necessidade” dialética, a um só tempo destruidora dos conteúdos finitos e articuladora da verdade deles? E o que devemos agora perguntar, para depois poder­ mos decidir o que acaba vencendo, afinal, na conceitualização hegeliana: ou a mutação de sentido que a noção de “Necessidade histó­ rica” sofre, ou a sobrevivência, apesar de tudo, contra tudo, do tema teológico.

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üs providencialistas (escreve Hegel) “pensam honrar a Providên­ cia Divina ao excluírem dela a Necessidade”. Em outras palavras, à "Necessidade cega”, ao fato de que determinadas condições produzem "coisa completamente diferente”,33 eles opõem a operação da vontade divina sub raíione boni. Assim, fica clara uma divisão: por um lado, a má Necessidade criticada por Aristóteles, o engendramento — que jamais poderá ser representado por uma ligação apodítica — do con­ seqüente pelo antecedente (a construção dos alicerces não acarreta, necessariamente, a edificação do resto da casa); por outro lado, uma finalidade técnica que nunca falha em seu desempenho. Essa divisão é recusada por Hegel. Recusada com tanto vigor que ele até parece reconhecer que a História, num sentido, é o reino da "Necessidade cega”. O ator histórico, com efeito, é exatamente o contrário do homem-que-sabe, do bom técnico platônico, e a ação histórica é uma finalidade inevitavelmente embaralhada pela irrupção da "Necessida­ de”. Nela também se encontra, sempre, a mesma descontinuidade entre antecedente e conseqüente que caracteriza a “Necessidade cega”: “na História-do-Mundo, os atos dos homens geralmente resultam em algo diferente do que foi projetado... [Os homens] é claro que realizam o que é de seu interesse, mas nesse movimento algo mais, e diferènte, também é produzido”.34 Nessas condições, seria ocioso querer analisar exaustivamente uma ação histórica, considerada como uma seqüência finalizada, ou como um encadeamento de seqüências finalizadas — não importa que dimensão se atribua aos atores (indivíduos, ou clas­ ses, ou grupos de pressão), não importa que móveis se dêem à sua conduta (interesses econômicos, ou ambição imperialista, ou egoísmo de classe etc.). Sejam quais forem os protagonistas (a “burguesia negocista” e o “proletariado”, Luís xv e Frederico n ), a História-doMundo passa bem longe de seus projetos e da colisão de seus projetos. E, se tentarmos encontrar nela, a todo custo, linhas de finalidade "técnica”, a decepção será inevitável: os comportamentos finalizados, nesse campo, só podem ser comportamentos desviados pela tuché, se­ qüestrados para bem longe de sua meta, no rumo de “algo inteira­ mente diferente” do que fora visado pelo autor. O ator histórico hege­ liano é o mau demiurgo, que se deixa dominar pela fortuna — ou o aprendiz de feiticeiro, o criminoso que “não quis fazer isso”, tal como o incendiário cujo exemplo encontramos na Filosofia da His­ tória: ponho fogo à casa de meu inimigo, das vigas as chamas sobem à estrutura, dessa casa passam a outra, e assim arde a cidade inteira.. . O exemplo faz-nos pensar o que diz Aristóteles da acidentalidade no mundo sublunar: “A coisa acidental é produzida e existe, não en­

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quanto ela mesma, porém enquanto outra coisa-, a tempestade foi a causa de você descer em Egina, coisa que você não queria”. O Espí­ rito-do-Mundo não passaria, então, do Gênio Maligno do sublunar? Se temos de escolher, é melhor responder pela afirmativa do que conceber um Deus autocrata dirigindo o curso do mundo a seu talante, e cujos desígnios não fossem completamente impenetráveis aos atores da História. Pois não é por falta de reflexão que estes ignoram o que fazem. Entre sua conduta e a “finalidade” do Espírito-doMundo, há uma diferença bastante profunda. Tão grande que só ela nos permite perceber a finalidade histórica: medindo como o fim que acaba de se realizar tem tão pouco em comum com os objetivos que o tempo visou, medindo que distância há entre a política belicista de Poincaré, em 1914, e a dissolução da Áustria-Hungria e o nascimento da União Soviética, que são, se assim podemos dizer, seu “resultado” em 1918. Apenas graças a esses descompassos é que o Espírito-doMundo se deixa entrever.35 E, quando Hegel compara sua marcha à de um gigante, “irresistível, de movimento tão imperceptível quanto o do sol, tomando os caminhos melhores e os piores”, é com o fito de acentuar a desproporção entre o que efetivamente se realiza e a vã agitação dos atores.36 É por isso que, do ponto de vista hegeliano, será menos errado ver no curso do mundo a vitória da tuché sobre a razão finita do que nele enxergar a atividade de uma teleologia divina, porém ainda técnica, ainda em dimensão humana, da qual os homens poderiam, de direito, ser cúmplices ou testemunhas. Ê por sua própria essência que toda prática finita é inadequada à "atividade infinita do Fim”: por ser instrumental, por ter de ajustar meios bem ou mal escolhidos ao objetivo que ela se propõe. . . 37 É também por definição que o que é “substancial”, numa ação histórica, se mantém opaco a quem toma parte nela. E é por isso que ninguém jamais terá direito a se declarar depositário do Saber-de-Si do Espírito. E ainda por isso que o estadista que acreditava praticar a política do “mal menor” não é, propriamente, culpado de não ter sabido que realizava uma “trai­ ção” objetiva. É verdade que a Razão na História pretende ser a refutação cabal da tese de Hume segundo a qual as ações podem ser louváveis ou censuráveis, porém não há sentido em dizê-las razoáveis ou não.38 Mas é tão grande a disparidade entre a finalidade humana e a histórica, que fica difícil conceber como um agente histórico possa ser responsabilizado pelo que é racional ou irracional em sua con­ duta. O “mestre-escola” é ridículo — quanto não se reiterou isso, após Hegel — quando pretende julgar "moralmente” “os indivíduos excepcionais da História-do-Mundo”. Mas não seria menos ridículo 33

querer, a todo custo, justificar moralmente esses indivíduos39 ou, mais ainda, querer converter o erro histórico em crime de direito comum. A homonímia da finalidade no finito e da finalidade histórica pelo menos protege Hegel do fanatismo da “responsabilidade objetiva”. Seria ridículo sequer imaginarmos que o “julgamento da História” algum dia fosse pronunciado no recinto de um tribunal de justiça. Essa desproporção entre finalidade histórica e finalidade humana porém não impede Hegel — é verdade — de afirmar que “a Provi­ dência Divina se porta como a astúcia absoluta com relação ao mundo e a seu processo” — e essa imagem parece remeter-nos diretamente à teleologia tradicional e a Bossuet.40 PorCm a semelhança é enganosa, pois, de Bossuet a Hegel, temos pelo menos uma diferença — Deus não está mais incumbido de dirigir os nefócios do mundo, sua ativi­ dade não pode mais ser descrita em termos de causação, por isso sua “astúcia absoluta” não é sinal de uma onipotência técnica. É claro que podemos dizer que o Espírito-do-Mundo se serve das paixões humanas como um construtor se serve de materiais, para impor-lhes uma destinação que não estava em sua natureza. Porém a analogia não diz respeito à realização da obra. Se há semelhança entre o Espírito-do-Mundo e o técnico, ou o usuário da máquina, é somente na medida em que este “se conserva e se preserva intacto” por trás das forças naturais que agem em seu lugar: “o Espírito-do-Mundo não se move no jogo exterior das contingências — é mais correto dizer que ele é o determinante absoluto, que se mantém firme frente às contingências que utiliza e domina”.41 Passado esse ponto, a compa­ ração com o produtor humano não tem mais cabimento, porque o Espírito, realizando o fim que é seu, nada produz, nada transforma; não realiza nenhum fim determinado, nem mesmo por procuração, ao contrário da atividade humana finalizada, que deve efetivar seu obje­ tivo num objeto — que continua sendo exterior a ela. Portanto, a “astúcia absoluta” do Espírito não consiste em fazer os homens exe­ cutarem um trabalho que ele poderia realizar diretamente, se não fosse tão engenhoso... Não é a habilidade do Espírito como artesão ou engenheiro que a “astúcia” deve fazer-nos admirar, mas o fato de sua atividade ser o oposto de uma intervenção, de uma violência.*2 Mais radicalmente ainda do que em Aristóteles, o fim visado é não-poético. São os homens, e somente eles, que fazem a História, ao passo que o Espírito é o que nesse fazer se explicita. A História-do-Mundo se­ guramente não é obra da Providência industriosa, como pensavam os teólogos circunscritos ao Entendimento. Então o que é essa Providência? Deveremos enxergar nela ape­

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nas o vestígio que deixa, no sublunar, a atividade de um Primeiro Motor remoto, voltado somente para sua própria divindade? Nada disso. Para pensar essa “Providência”, é preciso, antes de tudo, não configurar mais o humano e o divino, o teatro das res gestae e a ati­ vidade do Espírito, como duas províncias justapostas — como se houvesse de um lado os engates da causação e de outro, a significa­ ção deles — ali, o furor das paixões e dos interesses, aqui, a Idéia programadora. Uma tal divisão seria antidialética, porque deixaria o sublunar no lugar que ele ocupa, supondo que ele seja — e continue a ser — a região da “Necessidade cega”, eternamente oposta à da finalidade... Ora, o Espírito só tem o nome de Espírito-do-Mundo (não, ainda, o de Espírito Divino) porque desfaz essa oposição e, assim, faz o “fatalismo cego” apagar-se, tornar-se Necessidade divina.43 Mais um ponto em que precisamos nos livrar da idéia, inculcada por Marx, de que o pecado da dialética hegeliana residiria em ela subme­ ter o real ao ideal. Se não fizermos isso jamais poderemos compreen­ der por que a “Providência” hegeliana, ao contrário da Providência da ortodoxia cristã, não precisa subjugar a causalidade acidental — já que consiste na perpétua supressão desta. É verdade que Hegel pode afirmar, como tantos, que a “Necessidade cega” não passa de falsa aparência. Só que não é porque tudo estaria já combinado, no pormenor mais insignificante, para resultar ad majorem gloriam Dei, nem porque os defeitos das obras se deveriam apenas à miopia das criaturas, e sim porque o acontecimento, o puro advir, é o que se anula.*4 A “verdadeira teodicéia” não procura fazer dissipar-se a “ Ne­ cessidade cega” no nível do finito, dos interesses em luta. Não procura transformar o fortuito em significativo, porém mostrar que esse ema­ ranhado confuso produz sentido à medida que vai passando. Não se trata mais, como nas teodicéias ingênuas, de encontrar uma justifica­ tiva para cada acontecimento. No momento mesmo, nenhuma harmo­ nia celeste se faz escutar, ante o ruído, o furor. Porém, uma vez que o tumulto se recolheu, se fez passado, uma vez que o acontecido (o que adveio) se converteu em concebido, é lícito dizer, numa palavra, que “o curso da História” já se delineia um pouco mais. Se a História progride, é para quem olha para trás; se é progressão de uma linha de sentido, é por retrospecção.

