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1 A clínica psicanalítica e seus vértices: Continência, confronto, ausência. Luís Claudio Figueiredo1 Resumo
O texto apresenta uma proposta de conceber a clínica psicanalítica a partir de três vértices: o da clínica da continência, o da clínica do confronto e o da clínica da ausência. Para cada vértice são dados os fundamentos metapsicológicos, seus alcances terapêuticos e seus riscos e impasses. Ao mesmo tempo vai se mostrando a necessidade e a possibilidade de articulação dos três modelos clínicos na constituição de um pensamento clínico complexo. A obra de Wilfred Bion nos servirá tanto para a caracterização dos três vértices como para a sua articulação e integração. Palavras chave: clínica psicanalítica, continência, confronto, ausência, Bion. Summary
The psychoanalytic clinical work is here conceived from three different vertices: the clinic of continence, the clinic of confrontation and the clinic of absence. Each vertex is studied in terms of its metapsychological fundament, its therapeutic value and the risks and impasses it implies. At the same time the author assumes that there is a possibility and even a necessity of the simultaneous presence and articulation of the three clinical vertices in order to create a more complex clinical thought. The work of Wilfred Bion is used as a guideline toward the description of the three vertices, their articulation and their integration. Key Words: psychoanalytic clinical work, containing, confrontation, absence, Bion.
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Psicanalista, professor da USP e da PUC-SP, autor de dezenas de artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras e de diversos livros, entre os quais: Ética quais: Ética e técnica técn ica em Psicanálise Psic análise,, Psicanálise: Psicanális e: elementos element os para a clínica contemporânea, contemporânea, Melanie Klein, Kle in, estilo e pensamento pensame nto,, As diversas diversa s faces do d o cuidar e Bion e Bion em nove no ve lições. lições. End. Rua Alcides Pertiga 65, cep 05413-100, São Paulo, SP; email:
[email protected] .
2 A clínica psicanalítica e seus vértices: Continência, confronto, ausência.
O presente texto versa sobre as três clínicas da psicanálise, psicanálise, tal como podem ser concebidas a partir de ideias de Wilfred Bion, com o intuito de mostrar tanto como os três vértices de pensamento clínico se diferenciam quanto, como é o caso deste autor, podem e devem se integrar em um pensamento um pensamento clínico complexo. clínico complexo. Avisamos de saída que não pretendemos fazer uma apresentação sistemática e inclusiva do pensamento de Bion. Este nos será de valia exclusivamente para destacar os três modelos de clínica, suas potencialidades, seus riscos e suas possibilidades de articulação. Como bons exemplos da dominância de cada vértice sugerimos os trabalhos de Levine, Mitrani e Vermote, publicados na recente coletânea Bion coletânea Bion Today (Mawson, Today (Mawson, 2011). Preliminar: 1- Bion, clínica psicanalítica e epistemologia:
Não obstante, algumas informações preliminares pre liminares sobre Wilfred Ruprecht Bion podem ser de alguma utilidade. Nascido na Índia de d e uma família inglesa em 1897, aos oito anos foi para a Inglaterra onde se formou em medicina e psicanálise. Lá atuou durante muitas décadas como psiquiatra e como psicanalista. Depois de passar os últimos dez anos de sua vida em Los Angeles, retornou à Inglaterra, onde faleceu em 1979. Bion tornou-se, em Londres, um expoente original do pensamento kleiniano e, em seguida, seguiu uma trilha própria, sem renegar Klein e Freud, mas levando-os mais longe em termos teóricos e epistemológicos e também... geográficos: Califórnia, Itália, Argentina e Brasil, aonde esteve por diversas ocasiões na década de 70 (73,74, 75 e 78, em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília). Entre nós deixou uma herança muito forte, ao menos nestas três cidades, e um grupo relativamente coeso de discípulos. Durante alguns anos, Bion trabalhou com grupos e depois com o atendimento de psicóticos, deixando uma obra original nestes dois campos, embora no segundo sejam s ejam evidentes as marcas do pensamento kleiniano. Neste período, na verdade, foi um dos mais importantes seguidores de Melanie Klein, ajudando a expandir o alcance prático e teórico do kleinismo. No início da década de 60 inicia uma série de publicações publicaçõe s extremamente originais.
3 Foram diversos livros que entre 1962 e 1970 enriqueceram e deram novos rumos ao pensamento psicanalítico: Aprendendo com a experiência, Elementos de psicanálise, Transformações e Atenção e interpretação. Este foi o período chamado por um biógrafo de ‘período epistemológico’ (Bléandonu, 1993). Na última década de sua vida, residindo nos EUA e viajando muito, Bion deu palestras e conferências – diversas no Brasil – que trouxeram novidades para a clínica, e ainda escreveu uma obra mais literária que estritamente psicanalítica, os diversos volumes de Uma memória do futuro. Os que se remetem de Bion diferenciam-se uns dos outros ao optarem por um destes períodos ou campos de ação: há os que se ligaram mais ao trabalho com grupos, os que privilegiam o momento mais kleiniano de trabalho com psicóticos e a formulação de uma teoria do pensar (artigos publicados na década de 50 e reeditados em 67 com o título de Estudos psicanalíticos revisados), os que se ligam aos livros da década de 60, e os que privilegiam as palestras e conferências da última década de vida (cf. Chris Mawson, 2011). Sem desprezar nenhuma das épocas e campos de ação, considero os livros que vão de 62 a 70 – os do ‘período epistemológico’ – os mais decisivos para garantir a este autor um lugar de destaque no movimento psicanalítico mundial. No que se segue, elementos de diferentes períodos da evolução de Bion serão aproveitados. No período epistemológico, o psicanalista Wilfred Bion, fortemente ligado a questões filosóficas, dedica-se a pensar as questões da experiência, do pensamento, do conhecimento e da busca pela verdade, que, no entanto já se anunciavam nos períodos anteriores e serão conservadas no posterior. Além de amor e ódio, duas modalidades essenciais de ligação com os objetos, Bion, dando desenvolvimento às ideias de Freud e Melanie Klein sobre a pulsão epistemofílica, postula o vínculo K (uma ligação pela via do conhecimento, knowledge) como sendo tão básico e essencial quanto as outras formas de ligação. É a partir deste vínculo K que pode se desenvolver desde o início da vida uma curiosidade pelo mundo e seus objetos, em particular os corpos dos objetos primários e pelo corpo próprio. Não se trata, na verdade, do conhecimento dos fatos e objetos do mundo, mas do (re) conhecimento da experiência emocional – associada ao amor e ao ódio – diante destes objetos e capaz de gerar em si mesma uma experiência emocional da verdade (a verdade em K, cf. Fisher, 2011).
4 Mas além desta verdade que se dá pela via do conhecimento – reconhecimento compartilhado – da experiência emocional, Bion nos fala da experiência de O – a experiência emocional em sua condição de Origem de toda a nossa vida somatopsíquica: aqui não se trata de ‘conhecer’, mas de ‘tornar-se’, reconciliar-se em profundidade com a própria experiência emocional inconsciente, sem defesas e subterfúgios, inclusive sem a redução desta experiência ao campo dos sentidos instituídos e reconhecíveis pela consciência Neste contexto, que ultrapassa a epistemologia clássica, pois o que está em jogo não é a correspondência entre a representação e o seu objeto, dá-se ‘uma outra verdade’, a verdade em O, da maior importância para a clínica psicanalítica cujas metas não se reduzem a conhecer ou reconhecer-se – embora passem por isto – mas se projetem no rumo de uma efetiva transformação subjetiva, o que só acontece a partir do contato profundo e sem disfarces do sujeito consigo mesmo, com o inconsciente infinito que o habita e move. E além da verdade em K e da verdade em O, tentaremos mostrar a importância da verdade ‘nos limites de K’, que, de certa forma, faz a mediação entre as outras duas. Há uma clara inspiração freudiana (e kleiniana) nesta vertente epistemológica, mas os desdobramentos propostos por Bion são inegavelmente muito originais, dando margem a que muitos aí vejam uma real mudança de paradigma e a criação de uma nova escola. Preferimos assinalar as grandes novidades, mas preservar a continuidade entre Bion e seus mestres. Entre outras coisas, porque o estabelecimento de cortes excessivos parece ir contra as ideias do próprio autor. Bion foi fundamentalmente um militante do anti-dogmatismo e da relativização das teorias: não só todas as teorias da psicanálise fracassam na apreensão cabal de seus objetos, pois O, a experiência emocional em si mesma é incognoscível e as teorias são transformações desta experiência que em certo sentido a deformam, como todas elas tanto nos ajudam na clínica quanto atrapalham sempre que nos oferecem a falsa segurança de saber – e saber antecipadamente – o que se passa efetivamente na experiência de análise. Neste caso, alerta Bion, a teoria satura a mente, preenchendo-a com antecipação à experiência e impedindo-a, a rigor, de experimentar, de experimentar a diferença, a alteridade, o novo. É de Bion, de fato, que parte uma advertência crucial: o conhecimento teórico em psicanálise (K), mesmo quando bem formado, pode transformar-se em –K, uma espécie de anti-conhecimento que opera como resistência – resistência ao conhecimento e
5 mais ainda, resistência à mudança, à transformação, na mente do analista. Quando o o analista supõe que de fato sabe, cheio de teorias e ideias previas sobre psicanálise e sobre seus pacientes, torna-se a maior das resistências em um processo de análise. E, no entanto, as teorias da psicanálise nos são indispensáveis e Bion jamais as desprezou, como veremos no que se segue. Sua intenção, em grande medida, foi a de articular as teorias da psicanálise – falamos de Freud e Klein, principalmente – com uma teoria da observação da experiência clínica desenvolvida por ele, principalmente em seus livros da década de 60. Para tratarmos de nosso tema – os três vértices da clínica psicanalítica – começarei minha exposição com as apropriações bionianas de Klein e de Freud que nos darão acesso a dois modelos, para em seguida tratarmos do terceiro vértice. 2- A partir de Klein e a Clínica da Continência.
Um dos grandes achados de Melanie Klein – consolidado e desenvolvido a partir de Clínica 1946 – foi o mecanismo por ela denominado de ‘identificação projetiva’ (Klein, 1946). Os da autores que a sucederam dedicaram-se a estudar a identificação projetiva em suas formas Continência normais e patológicas. De início, a identificação projetiva era vista apenas como uma
defesa primitiva: o ego incipiente, e ainda pouco apto a lidar com as realidades externas e internas potencialmente traumáticas, projetava sobre um objeto suas fantasias e angústias mais insuportáveis, para livrar-se delas e também para tentar exercer um controle sobre o objeto em que eram projetados estes conteúdos, e mesmo para ataca-lo raivosamente (uma raiva que brota diretamente do estado de frustração e desconforto e que precisa ser rapidamente evacuada pela identificação projetiva). Quanto mais primitivo o modo de funcionamento psíquico de um paciente, mais ele se vale de identificações projetivas maciças para defender-se de angústias e para controlar e atacar seus objetos, vistos como maus, persecutórios e culpados. Muitos analistas, até hoje em dia, continuam desenvolvendo nosso conhecimento acerca deste mecanismo de defesa, que costuma ser intensamente ativado na situação analítica, isto é, na transferência. Coube a Bion a descoberta de que, antes de ser uma defesa mais ou menos patológica – característica de pacientes muito perturbados, psicóticos e casos limite, mas de uso bem mais amplo – a identificação projetiva constitui-se como uma modalidade primitiva – mas normal e necessária – de comunicação nas relações precoces mãe-infante,
6 uma comunicação não verbal e pré-verbal; o mesmo se passa nas relações entre paciente e analista, e entre os indivíduos e as formas da cultura e instituições: as angústias e fantasias Reverie
do bebê são projetadas no objeto primário maternante para serem acolhidas, suportadas, elaboradas, interpretadas e no seu devido tempo devolvidas ao sujeito, que as recebe já significadas e muito mais suportáveis. Nas relações entre os indivíduos – todos nós – e as formas culturais, como objetos artísticos, musicais e literários, dá-se o mesmo: eles ‘pensam’ por nós e nos ajudam a elaborar e dar sentido às nossas experiências mais intensas e pungentes. Algo da mesma natureza pode ser observado nas relações dos indivíduos com os grupos e instituições, muitas vezes mediadas pela figura do líder ou chefe. Na situação analítica, a mesma coisa: uma das tarefas do analista é a de acolher, elaborar, interpretar e devolver experiências do paciente tornando-as significativas e suportáveis. Note bem: todo este processo de continência transcorre no plano inconsciente, tanto do sujeito que projeta quanto do que acolhe e contém. É o que Freud já anunciava quando falava em ‘comunicação entre inconscientes’. O analista, porém, deve ser capaz de fazer um uso analítico e terapêutico desta comunicação, o que demanda recursos pessoais e teóricos especiais; tais recursos, a serviço da sua capacidade de observação clínica, obviamente, dependem também de sua consciência e, mais que tudo, de sua ética (o que poderia também ser chamado de ‘o desejo do analista’). A função de ‘continência ativa’ da mãe ou do analista – e mesmo das formas de cultura – foi denominada por Bion de rêverie, uma modalidade de sonho acordado que o agente de continência exerce a favor do outro sujeito: sonha-se por ele de forma a metabolizar e simbolizar suas experiências emocionais. Segundo Bion, nenhuma subjetividade se constitui, ou reconstitui na análise ou em outras situações importante pela vida afora, sem que um objeto contenha nossas experiências mais intensas e perturbadoras, o que confere uma dimensão intersubjetiva fundamental à subjetividade: nascemos e crescemos em termos somatopsíquicos nos contextos de operação de uma estrutura continente-conteúdo, de início, intersubjetiva, e, aos poucos, intrapsíquica. Ou seja, uma mente mais bem constituída será capaz de, dentro de certos limites, operar como continente de si mesma, vale dizer, será capaz de conter,