Daí cabe indagar o que pode ainda significar a “ Necessidade” que unifica a História-do-Mundo, em que pode consistir a operação de uma “ Providência” tão desconcertante. O certo é que o conceito 35

hegeliano de ''Necessidade-Providência'’ supera — e permite desqua­ lificar — duas concepções (parciais e abstratas) da inteligibilidade histórica: a concepção determinista, que se serve da causalidade aci­ dental para nela marcar condicionamentos — e o providencialismo, que pretende neutralizar ao máximo toda causalidade acidental para fazer aparecer, nela, a sabedoria do Arquiteto. A dialética histórica luta nessas duas frentes: é o que Hegel afirma, sem ambigüidades, no trecho que se segue da Enciclopédia: Por sinal é totalmente errado considerar que a apreensão do mundo enquanto determinado pela Necessidade e a crença numa Providên­ cia Divina se excluam reciprocamente. O que a Providência Divina, segundo o pensamento, tem como fundamento seu em breve se pro­ duzirá, para nós, enquanto Conceito. Este é a verdade da Necessidade e a contém, em si mesmo, suprimida — assim como [inversamente] a Necessidade é, em si, o Conceito. Cega a Necessidade só é na medida cm que não está concebida, e é por isso que nada é mais absurdo do que censurar a filosofia da História por um suposto fa­ talismo cego, a pretexto de ela considerar sua tarefa como sendo conhecer a Necessidade do que aconteceu. A filosofia da História assume pois a significação de uma teodicéia, e os que pensam hon­ rar a Providência Divina isentando-a da Necessidade na verdade a rebaixam, mediante essa abstração, a uma arbitrariedade cega, a uma falta de razão.45

Em suma — há duas maneiras de não enxergar a verdadeira Necessidade histórica, a “Necessidade concebida”. Ou ser historiador, e encerrar-se no mundo sublunar, para circunscrever configurações causais — ou ser teólogo, e perserutar as vias do Senhor. Nos dois casos passamos ao largo da verdadeira Necessidade histórica, isto é, da verdadeira “Providência”: ou confundimos a Necessidade com a determinação cega pelas condições, ou confundimos a racionalidade com a escolha judiciosa que um Deus combinador teria feito. Nos dois casos, vemos o acontecimento como resultado de uma imposição arbitrária. Em contraste, a “Necessidade-Providência” hegeliana é tão pouco autoritária que mais parece aprender, com o curso do mundo, o que eram os seus desígnios — e por isso não é correto, embora corriqueiro, censurar a Razão na História porque ela faria o elogio constante dos fatos consumados. Venerar o fato consumado implica necessariamente presumir que foi escolhida a melhor das alternativas — que a Idéia conseguiu, uma vez mais, impor a sua solução. Ora, certamente a História-do-Mundo não é o melhor dentre todos os ro­ teiros possíveis — e "foi assim” não significa que tal acontecimento 36

fosse a figura mais feliz dentre todas as possíveis variantes. A idéia do “melhor dos mundos” não passa de uma noção “banal e vulgar” — e Hegel lamenta que Leibniz, em sua Teodicéia, tenha decidido invocar os decretos da sabedoria divina, deixando assim a Deus “uma liberdade isenta não apenas de coerção, mas até de Necessidade”.46 É que os teólogos do Entendimento, no afã de banir a “Necessidade cega”, inevitavelmente terminam recorrendo à Vontade Divina — Von­ tade selvagem do agostinismo ou Vontade esclarecida — e divinizando o “Foi assim”. Portanto a imagem que constroem da razão na Histó­ ria, afinal de contas, é bastante similar à que o fatalismo elabora da Necessidade — e é curioso vermos Hegel criticando esse arbitrário praticamente nos mesmos termos que Nietzsche mais tarde utilizará para denunciar o “historicismo hegeliano” e seu culto do “ fato con­ sumado”.47 Por isso não é correto afirmar, sem atenção aos matizes, que a Razão na História não passa de uma teologia histórica a mais; não é correto engatar Hegel e Leibniz numa única forma de otimismo. O que não quer dizer que as críticas feitas à História hegeliana tenham cons­ truído uma imagem aberrante desta. Porém elas talvez não tenham per­ cebido qual é a verdadeira ligação de Hegel com a tradição metafísica. Enquanto a Necessidade histórica hegeliana parece conter-se numa for­ mulação algo mais atrevida da Providência dos clássicos, ficamos com­ batendo uma “ Necessidade hegeliana” que Hegel teria sido o primeiro a contestar. Em contrapartida, se aceitarmos distinguir a “ Providência” hegeliana da Providência metafísica, teremos melhores condições para ler naquela a anamorfose desta. É preciso começar dissociando Hegel da metafísica, para depois poder determinar onde, em sua obra, con­ tinua vivo o espírito da metafísica. É somente assumindo o risco, pre­ liminar, de considerar o Sistema como dissolução da linguagem da metafísica, que poderemos ver surgir, num tempo posterior, um paren­ tesco profundo.

É esta a via que Merleau-Ponty abre, numa página dos Sinais em que, voltando-se contra as críticas mais usuais, ele defende Hegel da acusação de “realismo histórico”. Não é verdade, afirma, que Hegel alguma vez tenha recomendado julgar uma ação estritamente por seu resultado (nem, é claro, pela sua mera intenção); não é verdade que Hegel tenha feito da História “ um ídolo externo” que mereceria uma veneração incondicional.48 Hegel afirma que a História emite um juízo. Seja. Mas “o apelo ao julgamento da História se confunde com a cer­ 37

teza íntima de haver dito o que, nas coisas, esperava para ser dito” — com a certeza de que tudo o que acontece pode pelo menos ser posto em discurso, ser recolhido num dizer unívoco, de que ‘‘o passado, à medida que se afasta, se transmuda em seu sentido”.49 Nesse texto, parece que Merleau-Ponty quer a um tempo protestar contra a assi­ milação do hegelianismo a um teocentrismo sumário, e igualmente con­ ceder a Hegel o que ele pensa ser o mínimo, mas que bem poderia ser a pressuposição metafísica máxima — a saber, que o “ apelo ao lulgamento da História” é promessa de uma narrativa possível, é a espera segura "do momento em que finalmente se saberá o que foi”. Dessa forma Merleau-Ponty mostra muito bem de que modo o Con­ ceito hegeliano unifica, purificando-as, as noções de “Necessidade” e “ Providência”. O Conceito, já vimos, não é uma coisa nem outra — nem uma disposição imposta de cima aos acontecimentos, nem a orga­ nização destes segundo uma rede de causas. E, no entanto, ele é a verdade do que esses conceitos devidos ao Entendimento se limitavam a apontar de muito longe, pois, nele, Necessidade e Providência perdem o aspecto de "ídolos externos”, de autoridades arbitrárias, que Hegel já condenara em algumas páginas suas, da época de Berna e Frankfurt; metamorfoseada pelo Conceito, a idéia de fatum já não se prende à de uma onipotência divina, esmagadora — de modo que a Filosofia da História não reabilita, de forma alguma, a idéia de Providência que fora forjada pela “ religião positiva”.50 Nenhum Fatum externo, de nenhuma espécie, decide quanto ao curso da História — e isso não impede, conforme observa Merleau-Ponty, que esta seja integral­ mente (atí-dica, ou ainda (o que vem a dar no mesmo) que ela seja apenas o dizer-de-si unívoco da Idéia, a qual, por sua vez, garante que todo conteúdo dito “histórico” possa tornar-se tema de uma narrativa unificada e coerente. Compreende-se assim por que Hegel não propõe uma nova maneira de escrever a história. Se escrever a história signi­ fica vencer ao máximo a opacidade dos fatos, a ambigüidade dos documentos, então Hegel está a cem léguas de uma tal preocupação. Tentar explicar melhor, querer forçar os ferrolhos implica sempre ‘introduzir, de fora, uma razão no objeto”, quando o que mais im­ porta é mostrar que “o objeto, para si mesmo, é racional”.51 Se a História é, por definição, o factual [événementiel] na medida em que ele se suprime num dizer, por que gastar tantos esforços impondo inteligibilidade ao conteúdo histórico? O que interessa é que ele já seja sentido. Do Conceito, enquanto governa a História, tanto podemos admirar a modéstia quanto a hybris. Modéstia extrema, face às teologias antro3S