7 elaborar e interpretar-se: nesta condição podemos dizer que se instalou neste psiquismo uma capacidade de simbolização, um aparelho para pensar a experiência emocional. Antes de avançarmos, uma observação se impõe: enquanto em Melanie Klein a identificação projetiva era estudada apenas do ponto de vista das fantasias do sujeito que projeta, a partir de Bion ela passa a ser vista também pelo lado do ‘objeto’ deste sujeito, o outro sujeito cuja função seria a de oferecer continência, o que nem sempre ocorre ou pode ocorrer de forma muito imperfeita, etc... A partir de Bion, o que se passa com o objeto primário e o modo dele funcionar tornam-se absolutamente decisivos para os destinos do indivíduo que o usa como alvo de suas identificações projetivas. Indo além, é o destino da dupla que se vê afetado, pois as identificações projetivas de um sempre provocam algo no outro, faça este o que fizer, aceite ou recuse a projeção. Ou seja, com Bion a questão intersubjetiva assume realmente uma posição central no processo da identificação projetiva. Convém agora assinalar a dupla dimensão do continente: a continência precisa ser porosa, elástica, receptiva, compreensiva e transformadora; e ao mesmo tempo ela requer uma grande capacidade de contenção, para funcionar como suporte e barreira, não permitindo que os conteúdos acolhidos ‘vazem’ ou ‘transbordem’ de forma indiscriminada ou, pior, retornem imediatamente à sua origem, os sujeitos angustiados, antes do trabalho de rêverie e antes daqueles terem adquirido alguma capacidade de, por sua vez, contê-los novamente. Nesta medida, embora seja possível diferenciar entre o containing de Bion e o holding de Winnicott (cf. Ogden, 2004) a tarefa de ‘continência ativa’ (os processos metabólicos da mente, como a rêverie, com a elaboração, interpretação e devolução dos elementos projetados), pressupõe a ‘continência passiva’, a simples, mas segura e essencial, sustentação. Na ‘continência ativa’ da rêverie ocorrem as transformações em elementos ! (nome que Bion dá aos elementos psíquicos aptos a serem simbolizados, sonhados, pensados registrados na memória) dos elementos !. Estes elementos seriam protomentais – impulsos, afetos, sensações (endógenas e exógenas) que incidem diretamente no corpo, e dele provém, sem possibilidade de ligação e simbolização, produzindo, entre outros efeitos, angústias muito primitivas (a ‘angústia automática’, para falarmos em termos freudianos), desconfortos somáticos, pavores e terrores. A mente do objeto maternante exerceria a função !, isto é, a transformação metabólica necessária à constituição e crescimento da
8 capacidade do sujeito, antes dele ser capaz – ou sempre que ele se mostra relativamente incapaz – de exercer por si só a função ! necessária aos processamentos de suas experiências emocionais mais primitivas. Podemos denominar de experiência da verdade em K a experiência da ‘compreensão’ e do reconhecimento e espelhamento proporcionada pela ‘continência ativa’, a rêverie seguida pela intervenção interpretativa que oferece ao sujeito angustiado, apavorado, etc. uma efetiva metabolização de suas fantasias e angústias de aniquilamento de si e de destruição e perda dos seus objetos. A verdade em K seria assim a do compartilhamento do sentido possível de uma experiência emocional, desde que relativamente bem compreendida e interpretada, e introjetada pelo paciente.. Temos assim construído o modelo de uma clínica da continência. Esta comporta a sustentação e contenção, o acolhimento, a elaboração, a simbolização, a compreensão, o reconhecimento, e o espelhamento. A partir da ‘devolução’ do projetado, após todo este trabalho psíquico do analista, o processo se completa quando todo este material é introjetado pelo paciente. Nos dias de hoje, é raro que o analista, mesmo não seguindo as pegadas de Bion e usando seu linguajar, não faça uso desta vertente do pensamento clínico. Mas é preciso que se tenha clareza dos riscos autoritários (maternalizantes / infantilizantes) de uma clínica da pura continência, mesmo nos casos muito graves, em que ela, sem dúvida é indispensável. Na continência irrestrita, indiscriminada e exclusiva tendem a predominar e a se manter relações parasitárias entre o sujeito e seus ‘objetos’, alvos de suas projeções. Em acréscimo, é grande o risco de asfixia, em que o ‘excesso de continência’ – uma continência ilimitada – configura uma verdadeira invasão de mente do outro sujeito, ou uma compressão esterilizante dos seus conteúdos, quando estes são sistematicamente reduzidos às capacidades de elaboração e interpretação da mente que contém; neste caso, o verbo ‘conter’ significa mais uma ação de contenção coercitiva, como nos procedimentos psiquiátricos ainda em vigor (contenção física ou química). Além destes riscos, cabe assinalar os impasses de uma clínica da pura continência: pode-se aí verificar o incremento da inveja ao continente (que posa efetivamente como um sujeito onipotente que advinha e tudo compreende), e um verdadeiro ódio à ‘compreensão’, pelo aspecto redutor e aprisionante que então exibe. Uma clínica da pura continência pode
9 produzir, de fato, transferências negativas poderosas ou, ao contrário e tão grave quanto, manter uma transferência positiva idealizada e não analisável em que o sujeito é mantido numa situação de infantilidade e dependência crônica a um Outro supostamente onipotente. Ou seja, a identificação projetiva maciça continua operando pela via do antagonismo ou da adesão (estas considerações serão retomadas adiante). Mas estes riscos em nada reduzem o valor da clínica da continência, apenas sugerem a necessidade de ela não ser exclusiva e poder articular-se com outros vértices. Bion, creio que mais que qualquer outro psicanalista, nos ajuda nesta articulação, pois a partir dele podem-se pensar os outros dois modelos de clínica que nos levam em direções muito diversa e suplementares. 3- A partir de Freud e a clínica do confronto e da frustração:
Embora a própria Melanie Klein jamais tenha se sentido distante de Freud, apesar de suas inovações revolucionárias na teoria e na clínica, muitos de seus discípulos mais originais empreenderam ‘retornos a Freud’ ou a partes escolhidas de suas obras. Bion é um destes autores que disputa o título de ‘o mais freudiano dos ingleses’, ao menos dos ingleses que pertenciam ao grupo kleiniano, pois havia os outros, mais ligados a Anna Freud ou independentes que sempre mantiveram uma ligação preferencial com o tronco freudiano. Como sabemos, a clínica freudiana foi desde sempre, embora se modificando ao longo das décadas e períodos de sua obra, uma clínica de identificação, enfrentamento e atravessamento das resistências. A concepção freudiana de ‘resistências’ foi se modificando até se estabelecer na forma complexa que apresenta em Inibição, sintoma e angústia (Freud, 1926): há cinco classes de resistência, três provenientes do ego, uma do id e uma do superego, sendo que estas são extremamente fortes e quase irredutíveis. Não nos interessa neste momento desenvolver esta questão, apenas insistir no fato de que o tema das resistências esteve presente desde o começo (incluindo o período pré-psicanalítico) até o fim do trabalho de Freud e, por via de consequência, certa noção de confronto se impõe neste modelo. Entre as resistências estudadas por Freud, Melanie Klein deu particular atenção ao superego – não só na sua forma madura concebida por Freud, mas na sua forma precoce e muito mais terrível – e ao id, em particular à chamada pulsão de morte. Juntas
10 elas se fortalecem mutuamente e criam um panorama sombrio para o processo analítico quando este precisa se confrontar com a fantasia de onipotência infantil encastelada, defendida, quase inexpugnável, tal como aparece em ação em casos graves, psicóticos e fronteiriços. No entanto, conforme nos ensina Bion, núcleos psicóticos existem em todos nós, lado a lado com núcleos neuróticos, o que significa que há aspectos resistenciais altamente entrincheirados em todos os psiquismos, não se limitando a dificuldade aos casos mais perturbados e de constituição mais precária. Isso tem como consequência que o relativo pessimismo de Freud em Análise terminável e interminável (1937) tornou-se, a partir de Klein e de Bion ainda mais justificado. O que não significa ‘entregar os pontos’, mas exige um confronto muito mais duro e duradouro do que seria desejável – muito mais tempo e empenho de perlaboração – quando é preciso conduzir o processo analítico por certas zonas altamente resistenciais. Bion foi um leitor entusiasmado de certos textos de Freud. A passagem da dominância do princípio de prazer à dominância do princípio de realidade, tal como concebida no texto de Freud (1911) sobre os dois princípios do funcionamento mental, por exemplo, esteve no centro de muitas das suas cogitações. Sabemos, desde Freud, qual é o modo primitivo e onipotente de funcionamento mental que ele denominou de processo primário: o acúmulo de tensão é seguido pela descarga, o mais rápido possível, para que o ‘sistema’ retorne imediatamente a um estado de equilíbrio próximo à tensão zero, sem necessidades imperiosas e urgentes e sem desejos insatisfeitos. É o que Bion chamará de ‘intolerância à frustração’: o sujeito não suporta a ausência ou as falhas nos objetos da necessidade ou do desejo; tais ‘bons objetos’ imediatamente se convertem em objetos ‘maus’, malévolos e perseguidores, e deverão ser imediatamente eliminados, expelidos, evacuados, pois sua presença dentro do psiquismo torna-se tóxica e venenosa. Isso tenderá a ocorrer através de fantasias e condutas que são facilmente identificadas à raiva, às vezes uma raiva inespecífica e sem direção, sem foco, uma pura ‘evacuação’ que corresponde à tentativa de expelir a dor psíquica da frustração e os objetos frustrantes. Nestes momentos, todo o trabalho psíquico se reduz a este movimento expulsivo criando uma impossibilidade de pensar, de elaborar. Pensa-se, lembra Bion, na ausência (tolerada) do objeto. Quando ele está demasiado presente, ou quando a dor de sua ausência é muito intensa, vale dizer, sua presença com sinal invertido,
11 mas igualmente excessiva, ela precisa ser imediatamente evacuada. Não se abre então espaço para o pensamento, entendido aqui, em primeiro lugar, recordemos, como elaboração da experiência emocional, o que requer a permanência da presença atenuada dos objetos – bons e maus – no interior do psiquismo. A partir deste ponto, em que pensar é o trabalho paciente de elaboração da experiência emocional, formas muito mais sofisticadas e abstratas de pensamento podem evoluir, como a construção de conceitos, teorias e cálculos matemáticos. Vemos assim que quando impera a intolerância à frustração dá-se a substituição do pensamento pela ação evacuativa através das atuações das fantasias (acting out ), das alucinações, dos ataques de ira, das somatizações, etc.. É claro que tal funcionamento é em si mesmo uma resistência às transformações psíquicas capazes de propiciar crescimento e diferenciação de funções psíquicas, o que gera um ciclo interminável de repetições. A compulsão à repetição se instala como modalidade radical do resistir . Na verdade, a permanência desta forma de funcionamento primitivo e desta resistência entrincheirada nos processos primários pode ir muito longe, com a aliança do superego primitivo e das forças pulsionais do id indomadas: da recusa da dor psíquica pela via evacuatória, o indivíduo pode passar a um equilíbrio narcísico e resistencial quase intransponível de ‘ódio à realidade’, ódio a tudo que é ‘outro de si mesmo’ e coloca um limite à sua fantasia de onipotência. Entendamos bem este ponto: no ódio à realidade o termo ‘realidade’ não tem nenhuma positividade e é entendido puramente como negação da fantasia primitiva de onipotência. O ‘ódio à realidade’ é um estado de entrincheiramento da onipotência quando esta é posta em cheque pela falta ou pelas falhas do objeto de necessidades ou desejo, ou pelas meras diferenças em relação ao que seria uma satisfação imediata, como é o caso do analista e suas interpretações. E do ódio à realidade – entre cujos elementos pode passar a figurar, principalmente, o próprio analista – passa-se aos ataques aos elos de ligação, e aos ataques ao aparelho de pensar próprio e do analista (que testemunham o fracasso da fantasia de onipotência e impõem a finitude). Ou seja, id e superego unem-se contra as funções egóicas de ligar e dar sentido à experiência. Neste extremo, estamos no terreno das defesas psicóticas, das cisões e fragmentação do mundo das representações e afetos, e do
12 encapsulamento narcisista radical e da destruição do ‘ego coerente’, termo freudiano (Freud, 1923). Quando imperam as defesas e resistências associadas ao ódio à realidade, o indivíduo fica sob a dominância da Pulsão de Morte sustentada nas forças do id indomado e do superego arcaico: o desligamento atua contra as possibilidades de ligação, necessária para que os objetos se configurem e façam sentido; é o que André Green chama de desobjetalização (Green, 1988), que vai da fragmentação dos objetos e figuras de sentido até a própria destruição do ego coerente, como se disse acima. Cria-se também uma crosta mineralizada em torno do sujeito, erigida contra a vida: é o caso do sujeito tão encapsulado narcisicamente que fica ‘fora de órbita’, fora do mundo, fora de contato consigo e com os outros, sem sofrer e sem, realmente, viver. Um modo de funcionamento – e sobrevivência psíquica – que se mantém nos limites entre vida e morte e aí...resiste. É a vida reduzida a uma função resistencial. É claro que uma estratégia de confronto com as resistências será então necessária, ainda que moderada, nuançada, dosada, oportuna. As interpretações (e manejos) precisarão de algum modo romper com estas defesas e chamar de volta o sujeito à vida de relações, agora com objetos mais confiáveis e aptos em relação aos que atuaram nas origens do adoecimento. Vale uma digressão: neste contexto não se trata de exercitar a ‘interpretação compreensiva’, destinada a dar continência, capaz de articular fantasias e simbolizar angústias, mas de interpretações interpelantes, desalojadoras. No caso da clínica da continência, a função principal das interpretações será propiciar a passagem para o campo do sentido; elas são pertinentes quando algumas fantasias muito primitivas estão operando e sendo projetadas no analista, e quando angústias ainda mais profundas e primitivas – angústias sem nome – são também projetadas e recebidas pelos objetos das identificações projetivas e sentidas diretamente no corpo do analista. É isso que necessita de contenção e continência, transformação em sentido para posterior devolução e introjeção pelo paciente. Já estas interpretações interpelantes e desalojadoras, pertinentes à identificação e perlaboração das resistências, encarnam a verdade, mas não a ‘verdade em K’ e sim a verdade nos limites de K. O que queremos dizer é que a posição do analista não é aqui a
de quem tem uma compreensão – ou uma hipótese compreensiva – a propor, mas a de
13 quem introduz a dúvida, introduz a diferença, a questão. São, portanto, interpretações propriamente analíticas no sentido de que desfazem certezas, convicções inteiriças acima de qualquer suspeita, versões solidificadas, todas com o estatuto de crenças inconscientes com funções resistenciais. No âmago de todos estes dispositivos intrapsíquicos jaz, protegida em seu refúgio, a fantasia infantil de onipotência, origem e fonte de todas estas resistências. Diante disso, o analista não é o que sabe, mas o que questiona e a verdade de seu questionamento não é uma verdade contida em algum conhecimento – ainda que imperfeito, provisório, relativo, efêmero, como sempre acontece –, mas uma verdade nos/dos limites do conhecimento.