pomórficas, posto que Hegel se contenta com garantir-nos que o “ his­ tórico” (ou qualquer momento do “histórico”, se o recortarmos de maneira conveniente) possui a unidade linear de um discurso; nada mais, comenta Merleau-Ponty, do que a autorização para “ pensar a própria vida e todas as vidas como algo que se pode narrar, em todos os sentidos da palavra, como uma história". Também teria cabimento dizer: nada menos. Pois, aqui, o que nos pede o filósofo da História é, simplesmente, admitirmos que a "Necessidade cega” vá seguramente se apagar. O que não implica (é claro) defender a tese de que a me­ dida do nariz de Cleópatra estivesse predeterminada — porém ter a certeza de que, a despeito da dispersão dos acasos, uma figura de sentido terminará por emergir deles, necessariamente, um vetor deter­ minado haverá de surgir. Então, que diferença há entre esta e as teodicéias montadas no Entendimento? É verdade que o Espírito hege­ liano, ao contrário do Deus delas, não aponta para um gênio infinita­ mente industrioso. Porém, com vigor ainda maior que o Deus antropomórfico, permite considerar como natural e óbvio que o acaso deva se decantar em razão, o magma organizar-se a posteriori em uma “boa forma” — e essa tese é o núcleo indestrutível de finalismo que reside em todo pensamento de uma continuidade histórica. Sob esse aspecto, o Espírito hegeliano foi definido com felicidade por Castoriadis, ao estranhar ele a aceitação de tantos “a essa quimera de uma bela racionalidade do irracional, a esse enigma filosófico de um mundo de não-senso produzindo sentido em todos os níveis”.52 Exigência mínima, se comparada com os pressupostos tão mais “rigorosos” das antigas teodicéias, a possibilidade de uma narrativa unitária e bem amarrada aparece como uma exigência máxima, se a confrontamos com a ima­ gem do factual que ela tem função de recalcar: o factual a cada mo­ mento como um jogo de azar, como dados a lançar. . . Dessa perspec­ tiva, perceberemos que, se a História-do-Mundo apaga a imagem ingê­ nua do Deus-Providência, é porque ela é sua transcrição em linguagem mais sóbria, retomando de modo mais econômico o que já anunciavam as teodicéias cristãs: que o fatum antigo, a ananké cega a que se submetiam os próprios deuses é um mito ímpio. Dessa perspectiva, Hegel continua perfeitamente dentro da esfera do cristianismo, recusan­ do portanto a existência desse “reino da grande imbecilidade cósmica” do qual fala Nietzsche, ao apresentar a “razão na História” como “ a nova fábula” cuja difusão devemos aos cristãos: Os gregos davam o nome de Moira a esse reino do imprevisível c da sublime e eterna estreiteza de espírito, diziam ser ele o horizonte

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de seus deuses, que não podiam agir riem ver mais além [ . . . ] [Já o cristianismo] mandava os homens adorarem, prostrados no pó, o espírito de potência, mandava até mesmo beijarem esse pó: o que dava a entender que o todo-poderoso “ reino da imbecilidade" não era tão imbecil quanto aparentava, que o mais correto era sermos nós os imbecis, que não percebíamos, por trás dele, a presença do bom Deus [ . . . |53

Nietzsche, observemos, torna a encontrar aqui um tema que se esboçava no jovem Hegel. No Tübinger Fragment, Hegel opunha, à Providência consoladora do cristianismo, a Moira grega e a resignação por ela inspirada: “ [para eles] a desgraça era desgraça, a dor era dor — e eles não podiam perscrutar as intenções [que os guiavam] por­ que a sua Moira, a sua anankaia tuché era cega: a tal Necessidade eles se submetiam de bom grado, com toda a resignação possível, e isso lhes conferia uma vantagem — é mais fácil suportar o que nos habituamos, desde a juventude, a considerar como necessário”.54 Porém Hegel logo deixará de venerar essa Necessidade pagã. Já no Espírito do Cristianismo a análise do Destino, enquanto oposição-reconciliação, mostra que ele se orienta rumo a uma interpretação recuperadora do cristianismo — e que escolhe o sofrimento portador de sentido, contra o sofrimento "inocente”. Nunca é a troco de nada que eu preciso en­ frentar o Destino: “ [ . . , ] onde quer que a vida tenha sido ferida, ainda que em decorrência da eqüidade, com algum sentimento de sa­ tisfação, então aparece o Destino — e é por isso que podemos dizer que jamais a inocência sofreu, que todo sofrimento decorre de uma falta cometida”.55 Todo sofrimento é o preço que o Particular paga por ter-se “obstinado em sua diferença” . . . Assim, a dialética histórica em formação começa a expulsar o acaso, e a ordenar-se segundo um projeto que, na falta de nome melhor, temos mesmo que chamar de “cristão”.

E agora vamos nos entender. Não há dúvida de que a interpre­ tação hegeliana da dogmática cristã muitas vezes é forçada. Porém, o fato de Hegel ter retalhado o cristianismo nas medidas da dialética não implica que esta mantenha apenas relações de boa vizinhança com a ontologia cristã. Quando Hegel — em textos, é verdade, de matiz polêmico e “popular” 56 — se apresenta como campeão da ortodoxia contra as filosofias devidas ao Entendimento, pensamos que ele deve ser levado a sério, que sua palavra merece fé. É com a maior sinceri­ dade que ele considera pseudocristã a filosofia que só argumenta com

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base no mero poder * de Deus — filosofia que na Criação só enxerga a marca de um poder absoluto e indecifrável que, no limite, dispensaria Deus de se revelar e, em todo caso, proíbe os homens de conhecê-lo enquanto Revelado. Aos olhos de Hegel, isso é sacrilégio. Seguramente é sacrilégio afirmar, como Descartes, que “seria grande presunção nossa tentarmos conhecer que fim Deus teve em mente ao criar o mundo”. Assim dizendo, é claro que Descartes condenava, com grande antecedência, qualquer projeto de uma Razão na História, porém, ao mesmo tempo, fazia de Deus o substituto da Necessidade pagã: pois a criação das verdades eternas não conserva alguns traços da Moira? Hegel recusa-se a reconhecer o Deus cristão como um Criador simples­ mente autoritário: “O cristianismo não nos faz conhecer Deus enquanto uma atividade estritamente criadora, que não seja Espírito [.. .] Deus é mesmo Criador do mundo, e isso já o determina o suficiente, porém Deus é ainda mais: é o Deus verdadeiro, por ser a mediação de si consigo, por ser Amor”.57 Uma Criação que não fosse o exercício de um poder sábio nunca fará mais que reafirmar a ananké selvagem — fará o contrário exato da Criação no sentido cristão. Isso pode ser assim, mas também poderia ser de outro modo — justo ou injusto, feliz, infeliz. Assim a Necessidade chega à afirma­ ção formal, não, porém, ao conteúdo. Nada subsiste, ou existe, que possa ser fim absoluto. É somente com a Criação que assistimos à posição e ao ser-posto de existências afirmativas que, em vez de existirem no abstrato, possuem um conteúdo [...] A Criação não é um ato da potência enquanto potência, porém enquanto poder sábio [■■•] Aqui a Necessidade existe com vistas ao fim, seu pro­ cesso consiste na conservação e realização do fim.58 A Criação não teria pois um sentido cristão, se não servisse para substituir o Destino pela Providência. Tese esta à qual, é evidente, não faltam avalistas. Notemos, por exemplo, que agora Hegel se encontra no mesmo campo de Leibniz, quando este, no prefácio à Teodicéia, confronta o Destino antigo, e a “paciência forçada” que ele provocava, com o fatum christianum, ordenado por um “bom amo”, condição para a satisfação da criatura e não somente de sua “ tranqüilidade”. E notemos, o que é o mais importante, que Hegel parece simplesmente (*) Em francês há uma distinção entre puissance e pouvoir (tendo esta última palavra um sentido bem mais limitado), que não é traduzível em portu­ guês. Puissance pode ser potência, poderio, mas também, e sobretudo, “poder". Por isso, de acordo com o autor, embora sempre que possível tenha se usado “potência”, muitas ocorrências de puissance foram traduzidas como “poder". (N. T.)

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retomar a idéia, tão comum, de que o cristianismo, ao espiritualizar a Necessidade, ensinou-nos a vivê-la como um vetor, não mais como um peso a dominar as criaturas — daí vem a dificuldade que nós, os mo­ dernos, temos em simpatizar com a resignação dos heróis trágicos.59 Porém, estas notas bastarão para expor o aspecto cristão que caracteriza o pensamento especulativo da História? Não — ainda não. Elas apenas nos fazem entender por que, na História hegeliana, Deus não se manifesta através dos “grandes golpes” que o cartesiano Bossuet o faz desferir. Elas permitem entender que a História-do-Mundo há de ter a Revelação como referência religiosa, em vez da Criação “en­ quanto poder” — que ela não será uma prova a mais da existência de Deus, acessível aos príncipes e à melhor sociedade, porém o comen­ tário de sua Revelação no sentido dogmático. Mas, se não passarmos disso, apenas estaremos repondo Hegel na linha de Lessing e Herder. Correremos, até, o risco de ver nele tão-somente um finalista delicado que se escandaliza ante qualquer representação de um Deus tirânico. Mas serão as coisas assim mesmo? Não nos equivoquemos quanto ao sentido da desconfiança que Hegel sente face ao dogma da Criação (ou melhor, face à utilização dele pelos filósofos). Se Hegel pretende depurar a Criação com respeito a seu aspecto arbitrário, não é absolu­ tamente a fim de atenuar o poder de Deus; ao contrário, é porque a representação de Deus como um rei absoluto em seu reino lhe parece ser uma imagem tolamente frágil de tal poder. A arbitrariedade — e esse tema nós reencontraremos no âmago de sua filosofia política — só pode ser o sinal de um poder ilusório. Uma força é arbitrária quando se exerce em direção ao exterior — quando mantém e coage um ser que está em suas mãos, é certo, porém que subsiste fora dela. E a força do Criador assim entendida é uma força que coloca (no sentido de instaurar), porém coloca, ou põe, um ser positivo, e não um ser-posto, destinado a se negar. Pensar a Criação consoante esse mo­ delo (em última análise ingenuamente artesanal) implica, portanto, reconhecer independência ao que foi criado, e dissimular sua completa dependência face ao Criador. É essa convicção “finitista” que reside nas filosofias ditas criacionistas. E, desse ponto de vista, o kantismo foi mais coerente que elas: por “ternura pelo sensível”, Kant ao menos recusou pensar a Criação como “o princípio determinante dos fenô­ menos”. E é precisamente contra Kant — e também contra os criacio­ nistas inconseqüentes — que o idealismo absoluto, diz Hegel, deve restabelecer a noção de Criação em sua verdade, e proclamar que “as coisas finitas têm por determinação não possuir em si mesmas o princí­ pio de seu ser, porém na Idéia divina universal”. Nisso, acrescenta