Clínica do Confronto
Assim sendo, a Clínica do Confronto se caracteriza pela colocação dos limites: limites são colocados a todas as manifestações da fantasia de onipotência infantil, limites ao mundo pulsional indomado e aos excessos das injunções superegóicas mais primitivas. Esta colocação de limites atuará como fonte e exigência de trabalho psíquico, de crescimento e de transformação do aparelho para pensar do paciente. Isso ocorre por via daanálise das resistências psicóticas, mesmo em pacientes neuróticos, as resistências que são movidas e acionadas pelo ódio à realidade. Cabe-nos assinalar, porém, os riscos ortopédicos e adaptativos e os impasses da clínica do confronto, o que já era evidente desde Freud e pode se tornar ainda mais sério a partir de certas leituras de Bion. Estes riscos estão associados a uma interpretação positivista do ‘ódio à realidade’. Nesta concepção a realidade é tomada como uma
A partir da entidade positiva – a que o analista, sabe-se lá como, teria um acesso privilegiado – e não ctrf?
como pura negatividade, ou seja, como o que impõe limites à onipotência, exigindo e
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possibilitando o luto da fantasia de onipotência e a aceitação dos outros pontos de vista (uma conquista do que em termos kleinianos se denomina de posição depressiva e também corresponde ao atravessamento do Édipo). Mas ao invés disso, ocorre nesta falsa clínica do confronto, uma mera e brutal
onfrontação à realidade de contraposição entre "realidades": a do analista, supostamente ‘mais verdadeira’, é aneira contraposta à do paciente – supostamente falsa e fantasiosa. Com isso dá-se a imposição da atológica e "Realidade", segundo os preconceitos teóricos e ideológicos do analista, segundo suas arcísica
próprias resistências narcísicas, o que produz efeitos extremamente nocivos.
14 Em primeiro lugar, verifica-se aí o risco "esquizo-paranoizante" da clínica do confronto: o paciente se sente perseguido. Ao invés de facilitar a passagem ao ‘princípio de realidade’ (ao processamento da realidade), a passagem à posição depressiva e à travessia do Édipo (o que fundamentalmente inclui a castração simbólica), ativam-se as defesas primitivas, contra a onipotência projetada pelo paciente e assumida pelo analista, que posa de o que sabe e pode (não castrado); revigora-se então no paciente o modo de funcionamento mental evacuativo, aumentando a produção e a evacuação de elementos ". Neste impasse, muitas vezes é o analista que irá ser ‘evacuado’, e a análise se encerra com uma ruptura violenta ou com o simples abandono da análise. Outro efeito, em sentido inverso, é o da adaptação ortopédica em que o paciente ‘vende’ sua fantasia de onipotência para o analista, que as compra a bom preço – identificando-se contratransferencialmente com a onipotência projetada; e em seguida, o paciente a recompra, intacta e até mesmo aperfeiçoada, a partir de sua encarnação cabal pelo analista sabe-tudo. Num caso, temos o impasse de uma transferência negativa não analisável, no segundo, a estagnação do processo em uma transferência positiva igualmente não analisável. Estes riscos e efeitos perniciosos – anti-analíticos e anti-terapêuticos – em nada reduzem a importância desta vertente do pensamento clínico de Bion, ademais tão enraizada na tradição freudiana em que resistência e conflito estão nas bases tanto dos processos intrapsíquicos quanto intersubjetivos. É claro que certo equilíbrio dinâmico entre a clínica da continência e a clínica do confronto parece necessário, mas mesmo ambas operando em harmonia não nos são suficientes. Precisamos de mais um vértice de pensamento clínico e é a Bion novamente – sendo que neste caso não teríamos outra fonte de inspiração – que podemos recorrer. Dizemos isso porque a clínica da continência/contenção/sustentação poderia ser pensada também a partir de Winnicott, enquanto a clínica do confronto poderia ser pensada a partir de muitos freudianos e kleinianos atuais e antigos. Já o modelo clínico que veremos a seguir e, principalmente, a possibilidade de articularmos as três clínicas uma com as outras, isso, acredito, é o que mais devemos ao pensamento de Wilfred Bion.
15 4- ‘Além’ de Freud e Klein: a clínica da ausência.
Começo com uma ressalva em relação ao título acima: trata-se de um ‘além’ entre aspas que significa radicalização das tradições a que está ligado, ou seja, Bion, no meu entender, não deixa de ser freudo-kleiniano, mas vai mais longe e mais fundo em seu pensamento clínico, principalmente ao criar uma teoria da observação clínica que não desdiz o que ele chama de ‘teorias da psicanálise’, as de Freud e Klein. As duas vertentes do pensamento clínico até agora contempladas incluem-se no campo das presenças implicadas do analista (Figueiredo, 2008): o analista participa ativamente na clínica da continência, com suas sustentações e rêveries, e tem uma participação às vezes mais discreta, mas não menos firme e determinante na clínica do confronto (que também poderia ser chamada de clínica das resistências ou da castração). Poderíamos dizer, simplificando bastante para efeito de uma comunicação inicial, que em uma vertente sua posição evoca uma transferência materna, na outra evoca uma transferência paterna, embora, ao fim e ao cabo as transferências do paciente na situação analítica sejam sempre mais complexas e, de preferência, determinadas por suas próprias questões. Não se pode ignorar o fato, porém, de que as posições que o analista assume atuam na direção contrária, induzindo a dominâncias de certas reações transferenciais, facilitando certos trâmites da análise e criando certos impasses.
Clínica da ausência
Na terceira clínica a ser vista, a clínica da ausência, o que estará em jogo é o que denomino de ‘presença reservada’. (Figueiredo, 2008). Precisaremos começar esta parte da exposição recapitulando: ao longo de todas as elaborações de Bion e em todas as vertentes do seu pensamento clínico a problemática das transformações ocupa um lugar de destaque. Temos, em primeiro lugar, o modelo digestivo do psiquismo: conforme a estrutura continente-conteúdo, cabe ao continente, seja ele colocado no plano intersubjetivo (a mãe, por exemplo), seja no intrapsíquico, transformá-los em elementos !, aptos às tramitações psíquicas. Outra forma de expor o processo é falando na transformação da ‘experiência emocional’ bruta da mente primitiva (Green, 1997) – feita de sensações e afetações internas e externas – em ‘sentido’, em elementos simbolizados. Os elementos " não podem ser tramitados, elaborados, inseridos em redes e ligados na formação de sentido, nem podem ser acumulados sem produzir dor, mal estar, angústias;
16 por isso, seu destino é a ‘evacuação’, sua projeção sobre objetos do mundo, partes do corpo, funções psíquicas, etc. Cabe transformar este modo de funcionamento – a evacuação onipotente dos elementos indigestos – em capacidade de metabolismo, ou seja, cabe transformar as ações evacuativas, como as identificações projetivas, em pensamento, no sentido amplo e não intelectualista que o termo tem em Bion. O livro de 65 – Tranformations – dedica-se a retraçar o esquema geral das transformações (T): todas se originam da experiência emocional O, e a parir daí temos as transformações do analista (Ta), e as do paciente (Tp), sendo que dos dois lados ocorrem transformações em ! (T!) e transformações em " (T"), pois haverá sempre elementos indigestos também sendo produzidos e postos para fora, simultaneamente: sentido e nãosentido não andam separados. Na situação analítica ocorre permanentemente o encontro das transformações de O, no paciente e no analista. Segundo esta concepção, são incontáveis os elementos ou aspectos incognoscíveis nestas sequências de transformações. Há, de saída, a incognoscibilidade radical de O: nunca saberemos, nem de perto, o que se dá, deu ou dará na experiência original de ambos os participantes de uma situação analítica (nem em qualquer outra situação). Mas também é preciso admitir a incognoscibilidade relativa das transformações: nem o analista sabe ao certo o sentido possível das transformações do paciente – nem o das suas próprias, pois muitas vezes o sentido de uma interpretação que oferece só se revela, aproximadamente, muito depois, e às vezes nunca – como o paciente sempre entenderá as transformações do analista – como, por exemplo, suas interpretações – de acordo com as suas próprias. Ou seja, a mescla de sentido e não-sentido não desaparece jamais para os dois, T! e de T" caminhando lado a lado. A principal lição deste modo de ver os processos impõe o reconhecimento da ignorância do analista, inclusive quando pensa, fala e escreve a clínica, ou tenta teorizar a partir dela, ou a ‘supervisiona’, etc.: nunca sabemos ao certo do que se trata e precisamos caminhar no escuro, de olhos mais ou menos fechados, com todas as antenas ligadas, e mesmo assim... Lidamos todos apenas com transformações de O mais ou menos apropriadas e eficazes, mas nenhuma segura, transparente e perfeita. O que consideramos nosso "material clínico", as histórias que contamos em supervisões, que escrevemos em artigos, nossas
17 teorias, que construímos para tornar este material minimamente inteligível e comunicável, nossas interpretações – as oferecidas ao paciente e as construídas depois de encerrada a sessão ou do processo analítico para serem oferecidas aos colegas – tudo não passa de transformações de O do ponto de vista do analista. As transformações de O do ponto de vista do paciente poderiam ir por caminhos muito distintos. Não obstante a obscuridade e incerteza intrínseca a toda esta trama, uma escuta livre, desapegada a preconceitos teóricos e ideológicos pode ir descobrindo alguns padrões nestas transformações, alguns invariantes. Sobre eles falarei adiante. O que importa no momento é que muitas das transformações de O caminham na direção de uma transformação em K: a transformação em conhecimento, como é o caso de todas as transformações do analista acima mencionadas. Isso é tanto mais possível quanto mais o vínculo K se fortalece sobre os vínculos L e H; quando Amor e Ódio – desejo e aversão – cedem espaço, sem desaparecer, ao impulso de conhecimento. Bion falava na atitude analítica propiciadora desta transformação como “sem memória, sem desejo, sem compreensão”, vale dize, na posição mental que Freud caracterizava como de ‘atenção flutuante’ e equânime, sem privilegiar ou excluir nada. No entanto, não nos esqueçamos, nenhuma transformação em K faz plena justiça a O, é apenas uma das suas transformações possíveis e, no melhor dos casos, um passo na direção do que realmente importa. E o que realmente importa no processo analítico não é conhecer, é transformar e transformar-se. A isso Bion chamou de transformação em O, o que vai muito além do conhecimento, embora passe por ele. Transformação em O implica o vir a ser, o devir, o tornar-se. A esta questão crucial, razão de ser da psicanálise, voltaremos mais tarde. No momento, darei um passo atrás para falar um pouco mais das transformações de O em que alguns padrões podem ser detectados. Transformações em O =>
Segundo as observações clínicas de Bion, podemos encontrar transformações de O
em movimentos rígidos: são transformações em que o paciente ‘aplica’ o clichê de que nos falava Freud quando começou a descobrir os fenômenos da transferência; são as reedições características das transferências neuróticas; nelas os padrões repetitivos tornam-se muito nítidos nas relações com o analista e com outros objetos e pessoas tanto do passado como do presente, fora da análise (transferências deslocadas e lateralizadas). Mas seja dentro do enquadre ou fora dele, presentes ou passadas, tais transformações ocorrem com focos