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ele, o idealismo absoluto apenas vem coincidir com a consciência re­ ligiosa autêntica que, também ela, “considera que é criado e regido por Deus o conjunto de tudo o que existe”.60 Assim começamos a compreender melhor por que a Providência hegeliana não consiste numa simples educação do gênero humano — por que ela deve agir num ritmo niilizante, que à primeira vista há de soar mais desesperador do que edificante. Tal como Deus somente se faz homem com o intuito de aniquilar sua figura terrena e denunciar a aparente positividade dela, igualmente a História-do-Mundo tudo o que pode dizer é a consumpção das figuras mundanas finitas. É apenas assim que ela afirma o verdadeiro poder de Deus — opondo-se à Natureza dos físicos criacionistas, decorrência de um falso infinito que não sabe aniquilar o que ele põe. É devastando e destruindo que Deus se revela enquanto Espírito. Dizer que a História-do-Mundo é o teatro dessa Revelação, dizer que não é “o lugar da beatitude”: essas duas afirmações redundam exatamente na mesma coisa. Ora, Nietzsche, na polêmica anti-historicista da Segunda Consideração Intempestiva, redescobre essa convicção “cristã” de Hegel, e, criticando-a, contribui, ao que me parece, para fazer-nos medir que alcance ela tem.

Atenção: não queremos dizer, de forma alguma, que a Segunda Intempestiva apresente uma interpretação de Hegel — apenas que nela podemos ler o esboço de uma compreensão original da História hegeliana, ainda mais notável porque não se casa com a idéia que Nietzsche, na época, tinha de Hegel. Com efeito, como é através da polêmica anti-hegeliana de Schopenhauer que Nietzsche aprende a co­ nhecer Hegel, certamente a inspiração cristã da filosofia dialética não poderia impressioná-lo. Hegel foi “mau cristão”: com essa fórmula termina, em O Mundo como Vontade, a diatribe schopenhaueriana con­ tra a teoria hegeliana da História. O que é o hegelianismo, para Schopenhauer? “Um grosseiro e banal realismo que toma o fenômeno pela essência em si do mundo, e reduz tudo a esse fenômeno, às formas de que ele se reveste, aos acontecimentos por meio dos quais ele se manifesta.” 61 E a deificação hegeliana da História não passa de uma prova suplementar dessa crença na “completa realidade deste mundo”. Razão pela qual Schopenhauer considera oportuno mandar os hegelianos lerem Platão: que aprendam a dirigir os olhos para “o que existe por todo o sempre, o que jamais passa” . . . São praticamente estes os termos que Nietzsche repete quando estigmatiza o historicismo e o hegelianismo que lhe serve de avalista. O que nos mostra a que distân­

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cia está, em 1873, de julgar o hegelianismo como uma teologia. E, de resto, “ Hegel” na época não passa de um dos nomes do pedantismo universitário que ele combate — um dos nomes dessa doença moderna que é o culto do cognoscível pelo cognoscível, a idolatria do factum brutum, em suma, o desprezível saber histórico que “retira do homem o fundamento de sua segurança e repouso, a fé em algo durável e eterno”.62 Por isso nada é mais premente, pensa Nietzsche, do que superar essa nova filodoxia e suscitar formas “que desviem o olhar do devir, e o dirijam para o que dá à existência um aspecto de eterni­ dade” . . . Nietzsche, é verdade, já não repete Schopenhauer: Platão para curar de Hegel — pois já não acredita, ou crê muito pouco, numa metafísica capaz de conter a doença do saber, e de deter o historicismo.63 Como lutar contra a opinião do “devir soberano” sob todas as suas formas — evolucionismo, hegelianismo? Melhor voltar ao projeto que inspirava a metafísica: e fazê-lo através da Arte, que permitirá que o homem moderno pare de se considerar como joguete do “eterno devir”. Através da Arte, tomaremos'consciência dessa "tarefa prodi­ giosa”: “destruir tudo o que é vindo-a-ser * [alles Werdende zu zerstören] ”.M Acontece, porém, ainda nessa Segunda Consideração Intempestiva, que Nietzsche lança outro tipo de olhar, bem diferente, sobre o "devir hegeliano”. Ao tema schopenhaueriano, que acabamos de resumir, co­ meça a misturar-se um outro, que não demorará a recobri-lo. Um novo caminho se abre, ao termo do qual Nietzsche perceberá em Hegel o cristão por excelência. E esse caminho nasce, também, da crítica ao historicismo. É que este último é um fenômeno complexo, que não tem por único efeito o de embotar nossa faculdade de espanto, o de permitir que o filisteu se sinta em todas as épocas e lugares como em terra conhecida. O historicismo engendra um sentimento oposto, e não menos nocivo: um certo asco, uma sensação de desenraizamento, de Heimatlosigkeit. E é mediante a análise dessa sensação que Nietzsche começa a atingir Hegel em pessoa — e não mais o heraclitismo pri­ mário, a doutrina do “devir soberano”, que Schopenhauer atribuía a Hegel. A que se deve, exatamente, o pessimismo que se difunde atra­ vés do abuso de história? Ao fato de que o historicismo nos dá o (*) O devenir francês (substantivo e verbo) é mal traduzido em portu­ guês. O termo técnico é “devir”, sendo utilizado sempre que possível. Mas o verbo devenir é de uso corrente em francês, ao contrário de sua tradução culta em nossa língua, e por isso o mais adequado, às vezes, é “tornar-se”. Também pode-se expressar em português como “vir a ser”. Estas várias lições foram adotadas no texto. (N. T.)

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direito de dominar o devir, de concebê-lo como totalmente inteligível — que nos ensina desde a escola a somar, a “totalizar”, como gostam de fazer os velhos.65 Então não era por acaso que Hegel comparava o fim da História à “noite” que fecha um dia, e que a velhice, idade da rememoração do sentido, lhe parecia constituir uma imagem da maturidade do Espírito.65 Tal como a Idéia totaliza o movimento do Conceito, também o velho deixa recolher-se o sentido de sua vida inteira: “A esse respeito a Idéia absoluta é como o velho; a criança pronuncia as mesmas fórmulas religiosas que ele, só que para ele, velho, elas têm o significado de sua vida inteira. É claro que a criança compreende o conteúdo religioso, porém sua vida inteira, o mundo inteiro, para ela ainda estão além de tal conteúdo”.66 Tal como o ve­ lho, a Idéia já não tem nenhuma expectativa; ela nada tem além de si mesma. E essa ausência de todo e qualquer horizonte, na filosofia especulativa, é uma boa nova. Não é má sorte que a filosofia sempre chegue “tarde demais”, mas isso ocorre simplesmente porque ela é o recolhimento do conteúdo. Não deve pois causar estranheza, enquanto continuarmos dentro da lógica da História hegeliana, que o advento do Saber somente possa ser ilustrado através da caduquice biológica ou do fim dos tempos. Mas, para Nietzsche, essa complacência para com o crepuscular é sintoma de alguma coisa, que vale a pena determinar. E Nietzsche tem uma tal convicção de estar se aventurando em terreno novo que prefere apresentar como uma mera hipótese a explicação que então propõe: a sensação de viver a noite de algo, sem a expectativa de nenhuma aurora, é a transposição moderna da velha obsessão com o Juízo Final. Na cultura histórica, a voz cristã apenas mudou de re­ gistro. “Nesse sentido, podemos dizer que ainda vivemos na Idade Média, que a história continua sendo uma teologia camuflada” 67 Sob a capa da erudição historicista, o cristianismo continua a reinar. Ou seja, [ . . . ] uma religião que só a contragosto admite que o vindo-a-ser [das Werdende] se imponha a ela, para repudiá-lo ou sacrificá-lo a tempo, que nele só enxerga a sedução da existência, uma mentira sobre o valor da existência [ . . . ] [O cristianismo] repudia com um dar de ombros tudo o que está em devir [alles W erdende.. . ablehnt] e difunde por toda parte a sensação de que tudo acontece tarde demais, de que somos epígonos, em suma — de que nascemos todos já de cabelos grisalhos.68

Tudo se passa então como se o malefício hegeliano, aos olhos de Nietzsche, de repente mudasse de natureza. Longe de ser o apologeta

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do ‘‘devir soberano”, Hegel, ao contrário, mostrou-se culpado de ca­ luniar “o que está em devir”, de fraudar, bom cristão, o devir, disfarçando-o de Weltgeschichte. O “devir” entendido por ele não será mais acusado de nos distrair do eterno (crítica de Schopenhauer), mas de não passar da dissolução do que deveio. E, nessa direção, seremos até levados a inverter a crítica que usualmente se faz ao hegelianismo: não diremos mais que o interesse de Hegel pela história o resgata de seu dogmatismo metafísico, e que a filosofia da História é o que há de mais vivo sob os escombros do Sistema. Tal lugar-comum se torna o pior dos equívocos, se é precisamente o interesse de Hegel pela Histó­ ria que manifesta com maior nitidez súa adesão integral à metafísica cristã. Somente se deixaram enganar os que foram fascinados pelas palavras mágicas devir, processo, desenvolvimento. . . A ver melhor as coisas, percebemos que a função do Werden hegeliano consiste em “repudiar o que está em devir”. E que tal função, apadrinhada pela dialética, tenha passado por subversiva (mesmo em germe) bem pode ser uma simples impostura: também são Paulo, em seu tempo, sub­ vertia “a figura deste mundo”.