18 bastante identificáveis, com a nítida reprodução de padrões arcaicos na resposta a novas condições de estimulação. Temos aí, nas transformações em movimentos rígidos, a nossa velha conhecida transferência neurótica. Mas há também as transformações projetivas de O, mais características nas relações psicóticas, mesmo quando o paciente não é psicótico. Nelas ocorre como que um "esparrame" de afetos e representações sobre figuras não delimitadas e sobre diferentes planos e dimensões. São muito mais difíceis de detectar justamente porque lhes falta o foco, os limites entre dentro e fora, entre figura e fundo. É, por analogia, como acontece na cena teatral cada vez que se troca a iluminação: não só um novo colorido projeta-se sobre todos os objetos da cena, como todos têm suas cores e contornos completamente transformados de forma tão surpreendente que os torna irreconhecíveis; alguns desaparecem, outros crescem, outros se deformam etc. Se uma mesma iluminação azul, por exemplo, toca ao mesmo tempo objetos que estão na boca da cena e outros que estão no fundo, o espectador perde a noção de profundidade e formam-se na sua retina objetos novos constituídos de pedaços de objetos que pertencem a diferentes planos, ao passo que os objetos ‘originais’ desaparecem de sua visão. Quando algo assim se dá na transformação que um paciente faz de O e comunica a seu analista – sendo que às vezes nem chega a ‘comunicar’ propriamente – temos, não só um trabalho árduo de interpretar como uma evidência de outro modo de funcionamento mental, ao menos nesta conjuntura. As transferências que aí se mostram certamente não são as neuróticas, mas transferências de tipo psicótico, fragmentadas (com figuras inexistentes, ‘inventadas’ ou desconexas), dissociadas (com afetos e representações indo para direções divergentes, criando cisões nos objetos etc.). Se em todas as transformações nunca se sabe de fato o que lhes está na origem, nestas, as projetivas, tudo fica muito confuso e o analista, em sua contratransferência, pode se sentir não só confuso quanto verdadeiramente atacado, desencaminhado, perturbado, e mesmo destroçado, em sua capacidade de pensar. A presença destas transformações projetivas atesta que, no paciente, os vínculos L e H preponderam largamente sobre K, ou seja, seus amores e ódios primitivos valem muito mais que os conhecimentos que ele é capaz de produzir sobre sua experiência: os afetos transbordam e as discriminações vacilam. Diante destes fenômenos, mais que nunca o analista deve se munir da certeza de
19 que não há certezas e se manter no que Bion, acompanhando o poeta John Keats, chamava de negative capability: a capacidade de tolerar a incerteza, o mistério e a dúvida. No fundo, isto é sempre necessário para a escuta, sem memória, desejo e compreensão prévia, mas no caso das transformações projetivas a perturbação no analista pode ser tamanha que, para se aliviar da angústia, ele pode ceder à tentação de se ‘refugiar no conhecimento’ para não ter de experimentar em toda a sua radicalidade a ignorância e, a partir daí, ir deixando que se configure, sempre parcialmente, algum padrão reconhecível. E ainda precisamos ir além: não se trata apenas de dar tempo ao tempo para que o padrão emerja e possa ser reconhecido. Como a questão essencial não se esgota em conhecer, é preciso dar tempo ao tempo para que a própria situação evolua, o que já nos leva diretamente à questão já aventada da transformação em O. Mas antes de lá chegarmos ainda nos resta um capítulo importante das transformações de O, a transformação em alucinose. Freud em um texto no começo da psicanálise falou em ‘produtividade psíquica do inconsciente’; tratava-se do inconsciente recalcado e de sua insistente tentativa de retorno (nos sonhos, lapsos, sintomas, falsas lembranças (paramnésias preenchendo os vazios da amnésia) etc.). O termo também nos serviria para falar do inconsciente pulsional: a pulsionalidade é pura insistência e a compulsão à repetição sua melhor e mais pura expressão. Segundo as observações clínicas de Bion, algo similar a esta produtividade ocorre na transformação em alucinose. Trata-se da negação mais radical da frustração, com a abolição das faltas e das falhas, com a recusa de qualquer dependência e com o preenchimento onipotente do vazio com afetos, representações e sensorialidade. A EAB
intolerância à frustração, a que já fomos apresentados na clínica do confronto – gerando a expulsão da dor psíquica, da raiva e dos objetos maus por elas gerados – produz um
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movimento ainda mais onipotente: a criação de algo no lugar deixado vazio pelo objeto falho e faltante. Cria-se, pela fantasia onipotente, algo no lugar do nada e do caos. O sujeito supera imaginariamente a sua dependência criando o objeto onde ele não está e pode entrincheirar-se nesta autossuficiência, dando preferência a esta forma de aliviar-se da angústia e de todo o sofrimento a qualquer outra via, principalmente a oferecida pela análise que lhe exigiria um contato com o sofrimento.
20 Embora esta transformação da experiência de O em alucinose possa predominar em quadros patológicos muito graves, creio que ela pode estar operando, quase sem ser percebida, em muitas outras situações, e nem sempre ela será totalmente patológica. Por exemplo, existe sempre o risco da transformação em alucinose no analista e em suas teorizações sempre que ele precisa enfrentar um desconhecido muito ameaçador. Bion confessou em um texto de 1976 que talvez “toda a psicanálise possa se tornar apenas uma vasta elaboração de uma paramnésia, algo com a finalidade de preencher o vazio de nossa ignorância assustadora” (Bion, 1976, p.244). A dominância, contudo, da alucinose no analista terá como consequência a obturação de sua receptividade, a saturação de sua escuta e a paralisia de sua capacidade de pensar. Isso nos conduz, novamente à questão das resistências no paciente e, no caso acima, no analista – é como se ele se encastelasse na psicanálise e, justamente por isso, perdesse sua capacidade analítica. É claro que a questão das resistências do analista não se reduzem ao dito acima: tanto como nos pacientes as reações hiperbólicas nos vínculos L e H – tal como vividas na contratransferência – produzem vieses e impasses resistenciais diretamente, mas não podemos desprezar tanto sua função de obstrução de K quanto a eventual transformação de K em –K. Isto é, sob o impacto e controle dos excessos de amores e ódios contratransferenciais, o que era conhecimento (K), passa a funcionar como anticonhecimento (-K). Tanto no paciente quanto no analista, a dominância da transformação em alucinose produz uma verdadeira reversão da função " e a produção de –K; é neste contexto que podemos entender o intelectualismo como resistência em sua função de obstrução do conhecimento e, mais ainda, de qualquer transformação de O. No intelectualismo, K é convertido em –K, ou seja, transforma-se em resistência ativa, desejo de ignorar; mais ainda, desejo de antecipar uma suposta resposta para que não possa emergir uma questão. Investe-se no conhecimento para não ter de saber. Uma frase do literato e filósofo francês Maurice Blanchot – ao que parece apresentada a Bion por Green – tornou-se o mote do psicanalista inglês: “ A resposta é a infelicidade da questão”. Uma resposta antecipada, e mesmo uma boa resposta a uma questão passada, quando se antecipa à experiência futura tem esta função de bloqueio e resistência que aqui estamos associando a uma forma branda de alucinose.