Em suma, este é o rumo que podemos começar a tomar, partindo de algumas indicações esparsas da Segunda Consideração Intempestiva. Estas nos convidam menos a refletir sobre a finalidade dogmática que serve de ímã à História hegeliana do que sobre o estilo — estranha­ mente fúnebre, e mesmo mórbido — desse finalismo; o que sublinham não é tanto o famoso “otimismo” hegeliano, é o “pessimismo tran­ qüilo” (na expressão de Habermas) que lhe confere sua coloração tão peculiar. Tais indicações obviamente não são provas. Simplesmente nos fazem levar a sério algumas impressões de leitura. E, partindo delas, talvez possamos — por exemplo — analisar de uma nova maneira a atitude desdenhosa de Hegel perante a história dos historiadores, cujo fito consiste sempre em reconstituir o acontecimento — o que só pode ser o cúmulo da futilidade. Um bom exemplo disso Hegel encontra na teologia chamada de “nova” (neuere Theologie). “ Nova”, porque esvazia de todo o conteúdo conceituai o saber referente ao divino, que ela transforma em mera erudição. Esses teólogos não lidam, absolutamente, com o verdadeiro conteúdo, com o conhecimento de Deus. A Deus eles conhecem tanto quanto o cego conhece o quadro cuja moldura apalpa. Sabem que tal dogma foi proclamado por tal concilio, que os participantes desenvolveram tais argumentos, e qual foi a opinião que prevaleceu. É portanto de

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religião que eles tratam, porém o que discutem não é já a religião mesma. Eles têm muito a contar sobre o pintor, que destino teve a tela, o preço que foi pago por ela, os compradores que encontrou — mas, do próprio quadro, eles nada nos fazem ver.69

Por que esse assanhamento pela precisão erudita, pelo registro do efêmero, mereceria o nome de saber? O historiador acredita saber porque consegue representar o que se tornou distante — porque salva do esquecimento o que se afasta no tempo. Em sua tarefa ele dispõe de documentos — monumentos, inscrições, crônicas, arquivos — que, em sua maior parte, estavam destinados a fixar a memória do aconteci­ mento (Hegel talvez ressalvasse os arquivos, a documentação burocrá­ tica, que seria mais correto ver como um documento de racionalidade). Ora, quem tem interesse em embalsamar o acontecido sob a forma de recordação? Quem são os fornecedores do historiador? Forçosamente, hão de se assemelhar aos fiéis da primeira comunidade cristã, a essas almas ingênuas que não suportavam ver o seu Deus recuando rumo ao passado, esfumaçando-se no ter-sido, e que por isso não queriam mantê-lo presente, e sim manter sua presença. Jesus já não estava, porém fora visto, fora ouvido, e bastava essa recordação para deter o trabalho do tempo. “Em vez do Conceito, nascem, mais propria­ mente, a mera exterioridade e singularidade, a modalidade histórica do fenômeno imediato, a recordação já sem espírito de uma figura singular visada e de seu passado.” 70 É esta a má reminiscência: liga a coisa à data que lhe cabe, impõe-lhe lugar devido — por todo o sempre, só que por todo o sempre fora do lugar. Ela nunca me torna dono, apenas espectador, do que evoca. E a informação que fornece aos historiadores não diz respeito ao que ainda é (e sempre será) verdade, relativamente à coisa — serve apenas para determinar que foi verdade que, tal dia. . . Essa reminiscência pode muito bem dar a verdade sobre a coisa, mas exclui a própria idéia de que haja uma verdade da coisa. A abordagem histórica deixa de lado a geração absoluta desses dogmas nas profundezas do Espírito, e por conseguinte a Necessi­ dade, e a verdade, que eles também têm para nosso espírito [ . . . ] A história lida com verdades que foram verdades, isto é, para outros — e não com verdades que ainda o sejam para os que lidam com elas.71

O trabalho da rememoração genuína é exatamente o contrário desse memorial: em vez de sepultar o conteúdo em seu elemento pere­ cível, ela o liberta de seu passado. O que Cristo fez ou disse tal dia,

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cm lal lugar (das Ehemalige), é reduzido graças à rememoração a mero rastro (nur noch eine Spur), a “ simples matiz de sombra’’ (ein­ fache Schattierung), a “abreviação”.72 Ê claro que seria absurdo propor um ideal desses ao historiador: é o mau historiador que pratica a “abreviação” e faz “os acontecimentos se resumirem em abstrações”.73 Mas isso é uma prova suplementar de que a história-narrativa, disci­ plina forçosamente “ representativa”, nada tem a ver com o discurso da História. Se, para a História-discurso, “nada está perdido no passa­ do”, não é absolutamente porque ela seria um inventário exaustivo: e sim porque ela “só lida com o atual”. E não é mais a erudição, é a cultura que serve de modelo a essa outra atitude relativa ao passado. O que importa quem foi Euclides, ou como viveu Platão: seu ser histórico está inteiramente na tradição escolar e cultural que consumiu e assimilou sua obra.74 O passado, portanto, não está nem atrás de nós nem à nossa frente; não somos seus herdeiros nem seus espectadores, menos ainda seus inquisidores — somos seus consumidores. Ê por isso que Hegel não podia pensar em escrever ou reescrever história. O discurso da História-do-Mundo é coisa muito diferente, que não exige nem crítica dos textos, nem pesquisa, nem métodos novos, para se orientar em meio à massa dos fatos. Seu único objetivo é decifrar, no interior desses, a produção da racionalidade que a Europa incorporou a si. Paradoxalmente, então, o que caracterizará o histórico é ser, ele, constitutivo de nosso presente, e não o peso que pode ter exercido sobre o curso dos acontecimentos, a inflexão que tenha dado a estes últimos (alternativa que seria a do “nariz de Cleopatra”). Assim, cada vez que Hegel parece estar contando o passado do Espírito, ou de uma de suas formações, na verdade está tornando a demonstrar que “o que o Espírito faz não é história” (keine Historie),15 e que portanto suas produções não precisam, de forma alguma, ser salvas da decrepitude ou do esquecimento. Não apenas essas obras não estão entrepostas no templo da memória, como imagens do que foi outrora, mas ainda elas são hoje, tão vivas, tão presentes como quando nasceram. São produtos e obras que os sucessores não suprimiram, nem destruíram. O elemento que as con­ serva não é a tela, nem o mármore, nem o papel, nem as represen­ tações, nem a memória; essas obras não são elementos perecíveis, porém o pensamento, a essência imperecível do Espírito — na qual não penetram vermes nem ladrões. O que o pensamento adquire como tendo sido elaborado por si constitui o ser do Espírito mesmo. Por isso tais conhecimentos não compõem uma erudição, o saber

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do que morreu, foi enterrado e se putrefaz; a História nada tem a fazer com o que muda, ela lida com o que está atualmente vivo.76

Portanto a História-narrativa só pode operar contra a Históriadiscurso. Voltando-se para "o que muda", a primeira é uma disciplina “ positiva”, que confere espessura e autoridade de objeto ao que, do ponto de vista da História-discurso, limita-se a se abolir n’“o que está atualmente vivo". Tudo separa Geschichte e Historie: elas não têm o mesmo objeto, nem a mesma teoria da objetividade. E é fácil com­ preender por quê. No seu belo livro Como se Escreve a História (ou, na língua hegeliana, “Como o Entendimento escreve a história”), Paul Veyne afirma que a ontologia do historiador conhece apenas indiví­ duos, ousiai dispersas, que tudo o que sabem é agir e padecer.. . Nesse ponto, pelo menos, ele concorda com Hegel. Pois é esta a ontologia da história-narrativa, tal como a concebe Hegel; ou seja, uma ontologia que por definição ignora a negatividade. Com efeito, a história-narrativa impõe a seu leitor uma representação do tempo que exclui a negativi­ dade, porque ela tematiza o que foi de tal forma em tal data, ou ainda nos explica por que, em determinada época, existia uma coisa inteira­ mente diferente. Ora, o único “tempo” compatível com essa tópica é um “tempo” que Hegel julga eminentemente abstrato: um lugar de passagem, um “meio” indiferente através do qual houve formas suce­ dendo-se ou mudando. .. Hegel não gosta quase nada da palavra mudança (blosze Verän­ derung). A mudança é o devir — porém na medida em que ele afeta as substâncias finitas, em que as faz envelhecer. Não é o devir carac­ terístico do Espírito o ique as faz perecer. A análise de uma formação histórica considerada enquanto mutante não contribui em absoluto para determinar sua significação “espiritual”. Pois, como sabemos, a consti­ tuição do Espírito não resulta do movimento d’“o que muda”, e sim do desaparecimento d’“o que muda”, pressupondo pois um conceito de "tempo” que nada tem em comum com o (ou com os) dos historia­ dores. O único “tempo” de que a História-discurso precisa é o con­ trário da duração. É um tempo que só comparece para censurar o perecível, enterrar o que não deve retornar — em suma, anular o aspecto dispersivo do devir, aspecto este que a história-narrativa aceita sem maiores problemas. E “o devir mediatizando-se a si mesmo [ . . . ] alienação que é também alienação de si mesma”.77 E uma tal idéia do tempo só pode ser um tema mítico sem nenhuma serventia para o analista do "Era assim” (Es war). Se o historiador toma por objeto o factual, se ele se prende ao que veio-a-ser (das Werdende), que necessi­