21 Mas a reversão na função ! pode se mostrar muito mais drástica. Por exemplo, no funcionamento dos órgãos dos sentidos, inverte-se a direção: ao invés de eles iniciarem o processamento da experiência recebendo elementos, passam a realizar a excreção de imagens e sensações corporais, gerando alucinações, manifestações hipocondríacas, etc. Outra expressão de alucinose – uma manifestação da fantasia de onipotência do sujeito que se pretende autossuficiente e independente de tudo que não reconhece como próprio – é a arrogância, irmã gêmea da certeza psicótica e da grandiosidade narcisista. Esta arrogância psicótica é sinal da pretensão e instala a rivalidade em relação aos poderes de todos os outros sujeitos e objetos, negando radicalmente a própria dependência. Conforme vimos na clínica do confronto, cria-se um impasse quando a coisa se coloca em termos de ‘contraposição de realidades’, a do paciente e a do analista. Vemos agora as origens deste impasse nas transformações em alucinose quando elas estão operando nos dois sujeitos, isto é, também no analista: a situação analítica deteriora ao se converter numa disputa de poder entre eles: quem vê melhor, quem pode mais, quem cura? No processo analítico da clínica da ausência, o paciente precisa ir se tornando apto a admitir a experiência emocional de origem, O, como “vazio infinito e sem forma” e essencialmente incognoscível; por isso não está totalmente equivocada a interpretação de O como 0 – Zero: é um nada de entes, nada de figuras. Nas transformações em alucinose esta experiência é negada com a transformação imaginária do nada em algo. Mas para que os pacientes possam ir fazendo o percurso de renúncia e desapego a algo que preenche, supostamente dá sentido, explica etc. é preciso que o analista possa se manter na negative capability em que O (ou 0) possa ser admitido. Este é o fundamento de sua presença reservada. O que não é fácil: penso que a fonte radical de todas as resistências é justamente a resistência a O (como infinito vazio e sem forma, e também como potencialidade de forma, pois deste vazio é que provêm as figuras e os sentidos cambiantes ao longo da existência). A resistência a O pode ser decomposta em dois aspectos: há uma resistência a tornar-se O e uma resistência a desfazer-se em O. Ambas estão associadas à transformação em O com o que comporta de mudanças catastróficas. Como a meta do processo analítico não se reduz a conhecer ou reconhecer, mas a transformar-se, sua realização – sempre limitada e provisória – exige uma experiência
22 emocional profunda, drástica, catastrófica: a ampliação da capacidade de sofrer – sentir e dar sentido – à experiência, sem previamente sabermos no que isso vai dar e podendo, neste momento, ser-um com ela. É o que Bion denomina de at-one-ment . É um estado de profunda integração consigo e de reconciliação – uma tradução possível para attonement – com suas condições e possibilidades. Mas esta capacidade de assumir plenamente a existência pressupõe um desapego, vale dizer, uma renúncia às formas e sentidos até então vigentes e que resistem a esta entrega à dimensão inconsciente da experiência emocional, O. Ou seja, há a resistência à dissolução em O sem a qual o crescimento psíquico não poderia ocorrer. E como algumas transformações de O em conhecimento e reconhecimento podem ser precursoras da transformação em O, pode ocorrer que as resistências se antecipem: elas se manifestam como resistências a saber (e a reconhecer-se), que é o que Freud percebia em tantas reações dos pacientes ao processo analítico, quando, no fundo, a resistência à verdade em K deriva da resistência fundamental à verdade em O. Em resumo: a Clínica da ausência é a que exige ao analista manter-se presente, mas em reserva, de forma a operar na instalação de vazios na própria mente e na mente do paciente, uma experiência da angústia tolerada a favor da reconciliação (atonement ) com o nada de entes. Tomando emprestada a linguagem de Heidegger, diríamos que a clínica da ausência é a que pode transformar angústia em serenidade. Mas aqui, cabe-nos apontar os riscos desta vertente: são os efeitos desestruturantes e profundamente anti-terapêuticos do excesso de reserva, de abstinência e de angústia, e, em contrapartida, os riscos alucinogênicos; na ausência de entes, a mente tende ‘naturalmente’ a aluciná-los, a criar imaginariamente, movida pela fantasia onipotente indomável. No silêncio do analista, outros ruídos crescem e proliferam, e perturbam e atacam. É a partir daqui que precisamos articular a clínica da ausência com as duas outras já comentadas. 5- Finalizando: a articulação das três clínicas no pensamento de Bion e a questão psicanalítica da Verdade.
Nosso breve percurso pelas três clínicas da psicanálise, tal como podem ser concebidas a partir do pensamento de Wilfred Bion, possibilitou tanto focalizar seus
23 potenciais terapêuticos quanto seus riscos, o que faz com que todas elas, exercidas de forma exclusiva possam levar a impasses ou desastres. Em todos os casos, constatamos o poder terapêutico e transformador da Verdade, seja a verdade em K (conhecimento, reconhecimento e compreensão), da verdade nos limites de K (a verdade na experiência da ignorância), e da verdade em O: aqui se trata da ‘verdade emocional’ do ser um, ser-em-um, o at-one-ment implicado no tornar-se o que se é pela via da decisão. O tornar-se O corresponde à experiência de se reconciliar com os fatos da existência singular: a dependência em relação ao mundo, seus objetos e outros sujeitos; a vulnerabilidade em termos de frustração/castração, perda, dor e sofrimento; e a finitude, aceita como ignorância, impotência, mortalidade. Vimos, então, a mútua dependência das ‘três clínicas’ e podemos antecipar, como uma questão que iria além do tempo e da ocasião, a ser desenvolvida em outra oportunidade, a questão das suas dominâncias relativas em diferentes configurações psicopatológicas e em diferentes conjunturas clínicas. Há casos e momentos que pedirão mais continência, outros, mais confrontos, e outros, mais reservas, silêncio, vazio, ausência. Cabe, contudo, assinalar a precedência metodológica e ontológica deste terceiro vértice para que a psicanálise continue, tendencialmente, a trabalhar, como queria Freud por razões teóricas, pragmáticas e éticas , per via de levare. Nesta medida, achamos que algo deste terceiro vértice precisará estar sempre operando para modular os excessos da clínica da continência e da clínica do confronto, mesmo quando eles sejam dominantes.2 Outra, e importante, conclusão diz respeito à complexa e paradoxal relação com o saber em nossa prática clínica. Precisamos entender nossas teorias, as teorias da psicanálise como ‘evolução de O’, como transformações da própria experiência de psicanalisar. Nesta medida, elas pertencem ao campo da psicanálise e pouco valem fora dele. Mesmo nele, aliás, precisam ser tomadas com ressalvas: nenhuma transformação de O, mesmo que promovida com a dominância do vínculo K dará conta plenamente de seu ‘objeto’, sendo apenas aproximações mais ou menos aptas e fecundas para a própria evolução da 2
Exemplos desta mescla podem ser apontados: Mitrani (2011) pratica uma clínica da continência e Levine (2011) uma clínica do confronto e da perlaboração, como formas dominantes de trabalho, ambos inspirados em Bion. Os dois, contudo, modulam suas clínicas com o vértice da ausência, sendo que Levine também faz um uso moderado da continência, ambos com a preocupação em não saturar suas presenças e interpretações. Quando esta preocupação com os limites do saber e com os efeitos resistenciais do conhecimento ocupa um lugar central, aliada à questão da transformação em O, dá-se a dominância da clínica da ausência, como no trabalho de Rudi Vermote (2011), mas sempre amparada nas outras duas.
24 experiência que a originou. Mas aqui surge o maior dos perigos: estas mesmas transformações em conhecimento podem vir a se constituírem como ‘resistências a O’, obstruindo a própria evolução da experiência analítica. Ou seja, as teorias da psicanálise nos são indispensáveis e – de certa forma – inevitáveis, pois elas tendem a se formar com uma relativa espontaneidade a partir da experiência clínica (o que exige, por sinal, um árduo trabalho de crítica e avaliação). Mas cuidado com elas..., mesmo quando bem formadas e com uma boa ‘folha de serviço’ na história do movimento psicanalítico. Aliás, principalmente nestes casos.
25 Referências.
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