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dade tem então de se preocupar com o devir dissolvente que endossa a finitude deste último? Entre a investigação do passado e o discurso da supressão do passado naquilo que é "atualmente vivo”, não há conciliação possível. Num campo e noutro, a palavra passado não possui o mesmo sentido. O historiador — este é seu ideal e sua justi­ ficação — esforça-se por tomar o passado tão exótico que, sem ele, sem a paciência que o caracteriza, não teríamos condições de imaginálo: o que seria uma história (ou uma filologia) que não tentasse des­ concertar, perturbar as idéias aceites? Mas é de um “passado” oposto a este que Hegel nos fala — de um passado que estava destinado a ser sublimado, a ser ideologizado — de uma Grécia cujo sentido con­ sistia, já então, em ser ela a Grécia “ atualmente viva” (nos discursos da Convenção ou nas conversas de Goethe). E nisso nada há de para­ doxal: o Espírito-do-Mundo é justamente essa máquina prodigiosa graças à qual o ideológico deixa de ser a deformação do vivido, para ser a verdade do que está morto. Se levarmos em conta esse abismo entre Geschichte e Historie, perceberemos que a História-do-Mundo escapa a todas as críticas que poderiam ser dirigidas a uma narração (de ser parcial, simplista etc.) — e especialmente à acusação de anacronismo. Se é anacrônica, não é por falha do autor — porém por definição, dado que só conserva, de cada seqüência do passado, o que o Espírito foi capaz de assimilar. Para ela, não haverá, portanto, nada que seja longínquo: aonde quer que lance seu olhar, só encontra o que já está presente. Quando per­ corre as religiões, as formas de arte ou as formas políticas (sem nunca interrogá-las, é claro, quanto ao que elas foram: pois seria reconhecerlhes uma objetividade que ficou para trás, uma realidade resistindo, tenaz, por sob a “verdade” delas), é sempre para ver como se antecipa o Presente espiritual que hoje está totalizado, ou a ponto de totalizar-se. Ê porque só fala do Presente espiritual que Hegel pode nos informar, com a maior naturalidade, que a história da sociedade até nossos dias foi apenas a história de como advém a liberdade do Espírito — na paráfrase de uma expressão célebre.78 Seja qual for o trajeto escolhido, ele não comportará surpresas — não porque saibamos previamente o que acontecerá (pois o Espírito não consiste no balanço d’o que aconteceu), mas porque já sabemos o que está em jogo e que cartas vão sair. Barreiras, atalhos, acidentes de percurso ficarão no escuro — e Hegel “historiador” prefere enfatizar a precocidade e não o atraso do Espírito. É somente a propósito de algum advento no tempo factual, do surgimento de uma instituição, que tem cabimento falar em “atraso” —■e não a propósito da manifestação dc Espírito. E verdade que o 50

Espírito pode haver demorado séculos para passar de uma categoria a outra — que ele levou (apreciemos a precisão) dois mil e quinhentos anos para fazer o Ocidente saber quem ele era. Mas, e daí? O Espíritodo-Mundo tem o tempo ao seu dispor. Nem acelera nem atrasa o passo, posto que seu itinerário temporal não passa do avesso, e da aparência, de seu entesouramento. Progredir, para ele, é clarificar-se. Ele não está no devir: é devir; entendamos: a supressão do que deveio. Voltamos sempre a esse mesmo ponto, no qual a vanitas vanitatum é autodemonstração da eternidade. Mas é a recorrência desse mesmo ponto que permite avaliar como foi errado acusar Hegel de divinizar a história. Quando Schopenhauer ataca o "historismo” hegeliano, sem dis­ tinguir Hegel de seus discípulos, é forçoso reconhecer que ele está desafiando um fantasma. “O fitósofo”, escreve então, “não compar­ tilhará mais a crença do vulgo em que o tempo possa trazer-nos algo realmente novo ou significativo; não tem mais cabimento conceber que algo possa, por si ou através de si, culminar no ser absoluto [. . . ] ”.79 Porém essa crítica apenas seria pertinente caso a História-do-Mundo fosse como que uma obra que o tempo iria construindo, pedra sobre pedra. E valerá a pena proclamar que as formas históricas são aci­ dentais, insignificantes, justamente contra quem afirmava o seguinte: “Se instalarmos o divino no histórico, recairemos no flutuante e no variável, que são característica de tudo o que é histórico”? . . . 80 Parece que Schopenhauer sequer se perguntou por que acontecia de Hegel utilizar, com tanta freqüência, uma linguagem igual à sua — tão convencido estava ele de que o hegelianismo só podia ser a divinização integral (e aberrante) do contingente. Hegel diz que a Hisíóriadiscurso, percorrendo o aparecer do Espírito, lida “somente com o eterno”: Schopenhauer entende que o Absoluto reside “na turbulência dos acontecimentos”. E essa leitura inverte, por completo, o sentido do hegelianismo. Ela somente teria cabimento se Hegel tivesse feito do tempo “o poder” do Conceito — e não o contrário. Somente teria cabimento se Hegel não tivesse afirmado, com toda a clareza, que o Conceito “não está no tempo nem é nada temporal...” 81 Assim, Schopenhauer é um excelente exemplo do contra-senso mor contra o qual Hegel advertia seus leitores. Quando lemos que “o supra-sensível é o fenômeno enquanto fenômeno", “compreenderíamos tudo pelo con­ trário [verkehrtes Verstehen] se disso concluíssemos que o suprasensível é o mundo sensível [ . . . ] ” 82 — e então seria brinquedo de criança retrucar que “o supra-sensível não é o fenômeno”. Porém, acrescenta Hegel, esse leitor mal avisado não está entendendo real­

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mente por “fenômeno” o fenômeno-, ele pensa no mundo sensível “como realidade-efetiva igualmente real”. Em outras palavras: esse leitor está tão penetrado da realidade do que ele chama de “ fenômeno” (tão convicto da indestrutibilidade do sublunar) que sua resistência à dialética se mostra insuperável. Se lhe falam da finitização do Infi­ nito, do tomar-se-mundo do divino, ele prontamente imagina uma identificação pura e simples das duas instâncias (Infinito/finito, Idéia/fenômeno), que ele pensa como disjuntas — e por isso só pode ler, nessas teses, um enunciado absurdo e extravagante. Os que com­ preenderam o espinosismo como sendo um ateísmo cometeram um contra-senso do mesmo tipo, por não serem capazes — conservando-se “filhos da Terra” — de suspeitar que o espinosismo pudesse ser um acosmismo. Assim Schopenhauer não enxerga que a História-do-Mundo, longe de constituir uma sacralização do efêmero, ao contrário, é justa­ mente o funcionamento mais perfeito do acosmismo, a mais irrefutável demonstração de que “este mundo” não tem espessura suficiente para ser distinto do divino, para ser oposto ao divino. A Schopenhauer, Hegel já teria pois uma resposta pronta: o verdadeiro “mau cristão” é o que começa atribuindo ao finito um ser inalterável, e depois taga­ rela sobre a vanidade “deste mundo”, sem perceber que a História-doMundo é o discurso d’t ssa vaidade. É a propósito desses cristãos míopes que Hegel cita o verso de Ovídio, Si fractus illabatur orbis, impavidum ferient ruinae”, acrescentando: “o cristão deve sentir-se ainda mais indiferente que isso”.83 Contudo, para evitarmos o contra-senso de Schopenhauer, não é o caso de cairmos em outro — entendendo que Hegel prega a morte para o mundo e a mortificação. Longe disso. O lugar do cristão hegeliano “ impávido” é a vida-ética, é o Estado, é o mundo. “A justo tí­ tulo deu-se à filosofia o nome de sabedoria-do-mundo [Weltweisheit] ”, pois a Revolução de 1789, realizando-a, mostrou que “ela não é apenas a verdade em-e-para-si como pura essencialidade, mas também a ver­ dade viva no mundo”.84 Mas tomaremos a precaução de não conferir à palavra Weltweisheit o sentido de “sabedoria profana” ou de “sabe­ doria deste mundo”, de não designar com ela um saber restrito ao horizonte do mundo, “que só lidaria com fenômenos e finitudes”.85 Nesse sentido, Hegel rejeita uma Weltweisheit que daria ao “mundo” a dignidade de uma região ontológica, de uma physis separada, e que só poderia ser a dos “maus cristãos”. Ninguém se confunda, então, com a vocação mundana da filosofia especulativa. É verdade que ela nos convida a viver plenamente no mundo, porém num “mundo” de­ purado do “ mundano”, “espiritualizado” pelo Estado — num “mun­

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do” tão impregnado pelo divino que não poderá mais ser descrito, localizado, nem mesmo como “vale de lágrimas”. Um mundo luterano, sombrio e sóbrio, no qual a presença sensível perdeu prestígio, no qual a arte é coisa do passado.86 Nesse mundo, que a História-doMundo cristianizou por completo, por que o cristão se sentiria em terreno profano? Joachim Ritter mostrou muito bem a originalidade de Hegel nesse ponto: inútil inventar uma nova religião (Auguste Comte), inútil voltar à civilização cristã e i egredi para antes da Aufklärung e da Revolução (reação romântica) — porque agora so­ mos, efetivamente, cristãos.87

Ora, basta levar a sério essa convicção para m dar inteiramente o modo de analisar a “desmedida” que seria caracter tica do Sistema hegeliano, isto é, para cessar de acusá-lo em nome do que Hegel deno­ minaria “a finitude". Quando Schopenhauer fala do “dogmatismo hegeliano”, sua linha de ataque continua sendo kantiana: para ele, Hegel é antes de mais nada um dos “fanfarrões”, dos “charlatães” que pretenderam enfrentar o interdito kantiano e revelar a essência das coisas. É esse mesmo tema que Nietzsche retoma em seus pri­ meiros escritos, e que motiva sua severidade para com Hegel: o Saber especulativo é simplesmente um saber exagerado do Absoluto, uma theoríá ilegítima, e a História concebida por Hegel apenas comprova esse desrespeito, esse desacato ao enigma das coisas. “ Hoje em dia, depois do que Kant escreveu, é arrogância, é ignorância propor à filosofia, como fazem em especial os teólogos mal instruídos que querem brincar de filósofos, a tarefa de apreender o Absoluto com a consciência — por exemplo, na forma utilizada por Hegel: o Absoluto está presente, como poderíamos ir procurá-lo?” m A hostilidade de Nietzsche para com Hegel está governada, aqui, por uma inspiração kantiana. A mesma que o leva, num texto de 1872, a considerar “ im­ portantíssima” a frase de Kant “Precisei suprimir o saber para dar lugar à crença”. “ Importantíssimo”, anota Nietzsche. “Uma necessi­ dade de cultura impeliu-o [ . . .] [Kant] quer deixar um domínio fora do saber, um domínio no qual estão as raízes de tudo o que é mais elevado e mais profundo: a arte e a ética [ . . . ] . ” 89 Ora, nove anos mais tarde, no prefácio a Aurora, Nietzsche vai comentar de maneira muito diferente esse mesmo tema kantiano: não é mais uma “necessidade de cultura” que ele enxerga, porém a marca do “ pessi­ mismo” atávico de Kant.90 E não será, pergunta, mais uma marca desse “pessimismo alemão” o haver-se lido “um rastro de verdade, 53

uma possibilidade de verdade” no princípio hegeliano segundo o qual “ a contradição move o mundo; todas as coisas se contradizem a si mesmas”. No entender de Nietzsche, Kant e Hegel agora ocupam a mesma posição; Kant e Hegel pertenciam à mesma família.91 Limi­ tação do saber em proveito da razão prática, explosão do devir em uma Verdade da História: duas figuras da mesma escatologia. Como era superficial, portanto, opor, à hybris do Saber absoluto, a limitação crítica do saber, como se o erro de Hegel consistisse em tentar arrom­ bar, teoricamente, o segredo da coisa-em-si. Nada mais escolar (pensa, agora, Nietzsche) do que o paralelo Kant-Hegel que se constrói com base nessa oposição. Quer o Absoluto seja posto como visível, quer como invisível, o importante é que ele está sendo posto, e que a um reino dos fins (meramente ideal ou já realizado, é o que menos im­ porta. . .) se sacrifica a auto-suficiência do que está em devir. Entre Kant e Hegel, portanto, que diferença de natureza existe, se o criticismo consiste em libertar-nos do horizonte da mundanalidade, em de­ preciar aquilo mesmo que a dialética, mais radical, quer pura e sim­ plesmente anular? Kant: um império dos valores morais, de nós arredado, invisível, efetivo — Hegel: uma evolução demonstrável, o império moral tornando-se-visível [Sichtbarwerdung], Não queremos ser enganados nem da maneira kantiana nem da hegeliana — não acreditamos, como eles, na moral, e por isso não precisamos mais fundar uma filosofia a fim de conservar os direitos da moral. N ão é por esse aspecto que o criticismo e o historicismo ainda nos atraem. E por­ tanto: será que eles ainda nos atraem?92

Assim se põe um ponto final no eterno debate do saber crítico versus o Saber absoluto. O que merece ser contestado não é a petu­ lância do Saber absoluto, é a idéia mesma de Saber e a atitude que ela implica: uma depreciação de princípio do que é “mundano”, do “devindo”. E é somente agora que assume pleno valor o juízo, ainda incoativo, que a Segunda Consideração Intempestiva emitia sobre a História, como trabalho de luto, como obra de coveiro. E agora que se compreende por que, nessas páginas, Nietzsche se via com direito a pôr no mesmo plano a erudição (Gelehrsamkeit) histórica — que Hegel desdenhava — e a História-discurso à maneira hegeliana.93 Com efeito, enquanto instrumentos do "Saber”, ambas terminam conver­ gindo, e ambas são igualmente condenáveis. Qual é a culpa, em sín­ tese, da erudição histórica? Não é tanto, como queria Hegel, o fato de reduzir conteúdos de sentido a acontecimentos, o discurso de uma

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“coisa" a uma cronologia; e sim o repetir o passado enquanto o irre­ mediavelmente afastado, enquanto o que não mais existe. Ora, to­ mando essa direção niilizante, o que a História-discurso faz é simples­ mente ir ainda mais longe: mais mórbida que a própria erudição, ela diz o passado enquanto o que devia anular-se. Da tristeza historicizante, ela faz a suprema virtude. A nostalgia que leva o homem “histórico” a tornar-se colecionador maníaco do passado nela se transforma em discurso da morte, em tanatologia: tal como a morte, ela “ referenda esse conhecimento: que diz que a existência não passa de um ter-sido ininterrupto [ein ununterbrochenes Gewesensein], de uma coisa que vive do fato de se negar a si mesma e de se consumir, de contradizerse”.94 Se a atitude historicizante exprime “o ressentimento do querer contra o tempo e o seu Es war”, a História-discurso é o que duplica e normaliza esse ressentimento, até convertê-lo no que Zaratustra cha­ mará de “pregação da loucura”: E então nuvens sobre nuvens encobriram o espírito, até o dia em que a loucura terminou por pregar: Tudo passa, quer dizer portanto que tudo merece passar, e essa lei do tempo que o obriga a devorar suas crias é a própria Justiça. Assim pregou a loucura.95

O Saber, que tem na História-discurso sua realização extrema, é a loucura cristã já sem nenhuma contenção. Pois a palavra “cristia­ nismo” tem de ser pronunciada, para que a História, e por seu inter­ médio o “ Saber”, possa ser acusada com todo o rigor. Precisa ser pronunciada a palavra “cristianismo”, para que o diagnóstico de Nietzsche sobre o hegelianismo possa distinguir-se de todos os outros, e sua voz se realçar frente a todas as que se limitaram a acusar Hegel de escamotear o sofrimento, a morte, o conflito, em suma, “a finiiude”. Nunca será demais insistir em que tais críticas sequer abalam um discurso que está constituído de modo a prevê-las, e a descartá-las como meras objeções impacientes do "pensamento finito”, quer dizer, objeções formuladas em nome de uma “verdade” que é posta como externa ao Absoluto, de conformidade com essa atitude de exteriori­ zação prévia, que Mareei Paquet analisou tão bem em seu livro L’Enjeu de la philosophie.96 Uma oposição dessas ao Saber absoluto passaria, aos olhos de Hegel, por uma polêmica de estilo kantiano — e não é difícil conceber qual seria sua réplica: “Então vocês afirmam que eu reconcilio fácil demais o Conceito e a realidade? Pois se de­ monstro que é por mera teimosia que vocês começam pondo o Con­ ceito fora da ‘realidade’. . . Causa-lhes espécie a desmedida do Saber absoluto? Pois o que me espanta é que a ‘ternura’ de vocês ‘pelo finito' 55

os faça considerar ‘exagerado’ o discurso da Verdade.97 Quer dizer que não importa quem sejam vocês: ainda que não o saibam, vocês são, ou continuam sendo, cristãos ‘representativos’, inconseqüentes com a fé cristã. . . ” Pois, na linguagem hegeiiana, a “exteriorização” desastrada que já torna ininteligível o Absoluto especulativo desde o começo do jogo pode muito bem ser representada como uma decorrência dessas filo­ sofias que se dizem “cristãs”, porém são atavicamente irreligiosas de­ vido ao seu “finitismo” — pois se conservaram cegas ao sentido da Encarnação, e por isso não puderam reconhecer o alcance da Offen­ barung do divino, que o cristianismo foi a única religião a anunciar. Do cristianismo elas só quiseram guardar o “reino do Pai”, a idéia abstrata de Deus como Gedankenwesen, portanto como um Criador cuja onipotência confinava a criatura no desamparo, porém igualmente no conforto, de sua finitude. Esse cristianismo que Hegel julga falsi­ ficado — e que ele mesmo confundiu, outrora, sob o nome de “reli­ gião positiva”, com a autêntica religião — está na base de todos os pensamentos que ele denomina “finitistas”. Sejam eles “cristãos” agnósticos ou ateus, todos têm essa representação como aceite. Por­ tanto, todos ecoam a doutrina que ensina “a dependência frente a um ser absolutamente estranho, que não pode tomar-se homem ou, se se tornou tal [no tempo], nessa própria união conserva-se um ser abso­ lutamente particular, absolutamente único”.98 E, por sinal, é exatamente essa representação a-crística que torna o pensamento finitista incapaz de pensar a História, pois é Cristo quem anuncia que a História tem termo e tinha sentido. Ou seja — é somente conferindo à Revelação todo o peso que ela possui que podemos constituir o conceito de His­ tória-do-Mundo. O que Feuerbach percebeu com muita perspicácia, numa das (numerosas) páginas da Essência do Cristianismo em que acontece de ele comentar Hegel sem o mencionar: [ . . . ] O Cristo cristão e religioso não é pois o centro, porém o termo da história. Isso decorre tanto do conceito quanto da história. Os cristãos aguardavam o fim do mundo, o fim da história [ .. . ] A história assenta somente na distinção do indivíduo e do gênero. Se cessa essa distinção, finda igualmente a história, e a compreensão e o sentido da história se desvanecem. Ao homem só resta a con­ templação e apropriação desse ideal realizado f . . . ] 99

Assim, a incompreensão que se pode opor à História-do-Mundo ou ao Saber absoluto decorre de uma cegueira ante a idéia de reconci­ liação, e só pode remeter a uma idéia falsa e prévia acerca da religião 56

cristã (e, sob tal ótica, pouco importa, repetimos, que o leitor assuma ou combata essa idéia, se não lhe contesta a autenticidade). Em con­ trapartida, História-do-Mundo e Saber Absoluto perdem muito de sua estranheza, desde que se admite reinscrevê-los no trabalho interpretativo que autorizou Hegel a elaborar a noção de religião absoluta. E a discussão entre Saber absoluto e críticas “finitistas” se aclara mui­ tíssimo quando é referida à questão seguinte: quem são os maus cris­ tãos? — os que aceitam uma imagem do cristianismo centrada na transcendência ou, como Hegel, os que nele enxergam a religião da Offenbarung? Essa alternativa, está evidente, é de inspiração hegeliana: e nos foi sugerida pela leitura de Hegel. Por isso pode haver cabimento em observar que ela seria impertinente, e mesmo aberrante, se aplicada por exemplo à atitude crítica dos jovens hegelianos: haveria sentido em incluir o jovem Marx entre os herdeiros do “cristianismo finitista”? A essa pergunta, sem querer retomar mais uma vez o problema da relação do jovem Marx com Hegel, eu me permito propor a seguinte resposta. Esta distinção de base hegeliana, por arbitrária que pareça à primeira vista, tem pelo menos a vantagem de oferecer uma pista diferente da que vem sendo trilhada desde o jovem Marx. Pois ela nos liberta da sacrossanta esquematização abstrato/ concreto, mistifi­ cação/volta ao real. Como pôde Marx acreditar que essa linha de aná­ lise — que, ousemos dizer, parece muito superficial a um leitor de Hegel despido de preconceitos — o capacitasse a penetrar no cerne mesmo do hegelianismo? Esse topos, sabemos, vinha-lhe de Feuerbach. Mas constatá-lo apenas desloca a dificuldade. Como pôde Feuerbach interpretar a “mística racional” como sendo o lugar de uma perma­ nente troca entre ser e conceito, entre coisa real e representação? Como pôde um bom conhecedor de Hegel servir-se, com tão pouca cerimônia, desse vocabulário "finitista”? Tanta desenvoltura não se deve, é óbvio, a alguma leviandade. Parece, isto sim, que Feuerbach entendia mostrar que Hegel, apesar de suas bravatas, não conseguiu absolutamente suprimir na realidade (e como poderia tê-lo feito?) a separação do ser e do pensamento — que Hegel não refutou, de forma alguma, o exemplo, “perfeitamente justo”, que Kant cita, dos ceai táleres pensados e dos cem táleres reais — e portanto que esse “ teó­ logo” jamais saiu do “pensamento subjetivo”, porém se contentou em forjar uma representação fantástica deste, sob os nomes de Conceito ou Absoluto, de modo que “ele não aparentasse mais ser um eu, um ser subjetivo”.100 Foi pois de maneira muito consciente, muito agressi­ va, que Feuerbach retomou o pressuposto da “representação”, o pressu­

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posto “jinitista”, Não se transgride o que Hegel chamava de “atitude representativa” —- e, para o pensamento dito “absoluto”, “o ser con­ tinua sendo um além”: era essa a sua convicção (a é provável que uma tal transcrição “finitista” do hegelianismo seja responsável, ao menos em parte, por muitas das brincadeiras “gnoseológicas” feitas à volta do tema “materialismo-idealismo”). É perfeitamente correto partir dessa escolha ontológica para prin­ cipiar uma análise do debate Hegel-Feuerbach. Mas será igualmente correto — por que não? — codificar a oposição de outra maneira, substituindo a grade “ finitista” abstrato/concreto pela grade hegeliana pensamento finitista/pensamento reconciliador, cristianismo de Enten­ dimento/religião absoluta. É perfeitamente viável proceder a essa aná­ lise guiando-se pela tópica hegeliana que acabamos de mencionar, e os textos de Feuerbach, como os do jovem Marx, prestam-se muito bem a tal reestruturação. Em suma: há uma exegese hegeliana lícita da crítica à “abstração lógica e teológica”, que considerará esta última como nada mais do que uma das escolhas dentro do tabuleiro hege­ liano de jogos. E portanto será válido perguntar se o ataque contra o “dogmatismo”, o “ teologismo” , o “panlogicismo” não consistiria, em última análise, numa forma de tomar partido num debate cujas regras foram fixadas já por Hegel. . . Temos um sinal suplementar a justi­ ficar esta hipótese: o fato de que Hegel foi tantas vezes apontado como “metafísico” ou “teólogo”, e tão raras vezes como cristão — o fato de que os “ ateus” da década de 1840 tenham preferido enxer­ gar nele o anunciador da morte do cristianismo. É que esse “ ateísmo” volta seus golpes, antes de mais nada, contra o caráter “positivo” da transcendência cristã, e portanto se molda na representação “finitista” do cristianismo — e, dessa perspectiva, a filosofia especulativa apa­ rece basicamente como a liquidação (ainda que desajeitada, ainda que delirante) do cristianismo. O Deus hegeliano, brada Feuerbach, é um “Deus ateísta”; para Bruno Bauer, Hegel é “o ateu e 0 anticristo”.101 Não era a realização do cristianismo que esses leitores “ateus” dese­ javam acusar na obra do mestre. Eles, que das alturas da especulação pretendiam retornar à terra, prestavam mais atenção à concepção abstrata do Absoluto especulativo, ao seu porte desconcertante, fran­ camente mistificador: “a filosofia especulativa”, escreve Feuerbach, “toma quase todas as coisas num sentido em que elas se tornam irre­ conhecíveis”. O que significa que o ateísmo começa, é verdade, com Hegel (“ a filosofia absoluta transformou mesmo o além da teologia em um mundo desta terra [. . .] ”), porém sob uma forma aberrante: é o “infinito” fantasmático dos teólogos que investe o finito, é o além

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deles que vem inscrever-se no mundo daqui. . . E assim aparece com toda a clareza qual pode e qual deve ser a tarefa do ateísmo conse­ qüente e assumido: chegou a hora de inverter esse movimento, de fazer do áníhropos finito a verdade do theós, do finito a verdade do “ infinito”.102 Será preciso insistirmos, ainda, em que essa representa­ ção de um campeonato entre “finito” e “ infinito” apareceria a Hegel como o extremo absurdo em que pode cair o pensamento “finitista”? Mas o que ora nos interessa é outra coisa: é que Feuerbach não pára de se colocar como “finitista” no sentido hegeliano. E por isso nada mais natural do que esse “mau cristão”, no sentido hegeliano, denun­ ciar em Hegel um “mau ateu” e desenvolver portanto sua polêmica num terreno que foi preparado e minado pelo próprio Hegel. E por isso que, mesmo quando Feuerbach afirma que Hegel “transformou este mundo, o mundo real, em um além”, não chega a atacar, como fará Nietzsche, o caráter fundamentalmente cristão da especulação. O Hegel que ele nos delineia é apenas culpado, perdido que estava em seu delírio teológico, de sacrificar o finito ao “ infinito”, de abandonar a presa pela sombra — em suma, de ignorar seu pró­ prio ateísmo. Isso há de espantar? Ele era “ idealista”, e morava em Passarópolis das Nuvens. . . Pois uma das funções — quem sabe a essencial — do celebérrimo c polêmico conceito de “idealismo hege­ liano” consiste em explicar (?) por que Hegel se manteve cego e surdo ao seu próprio ateísmo — e, dessa maneira, em tornar impossível toda e qualquer leitura da dialética enquanto estratégia cristã. Considerado um mau ateu, Hegel não passa de um “mistificador” — e basta essa palavra para desviar-nos a atenção, para apagar a fisionomia do cris­ tão extremista, que na Encarnação só valorizava a morte terrena do Deus feito homem,103 que fazia da anulação do devir a única justi­ ficativa para este último. Recusar a "abstração” do Sistema é um modo de ocultar o niilismo no qual ele desemboca: a imagem do “pensador abstrato” assim dissimula a do negativista. Talvez, até, ela seja constituída com este objetivo. Pensador “abstrato” ou pensador cristão? Conforme a exegese se oriente numa pista ou noutra, será muito diferente a apreciação que ela proporá da Weltgeschichte. Seguindo a primeira leitura, esta julgar-se-á delirante, porque foi capaz de apresentar a história “real” como sendo reflexo das aventuras da Idéia, esse ser de razão que só existe na cabeça do pensador — e todos os sarcasmos a ela dirigidos não impedem, longe disso, que se imponha a tarefa de ir procurar em outra parte o fundamento “ real”, sério, d a . . . História. A se­ gunda leitura não dará lugar, é verdade, a graçolas de “filhos da 59

terra”; mas será mais severa (a frase de Lenin, segundo a qual a teoria da história é a “ parte mais fraca” do sistema de Hegel, até parecerá uma fórmula. . . muito fraca). A Weltgeschichte é simples­ mente uma idéia escandalosa e, por conseguinte, nenhuma transposi­ ção é viável para ela. Seu conceito não precisa ser corrigido de lugar, mas sim destruído, pois qualquer sentido novo que lhe impusermos nada mais será do que uma variação sobre o sentido nuclear, tão bem desvendado por Hegel, de “castigo do devindo”. Qualquer antropodicéia que venha substituir a “verdadeira teodicéia” continuará enrai­ zada na necessidade (besoin) de dar sentido e justificativa — nessa “teimosia característica dos Tempos Modernos e que constitui o prin­ cípio mesmo do protestantismo”.104 Ánthropos em vez de theós, per­ guntava Stirner a Feuerbach, e daí? o que você ganha com a troca? “Teologismo inveterado”, “mistificação” — essas acusações re­ duzem-se a pecadilhos, se partirmos da idéia de que toda “História”, e não apenas a História "idealista”, só pode nascer de uma opção niilizante quanto ao devir. Esse tema, que é melhor chamarmos de contra-hegeliano em vez de anti-hegeliano (para deixar bem claro que ele exclui toda operação de inversão ou de “ supressão-realização” do hegelianismo), vemos surgir em Nietzsche já nos escritos sobre a filo­ sofia gr°,ga, quando interpreta Heráclito — e de maneira ambígua, pois ele parece introduzir uma outra teodicéia, um outro juízo acerca do devir: [, . 1 o mundo inteiro proporciona o espetáculo de uma Justiça soberana e de forças naturais demoniacamente onipresentes, curva­ das a seu serviço. O que eu vi não é o castigo do que veio-a-ser [Bestrafung des Gewordenen], porém a justificação do devir [Recht­ fertigung des Werdens] [ . . . ] Onde reina solitária a Lei, a filha de Zeus, a Diké, como sucede neste mundo — por que reinaria a falta, a expiação, a condenação, por que seria esse o lugar do suplício de todos os malditos?105

Heráclito seria, então, um pré-leibniziano? Não. Melhor consi­ derar que, nessas linhas, Nietzsche já se coloca “em ponto de oposi­ ção extrema” 10
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